sábado, junho 03, 2023

«Morte a Crédito», Louis-Ferdinand Céline

 

Livros do Brasil, 2023. Tradução de Luiza Neto Jorge
Escrever mais sobre Céline quando poderá estar tudo escrito sobre ele? A questão que coloco é qual a verdadeira razão de se voltar à sua leitura, se não pela paleta que Céline nos mostra sobre a realidade humana, bem testemunhada pela sacanice, invejas, violências várias e constante repugnância pelos outros? Principalmente, Céline sabe do que fala e atira-nos à cara o que ela, a humanidade, tem de pior. Sabe-se o que o autor foi e os «estudos» que dele se faz e da sua literatura não é menos responsável pelos lugares-comuns que lhe foram atribuídos e que me recuso a dar eco aqui. Não é pois novidade a personalidade muito particular de Céline, sem dúvida, mas o libelo antimilitarista e anti-bélico está inteiramente presente no que escreve e o mesmo se passa sobre o desprezo que nutre face à burguesia rapace e hipócrita, seja ela de pequena ou grande dimensão. 

«Morte a Crédito» foi escrito em 1936, quatro anos após a publicação da «Viagem ao Fim da Noite». Nessa ocasião, antes da II Guerra Mundial, Louis-Ferdinand Céline era considerado um homem de esquerda, premiado e convidado pela intellentsia das letras francesas para palestras sobre o seu modo muito particular de escrever, comparando-o inclusive a Rabelais devido ao seu argot cáustico e irónico. Depois foi o que se viu com a colaboração com os alemães, embora nos seus romances nada sobressaia desse mesmo apoio. Digo romances, não os célebres panfletos ainda hoje proibidos de publicar em França e que o levaram à maldição e ao ostracismo a partir de 1945

De qualquer maneira, este romance editado pela Livros do Brasil, em Fevereiro de 2023, tem uma tão difícil como excelente tradução de Luiza Neto Jorge, o que lhe acrescenta um valor inquestionável. A mesma poeta também esteve na base da tradução, nos anos 80, de uma edição publicada pela Assírio & Alvim. Paradoxalmente, a trama de «Morte a Crédito» passa-se antes da «Viagem...». Não sendo consideradas obras totalmente autobiográficas, esta última descreve a sua vida terrível na frente da guerra de 1914/18 e a recuperação dos ferimentos sofridos, acrescentando as viagens que o autor faz à América e ao Congo juntando, no final, a sua experiência de Paris, também como médico e frequentador de bares soturnos. Já em «Morte a Crédito» realça-se a sua vida antes de se juntar ao corpo militar francês que combateu contra a Alemanha. A conclusão do livro é de uma ternura imensa (a conversa mantida com um Ferdinand exausto perante um tio que é o único a compreender os seus azares e insociabilidade constantes) contrastando com a violência imprimida durante toda a narrativa e que descreve um ambiente familiar de cortar à faca com o pai que o agredia violentamente e uma mãe doente, queixosa e que era igualmente vítima das frustrações paternas. Nada disto, contudo, será comparado aos trabalhos verdadeiramente indignos a que se sujeitou para sobreviver, para «ganhar a côdea»,  ou a perspectiva de um amor quase sempre fugaz. Alguns momentos há que são de cunho surrealista como aquele em que com os De Pereires, em fuga de Paris por imensos calotes e dívidas, cria uma quinta pedagógica para ser criada uma «Nova Raça»; claro que esta «nova raça» não fez mais do que passar fome e frio, roubar e assaltar todas as quintas limítrofes ao «falanstério» e que se viu, subitamente, fechado pela polícia e com o seu responsável a suicidar-se com uma caçadeira. Não deixo de considerar esta «experiência» tão ironicamente relatada como uma metáfora inesquecível no campo literário sobre as ideologias assentes na criação de «novas raças» europeias que floresciam desde o final do século XIX e inícios do século XX e cujas consequências horríveis se vieram a dar-se na II Guerra Mundial. 

Céline é um clássico incontornável.