sábado, outubro 29, 2022

«Clavicórdio» de Andreia C. Faria

 

Clavicórdio, Língua Morta, Janeiro de 2022
Livro de Andreia C. Faria e, socorrendo-me de uma pequena pesquisa na «Antologia do Esquecimento» de Henrique Manuel Bento Fialho e em mais alguns sites, fui sabendo que este é o seu quarto livro, o primeiro em prosa. Aliás, uma prosa que é muito influenciada pela poesia o que lhe dá, quanto a mim, um interesse acrescido. Gostei de a ler. Não me admirei que fosse do Porto. Eu conheço bem a cidade onde vivi 20 anos e adivinhei-a nas japoneiras, nas confeitarias, nas igrejas cheias de flores, nos parques e nos shoppings de geometria funcional, no S. João, logo em «Caderno, Clavicórdio». Sei que não é importante, mas «sentir» através de uma leitura uma cidade, um ambiente é porque, provavelmente de um modo involuntário ou não, a escrita cumpriu o seu papel. Porque nos fez sentir. É isso o mínimo que exijo de um livro. Tal como a existência do fogo ou de qualquer outro elemento unificador. Este fogo que atravessa toda a sua escrita. Está presente em brasas, em lenha, em árvores, nas fagulhas da siderurgia do pai que lhe marcavam a cara, no calor do corpo desmembrado de Eva e no calor cálido do corpo doente de David. Nos silêncios e nas vozes. Onde há fogo, há água e terra húmida ou incandescente. Li e reli «Clavicórdio» e tentei extrair o sentido que Andreia C. Faria lhe dá. O sentido final é de um resgate a uma entidade superior que construiu o amor e o ódio: «Um sonho range como um caixão, mas é lúcido como um aquário e sabe florir. Acontece ao contrário da vida e é a vida. O sonho está para a vida como o ódio está para o amor. O ódio é a raiz do amor, aquilo que nele cresce e se oculta. E é sempre a raiz que comporta a verdade.» (pág.6). Talvez a superação do amor e do ódio esteja na relação desenhada como um dos mais intrigantes e belos trechos de «Clavicórdio» no capítulo «O nosso melhor ouvido»: 

«Para poder cuidar de David passei a fazer o turno da noite no hotel. Sonhei com uma torre, disse-me quando cheguei a casa pela manhã. ''Sonhei com uma torre negra e dela víamos a cidade inteira a respirar. Já reparaste que nesta cidade não há cães, nem crianças, nem cemitérios? [Londres?] Há quanto tempo estás aqui? Lembras-te de que chegámos para partir, que a ideia de partir era o que nos fazia irónicos e vivos? Era o que nos fazia acordar. E, no entanto, a cidade, impossibilitada de ser outra cidade ou outra coisa qualquer que não ela mesma, foi sitiando a nossa vontade. Do topo da torre percebi a sua geografia. É um rochedo de ecos onde o calor esmorece, e nós aconchegamos os ouvidos e o peito para ovir melhor, para dormir melhor.'' Engoliu os comprimidos da palma da minha mão e continuou: ''Ouve, eu quero salvar-me. Quero encontrar Deus, ou uma solidão essencial e tranquila que me transporte para junto Dele.'' O transporte era eu. Negociava com Ele, como uma criança negoceia com a mãe para poder dormir sem pijama, a sua ida para os céus.» (pág.86)

Dois anjos provavelmente caídos que tentam negociar a sua própria existência num refúgio supraceleste, num mundo demasiado moderno que não lhes cabe: «Odeio este tempo (...) Odeio os boçais, os intelectuais, os hedonistas. Os pais que geram filhos num vagar de lobos, os filhos desdobrando a cara em lobo depois de terem depredado lobos. Odeio alegrias programadas, o que há de artificial e de fedor a solidão nas festas em que a multidão, como árvores abatidas, deixa de encobrir o vazio, a clareira.» (pág.7)

Uma autora a descobrir, sem dúvida.