terça-feira, junho 27, 2023

«Alemanha Ensanguentada», Aquilino Ribeiro

 

Bertrand, 2015. Prefácio de Pedro Mexia
A maior parte deste livro foi escrita em 1920, tendo-se seguido algumas impressões sobre os campos de batalha da I Guerra Mundial em 1928, em viagens que Aquilino Ribeiro fez à Alemanha nessas mesmas datas. As descrições que faz da Alemanha completamente exausta económica e moralmente devido ao diktat do Tratado de Versalhes de 1918/19 não faz dele, longe disso, um «germanófilo» no sentido militar que lhe foi na ocasião apontado; era, contudo, um claro apaixonado pela cultura alemã, sabendo falar bem a língua, visto que era casado com Grete Tiedemann que vem a falecer precocemente em 1927. Para além disso aponta-se uma tendência clara pelo anarquismo em Aquilino e alguns factos relacionados com as suas actividades políticas e consequentes prisões em Portugal, ainda durante a monarquia e a sua participação na revolta de 1927 contra a Ditadura Militar, não deixam dúvidas. 

Perante o verdadeiro entusiasmo que é ler Aquilino e desfrutar o seu português límpido e depurado, com a palavra certeira, em todos estes apontamentos diarísticos, de viagem, teremos de nos fixar somente em dois aspectos: a clareza das suas posições políticas sobre a violência de Versalhes sobre a Alemanha, a tentativa Espartaquista da Revolução de 18 de que ele viu ainda barricadas não levantadas e paredes esburacadas por balas e petardos e as conversas mantidas com oficiais soviéticos ainda na Alemanha depois da derrota às portas de Varsóvia. Reparemos que as impressões de Aquilino foram escritas somente 3 anos após o Armistício. 

Logo na página 18, Aquilino dá-nos uma visão muito particular dos ingleses que ocupam a Alemanha com este trecho delicioso: «Ponho-me a examinar-lhes as caras, cujo taciturno ou seriedade, se quiserem, não é mais que contenção ou fisionomia do animal lançado numa determinada pista. Os britânicos têm sempre no sentido um alvo a tocar. Vão a reflectir, ou devaneando como eu? Qual! Vão embalados no seu inconsciente, ruminando porventura o corned beef, e parece que se não dignam reparar que vai gente ao pé deles. A vigília e inquietação são apanágio do espírito; o motor inglês é instinto e aí está a sua força. Sobem sem olhar para nós; passam diante de nós sem vénia; o comboio como o mundo é ring para eles; eis a gente de alto lá com ela a quem os pregadores alemães, durante a guerra, chamavam em suas imprecações ao Altíssimo «malandragem escrofulosa dos nevoeiros». Mas esta definição dos gentlemen ingleses, Pedro Mexia no seu prefácio não teve em conta!

