Os Xutos e
Pontapés são, possivelmente, a melhor banda rock. Porque são genuínos e Zé
Pedro, que faleceu aos 61 anos numa morte anunciada há uns tempos, conseguia
dar-lhe a vida no palco e nas letras que compunha. Era verdadeiramente credível
como rocker. Sem querer, quase sem querer, acompanhámo-lo a partir dos finais
da década de 70 e inícios de 80, ainda no Rock
Rendez-Vous onde íamos beber umas cervejas e onde o haxixe e a erva corria,
frenética, na inicial movida lisboeta. Zé Pedro e os Xutos topou-nos a todos,
razão do enorme êxito a que se borrifavam totalmente. Entendíamo-nos bem: eles
cantavam o que queríamos ouvir, nas nossas vidas dos finais dos 20 anos,
acabados os tempos revolucionários e começo da recuperação da democracia
normalizada. Eles punks, nós new wave. Sem esperança, sem dinheiro,
vagueando na deriva da noite que nos havia de queimar-nos a todos, ouvíamos
Xutos e a guitarra do Zé Pedro. Em Contentores,
a poesia de quem quer ir «Voltar a zero num planeta distante/Memória de
elefante talvez/O outro mundo/A carga pronta metida nos contentores/Adeus aos
meus/amores que me vou/P'ra outro mundo/Num voo nocturno num cargueiro
espacial» ou rir e ir «E uma vontade de rir, nasce do fundo do ser/E uma vontade
de ir, correr o mundo e partir/A vida é sempre a perder» diziam, em O Homem do Leme. Em memória do Zé Pedro,
mas também em todos os amigos que morreram no antro da heroína e do álcool «No
fundo do mar/Jazem os outros, os que lá ficaram/Em dias cinzentos/Descanso
eterno lá encontraram» ou de jovens mulheres e homens de que perdemos o rasto,
que amámos perdidamente em sinais da noite e no império dos sentidos da
juventude de blusões negros «Procuro à noite, um sinal de ti/Espero à noite,
por quem não esqueci/Eu peço à noite, um sinal de ti/Por quem eu não esqueci/Por
sinais perdidos/Espero em vão/Por tempos antigos, por uma canção/Ainda procuro,
por quem não esqueci/Por quem já não volta, por quem eu perdi». Quantas vezes a
raiva estourou nos nossos dedos vendo os sonhos partirem assim de rajada em Não sou o único: «A ver os sonhos
partirem/À espera que algo aconteça/A despejar a minha raiva/A viver as
emoções/A desejar o que não tive/Agarrado às tentações/E quando as nuvens
partirem/O céu azul ficará/E quando as trevas abrirem/Vais ver, o sol
brilhará». Sim, Zé Pedro topou-nos de longe e viu os brilhos do céu azul, fosse
um anjo da guarda que nos fizesse voltar a sonhar e voar, como de causas
políticas concretas que ele abraçou e deu a cara. Infelizmente, o Circo de Feras que anunciou cá está em
todo o seu esplendor: «A vida vai torta/Jamais se endireita/O azar
persegue/Esconde-se à espreita/Nunca dei um passo/Que fosse o correto/Eu nunca
fiz nada/Que batesse certo». Geração derrotada, mas não vencida totalmente,
esperneia por um mundo ainda livre. Possivelmente, perderemos a última luta: «As
vagas que te esmagam/Contra tudo lutas/Contra tudo falhas». Queremos de volta
os nossos blusões negros, queremos de volta este amor juvenil. Não somos os
únicos. Tu, Zé Pedro, eras o único, sim.
António Luís Catarino, 6/12/2017