segunda-feira, junho 12, 2023

«Cavalos em Fuga», Yukio Mishima

 


Livros do Brasil, Outubro de 2022. Tradução de Tânia Ganho

No Japão entre as duas guerras existiam dois fortes movimentos: um, de cariz «moderno» vinda da Era Meiji do século XIX, tentava alinhar pelo Ocidente e não perder o comboio do desenvolvimento e do progresso capitalistas; outro, claramente conservador, fazia alinhar as forças comummente chamadas de direita e extrema-direita com os valores entretanto perdidos da era dos samurais e do xogunato que pretendiam revivificar o carácter divino do imperador. 

Isao é a personagem que Mishima dá vida neste romance brutal e de uma grande beleza literária, onde poderemos ver algum fio autobiográfico, principalmente na questão dos valores defendidos em vida por Mishima e que o levará a fazer seppuku ritual filmado pelas televisões em 1970, após a tentativa falhada de exigir um levantamento militar que repusesse a antiga ordem política nipónica. Tal como Mishima, Isao em «Cavalos em Fuga» faz seppuku após assassinar Kurahara, o patrão dos patrões japoneses, que tudo corrompe inclusive dando dinheiro, secretamente, à jovem e pura Associação de Patriotas de que Isao era membro destacado e praticante de Kendo uma arte marcial dos samurais. Isao e os seus vinte jovens companheiros criam, a par com a legalizada Associação de Patriotas, uma clandestina Liga do Vento Divino (Kamikazé significa literalmente «vento divino») que glosava uma associação secreta do século XVII que era formada por samurais cujo objectivo era manter e defender o imperador contra todas as influências externas e estranhas à tradição milenar do Japão, budismo incluído.

Não devemos, contudo, menorizar ou reduzir o romance de Mishima, um autor excepcional que, talvez não por acaso, conheci e entusiasmei-me nos meus vinte anos, com um libelo da extrema-direita ou tradicionalista. Mishima está fortemente imbuído de uma forte ética do corpo e da mente e não é por acaso que o seu objecto de ódio se concentra sobretudo no capitalismo e no que ele representa de corrupção. Muito antes do assassinato pelo punhal do já citado Kurahara, Isao/Mishima traçava-lhe o perfil: «Um dos seus comentários mais conhecidos, citado por um jornal, denotava uma displicência que parecia cuidadosamente forjada: ''É claro que o grande índice de desempregados é desagradável. Mas é uma falácia tomá-lo automaticamente como sinónimo de uma economia frágil. O senso comum diz-nos que o contrário é que é verdade. Para haver bem-estar no Japão não é necessário que haja alegria na cozinha de toda a gente.'' Essas palavras suscitaram raiva e rancor e ficaram gravadas na mente das pessoas. 

A maldade de Kurahara era a de um intelecto que não tinha laços com o sangue nem com a terra natal. De qualquer maneira, embora Isao não soubesse nada sobre Kurahara enquanto indivíduo, a maldade dele era-lhe absolutamente clara.

Havia os burocratas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, ansiosos por agradar a Inglaterra e à América, transbordando charme, capazes só de jogar a cartada da coqueteria. Os empresários, que fediam a lucro e a ganância, farejando o solo em busca do seu jantar, como gigantescos papa-formigas. Os políticos autotransformados em montes de corrupção. As cliques militares, tão encouraçadas com o culto do carreirismo que pareciam escaravelhos imobilizados. Os académicos, de óculos,  quais larvas brancas inchadas. Os especuladores, desejosos de explorar a Manchúria, a sua amada filha bastarda. E o próprio céu reflectia um panorama de pobreza, como cores de sol-nascente espalhadas pela terra. Kurahara era uma cartola de seda fria e preta colocada no meio desta lamentável paisagem. Sem o dizer, Kurahara desejava muitas mortes, ansiava por elas.» (pág.241)

Torna-se evidente ao longo da leitura deste romance que Isao tem o seu fim traçado. Torna-se um chefe carismático  da jovem Liga do Vento Divino, mas sabe interiormente que só ele terá forças para levar a cabo a tentativa de chamar o Japão ao caminho dos seus ancestrais. É traído pelo próprio pai, afasta-se de Makiko que o ama e que mente em tribunal para o salvar, é traído igualmente por membros do exército, é preso e levado a tribunal, sendo-lhe dado uma leve pena suspensa, cuja condescendência ele desconfia por ser tomado por militante de direita. Tem por garantido que se fosse de esquerda a pena pesada ou perpétua e a tortura seria uma realidade. No início do livro, Isao Iiunuma chega a invejar os estudantes universitários de extrema-esquerda pela sua postura diante da polícia. Portanto, para Isao, no final de tudo, compreende que o seu acto será solitário. Violento, mas solitário e necessário para redimir os ancestrais e os deuses insultados pelo dinheiro e pela corrupção ocidental.

Quanto ao livro existem páginas inesquecíveis como esta: «Enquanto os conduzia [aos seus companheiros] ao longo do carreiro que atravessava os campos, Isao reparou nos vestígios carbonizados de um incêndio que não estavam ali na véspera. as cinzas finas de palha queimada tinham deixado um padrão cinzento no trilho, mas no sítio onde se concentravam num sulco eram pretas retintas. Esse negro misturava-se com o vermelho da argila de uma maneira que cativava Isao. Estranhamente, não foi a mistura de cinza e uns quantos restos de palha fresca que suscitaram pensamentos sobre o incêndio fulgurante no seu auge, mas sim o sulco negro esmagado por uma roda. O vermelho intenso e bárbaro das chamas, o preto forte do sulco: eis a expressão perfeita, o perfeito contraste. Ser ateado e, depois, extinto com os pés: ambos tinham o mesmo poder vívido. A associação que tudo isto provocou na mente de Isao foi, obviamente, o espectro da revolta.» (págs. 268,269)