Não deixa de ser observável a simpatia que Aquilino nutre pelos revolucionários alemães de 1918, nomeadamente a Karl Liebknecht e a Rosa Luxemburgo, a quem destinou um fim trágico por não terem compreendido que a hora da revolução não se teria dado então. Mas tem a noção clara do que terá representado para a Europa a criação dos sovietes de Berlim e Munique por menos de três meses. Por pouco a Europa Ocidental não teria sido socialista. A sua evidente simpatia, não obstante mais à frente criticar a revolução russa em guerra civil, é inversamente proporcional à antipatia que sente pelo social-democrata Ebert verdugo dos revolucionários que utilizou a tropa imperial, ou o que restava dela, para sufocar com sangue a insurreição. Nota Aquilino que a paga desses mesmos militares monárquicos foi o desprezo! A 10 de Outubro de 1920 Aquilino regista no seu diário o seguinte trecho que considero dos mais importantes do livro no que à Revolução de 1918 diz respeito: «(...) semelhante atonia [dos parlamentares social-democratas] acabou por dar fôlego à reacção, chamando à vida os exânimes burgueses e aristocratas, e dando origem a uma oposição ferina, com apartar-se do flanco esquerdo da social-democracia e socialismo independente, chefiado por Lebedour, e do modo mais formal o espartaquismo de queram cabecilhas Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Foram estes as cabeças da hidra. O seu cavalo de batalha estava em forçar o Governo a prosseguir a via revolucionária, ceifando por um lado nos privilégios das classes possidentes, por outro trazendo, além da liberdade, bem-estar económico ao proletariado. A sua táctica consistia em quanto mais lhe dessem mais reclamar. (...) Nessa altura, reuniam os plenipotenciários em Versalhes e os exércitos da Enterite atacavam a Rússia Soviética por Odessa e o Mar Báltico. A Ditadura de Moscovo tirava o sono aos vencedores da guerra. Além do fermento revolucionário que ameaçava, levedando, contagiar a Europa doente e insatisfeita, havia o perigo de uma aliança germano-soviética, mercê da qual podiam sorvar os laboriosos frutos da vitória.» (pág.64,65). É muito interessante a visão muito própria de Aquilino Ribeiro acerca das causas do fim da revolução soviética alemã, para além daquela que se referiu acima. Afirma, com evidente conhecimento de causa, que a situação de penúria a que estava votada a Alemanha e a falta de armas e de alimentação geral foi a causa próxima da atonia que o escritor apontou atrás. Cremos que haverá outras mais consistentes no plano da estratégia revolucionária, mas damos estas como importantes igualmente.

Aquilino, neste livro a todos os títulos notável, considerado talvez um diário longe de outras obras de grande fôlego que nos doou, tem a noção exacta do que pode acontecer à Alemanha, se vier, como veio a verificar-se em 1933, um aventureiro que cavalgasse a miséria material e psíquica, atónica, a que estava votado o povo alemão; esse aventureiro chamou-se Hitler que ele refere nominalmente numa carta a Francisco Pulido Valente, em Maio de 1935 e aposta ao livro. Aí lê-se, a páginas 97 e 98, o seguinte: «Desiludido está, de modo geral, o povo germânico, desiludido de Deus, dos estadistas, da justiça, da força, desiludido desde as unhas dos pés até aos cabelos da cabeça deste governo social-democrata com Ebert na presidência, mantenedor do mais ortodoxo burguesismo para os operários, serventuário nojento dos aliados para os nacionalistas. Reconhece que o povo germânico tem necessidade de ocupar a imaginação com alguém ou alguma coisa que pelo tamanho e prestígio personifique o extraordinário. Mas onde está essa figura de proa? O Kaiser é o bronze partido à martelada de que fala Nietzsche. Hindenburgo não passa de um gigante com pescoço de toiro, bastante rebarbativo e intratável, de ignorância enciclopédica para tudo o que não seja a arte da guerra. Lundendorff, inteligência mais dúctil e penetrante; verga sob a responsabilidade da derrota. Mackensen, o invencível, não soube criar idólatras. Se aparecer um aventureiro, resoluto e de maus fígados, que se confine numa vaga e apocalíptica ideologia, que bata o pé ao vencedor, misto de Anticristo e de Lohengrin, tem povo. Vencida mas não derrotada, a Alemanha quando puder voltará a desembainhar a espada, no que, de resto, não faz mais do que obedecer à estúpida condição humana.(...)». 

Aquilino escreve isto em 1920. Previu com antecipação notável, que só os grandes observadores são capazes, a ascensão do nazismo e a guerra que Versalhes e os vencedores foram capazes de criar em 1918. Que este livro nos sirva, para além de contemplarmos uma das maiores escritas da nossa língua, de aviso sério sobre as consequências de humilharmos povos e estados e de ver um qualquer «aventureiro, resoluto e de maus fígados, que se confine numa vaga e apocalíptica ideologia» a sair do buraco onde hibernou durante décadas. Em 1920 ainda estávamos longe do apocalipse nuclear.