segunda-feira, outubro 10, 2022

«Montaillou - Cátaros e Católicos numa aldeia occitana, 1294-1324», de Emmanuel Le Roy Ladurie

 

Edições 70, 1975, 2ª ed.1982
Tradução de Nuno Garcia Lopes e Pedro Bernardo

É um trabalho mais que pormenorizado: estamos perante um verdadeiro «cusco» que faz, no papel de historiador, um levantamento do quotidiano de uma aldeia occitana - Montaillou entre os séculos XIII e XIV. Esta aldeia faz parte de uma grande rede de aldeias pirenaicas e (hoje) do sudeste de França quase completamente tomadas pela heresia cátara, embora com uma presença minoritária católica. Não se pense que uma e outra apresentavam práticas totalmente «puras». Essas práticas cruzavam-se: por um lado recusava-se a extrema-unção, mas pedia-se o consollamentum e a endura cátaras à hora da morte e inversamente também. Havia padres católicos que eram hereges e que não confessavam, nem davam hóstias porque não acreditavam na transubstanciação. Havia, por sua vez, perfeitos ou homens-bons cátaros que embora imbuídos de maniqueísmo oriental rezavam o Pater Nostrus ou a Ave Maria. Nada é tão simples como parece nesta região occitana onde a luta de classes se diluía num ódio cada vez maior partilhado por nobres, burgueses, camponeses e pastores contra os poderes políticos e religiosos da Île-de-France e Paris, ou seja, do Norte de França, para com os impostos senhoriais e dízimos clericais. Nunca se perdoará a brutalidade de Simon de Monfort contra as cidades, vilas e aldeias occitanas no século anterior e com os massacres correspondentes bem mais violentos do que fez contra Constantinopla. Os levantamentos não eram raros e aí víamos igualmente cátaros e católicos juntos.

É verdade que Le Roy Ladurie teve fontes históricas incríveis e uma sorte que não se deve desdenhar ao encontrar os registos minuciosíssimos de Jacques Fournier, inquisidor-mor contra o catarismo que não tolerava e que chegou a papa (talvez por isso mesmo) com o nome de Bento XII. Deixava a violência dos interrogatórios para outros. Preferia que o pormenor do interrogatório, as contradições, a delação e o medo do acusado de catarismo ou de valdismo seguisse o seu caminho. E apontava tudo em grossos volumes. São esses registos que foram parar às mãos do historiador que não se fez rogado. Está lá tudo: as amizades, as inimizades, a alegria, o ódio, as fratrias, as domus, as locus, os olhares, os casamentos, o sexo adúltero ou não, a comida, os animais. Enterramos os nossos pés nas vias das aldeias, sentamo-nos à lareira das domus, ouvindo estórias, bebendo um copo de vinho e um pão feito ao forno com peixe frito ou com um naco de perna de porco, animal demoníaco é certo, mas se estivesse presente um perfeito cátaro dar-lhe-íamos um fígado de bode. Um cura católico comeria de tudo! O papel da mulher é de tal modo importante que se pode dizer que estamos perante um matriarcado. Se na infância e na adolescência a mulher está numa situação perigosa (as violações e os raptos consentidos ou não, eram frequentes) à medida que ultrapassa a adolescência vai tendo um papel primordial nas comunidades por duas ordens de razões: os casamentos escolhidos por mulheres sucedem-se porque a esperança média de vida do homem é quase metade do da mulher (sessenta anos é o máximo a que o homem pode aspirar, mas a média é de 40 anos) e aumenta-lhe assim os recursos materiais e voz nas assembleias e finalmente porque uma mulher velha é mais respeitada do que um homem velho, isto na boa tradição kabila ou mediterrânica, como quiserem.

