«O Homem que sabia demais», Álvaro Lapa
Uma das maiores retrospetivas de pintura está a decorrer no Porto, numa exposição fantástica em Serralves com 300 das suas obras, cuja curadoria pertence a Miguel von Hafe Pérez. Álvaro Lapa, pintor e escritor, nascido em Évora em 1939 e falecido no Porto em 2006, foi um dos pintores de arte contemporânea que possivelmente influenciou mais a nova geração. As presentes obras entre pinturas, desenhos, objetos e livros expostos compreendem os anos de 1963 a 2005. Não são despiciendas estas datas. Álvaro Lapa, numa retrospetiva sua de 1994 a 2006, rejeita toda a sua obra antes de 1968 argumentando que só tinha encontrado o seu «traço» a partir deste ano. Concordo absolutamente com a opção tomada de algum risco curatorial sempre exposto à crítica miudinha. Daí, o nome da exposição No tempo todo. Conhecêmo-lo assim melhor. Autodidata enquanto pintor, escolhe primeiro Direito e opta em definitivo pela Filosofia tornando-se professor de Estética na Faculdade de Belas-Artes do Porto. Vale a pena observar-lhe o percurso: liceu de Évora onde é aluno de Vergílio Ferreira, mas mais importante que isso, denuncia o ambiente de «padre-pide» da terra latifundiária antes de 1974 e contacta António Charrua, António Palolo, António Areal e Joaquim Bravo (que foi meu colega em Lagos e por quem conheci Lapa). Forma-se um trio sólido de provocação imediata nas artes: Lapa-Bravo-Palolo. Defendem, com palavras do primeiro a condição do artista: 1) uma arte não portuguesa; 2) uma solidão não dividida; 3) um único limite ao acto, o do originário. Estuda Milarepa, um sábio tibetano do século XI e é ligeiramente influenciado pela filosofia zen, tão cara aos beatnicks americanos. As figuras negras que verão em alguns quadros constituem o que ele chama de «Homem sem esforço, sem propósito, sem utilidade». Recusa violentamente, já a viver em Lagos, o conceito de indústria cultural e aqui vemos Bravo com ele, sustentados pelas filosofias de Adorno e Benjamim. Recusa igualmente os perigos da dita cultura e principalmente o conceito de «vanguarda que define como um termo gasto como uma rameira velha que se vende a pataco». Assume o ventriloquismo, espécie de alter ego (segundo Estrella de Diego), de Abdul Varetti, escritor falhado, siciliano do século XIII. João Ribas, contudo, assume estas pinturas como heterónimo que proclama «Isto, isto não é pintura!». A pintura de Lapa é pictográfica. Lê-se, transforma-se em cores e proclamações ou profecias. Pessoalmente, o que me fascina mais em Lapa é o conceito de colagem numa união entre partes aparentemente díspares, dar coesão aos opostos, integrar signos e significados diferentes. Creio que a liberdade em Lapa encontra-se aí. No conceito de colagem, esta torna-se vácuo.
Sorte. Tive a sorte de, ao ver No tempo todo, assistir a leituras das leituras de Álvaro Lapa, organizadas pela inexcedível Regina Guimarães e Amarante Abramovici. Não podendo, por falta de espaço, apontar todos os nomes que influenciaram o artista, entrego-vos as mais significativas: Luiz Pacheco (Ana Deus), Cervantes (Isaque Ferreira),Ferlinghetti (Pedro Eiras), Joyce (Rui Spranger), Tristan Tzara (Rui Reininho), Louis Aragon (Bernardo Sarmento) e outros, muito outros. Lapa, em 1971, dizia-nos sabiamente: «Ocioso, pois? Sim, o meu progresso tem-se gerado para o ócio, e nisso me vejo cada vez só e livre, A arte é a degradação do silêncio».
António Luís Catarino, 18/04/2018