Não será de religião propriamente dita que se falará aqui. Mas falaremos de comunitarismo pré-capitalista onde não havia sequer moeda. A única que havia veio tardiamente e era a moeda francesa do norte, o parisis. Em plena Idade Média havia um poder dual: o senhorialismo e o comunitarismo aldeão e pastoril. O nomadismo transumante estava nas mãos dos pastores que se sentiam realmente livres e pobres, ao ponto de recusarem astutamente o casamento, devido ao facto de o serem, embora a poesia trovadoresca da língua de oc (que influenciou a nossa poesia) nos dê bons exemplos de grande fraternidade com as mulheres de muitas aldeias occitanas! Fraternidade aqui é um eufemismo, visto que o pastor era partilhado por várias mulheres de aldeias diferentes com consciência disso mesmo. O tabu do incesto ia até à prima de primeiro grau e, evidentemente, aos irmãos. Já mais misterioso é o tabu entre cunhados.

As decisões eram tomadas por assembleias livres comunitárias onde se partilhava o gado bovino, ovino e a respetiva lã e carne. Havia pastos e campos cerealíferos comuns. Isto não queria dizer que os pastos e os campos eram de toda a região de Sabhartès, onde pertence Montaillou. Para os usarem era necessário que o pastor ou camponês tivesse de ser casado com alguém da terra ou aldeia a que pertencesse os pastos ou os campos. Este comunalismo já existia desde o século XIII e no XVIII e mesmo no início do século XIX era possível assistir a estas práticas que não deixavam de ser algo rígidas para que pudessem vingar. E vingou. Durante muito tempo não se pagou o dízimo ou impostos senhoriais ao rei francês o que fez com que a Occitânia pagasse bem caro com uma repressão brutal a que a própria heresia serviu de causa aparente para uma regulação fiscal por parte do Estado. Antes da Inquisição que retirou terras quer a nobres, quer a camponeses, sob a acusação de heresias, engordando a nobreza e clero do norte, as assembleias é que serviam de mediação fiscal para com o estado central. 

É notável o registo da vaga de refugiados que a repressão inquisitorial provocou. Fala-se da Lombardia, Sicília, Catalunha, Espanha. Na minha opinião essa onda enorme de fugitivos veio até Portugal onde os recebemos como povoadores altamente necessários para um país despovoado. E a toponímia já nos ajuda com algumas corruptelas: Proença/Provence, Montalvão/Montauban, albi-castrense/Albi, Tolosa/Toulouse, Rodão/Ródano, Nisa/Nice e por aí fora. Quanto aos patronímicos como «Catarino» já aqui falámos, mas não deixa de ser estranho que exista na raia espanhola, como no litoral de arroteias onde este nome prolifera.

Caso notável era que esta comunalismo se estendia  por todos os Pirenéus inclusivamente para a Catalunha e Aragão. Com esta regiões se faziam trocas comerciais e de pastoreio quer de um lado, quer de outro. Para Navarra e País Basco não temos notícia nos registos de Jacques Fournier, mas sabemos que aí havia um forte comunalismo mas aparentemente sem contactos com a Occitânia. Havia portanto cátaros desde as regiões hoje espanholas até Toulouse e Montpellier. 

Há uma figura central em todo o livro que, habilmente, Le Roy Ladurie nos apresenta. É Pierre Maury, pastor, cátaro, não muito praticante é certo, mas portador de uma filosofia muito própria que nos remete para a existência de um espírito verdadeiramente livre e acerrimamente crítico dos padres e mesmo dos frades menores. A página 160 e seguintes são todas elas um manifesto de um ideal igualitário e democrático (até nómada) possível nos século XIV. O que se questiona é por que razão este tipo de vida foi usurpado pelas cidades das confrarias e do corporativismo mercantil e usurário. Até à derrota do comunalismo que, astutamente, o poder o fez confundir com a pobreza e ignorância. Ironicamente, este livro tão pleno de fontes históricas e no período em questão, não foi registado qualquer período de fome, embora houvesse tempos de penúria em anos agrícolas não muito bons, mas fome generalizada como em outros contextos não houve. A solidariedade e hospitalidade entre as domus e as locus eram obrigatórias para os que estivessem em dificuldades. 

Numa época de colapso a todos os níveis como a que estamos a viver hoje talvez fosse uma fonte de bom senso e prazer ler este livro, atentando com a minúcia de um Jacques Fournier, o que de bom e útil comunidades inteiras foram capazes de criar durante séculos. Conseguiremos reerguer essas experiências?

António Luís Catarino