sexta-feira, janeiro 04, 2019

Há 100 anos ou quando os artistas dançavam 18


Boris Kustodiev - O Bolchevique, 1920

A anarquista Emma Goldman nem belo dia de inspiração disse: “Se não posso dançar, não é a minha revolução”. Há 100 anos, em 1917, a revolução russa ainda permitiu, nos seus primeiros tempos, que os artistas dançassem livremente, não esquecendo igualmente que alguns deles já o faziam desde 1905 na primeira tentativa de derrube do czar autocrático. A Okrana pouco se importava se eles dançassem ou não, preocupada que estava em prender e torturar bolcheviques, socialistas revolucionários, anarquistas, niilistas ou simplesmente moderados constitucionalistas. Em fevereiro de 1917, eles dançaram de facto nas ruas de Moscovo e Sampetersburgo. Embebedaram-se de liberdade e criatividade. Em 2017, Todorov escreveu, neste preciso ano da sua morte, um livro inquietante: «O Triunfo do Artista – A Revolução e os Artistas. Rússia: 1917-1941». É toda uma ode aos criadores, mas é também uma sinfonia de desespero dos que, a partir principalmente de 1928, anos da troika de Zinoviev, Kamenev e Estaline, viram coartados os seus direitos de criação. Não que Lenine ou Trotsky tivessem uma especial preferência por vanguardas artísticas que não obedecessem ao cânone bolchevique de «servir o povo». Há opúsculos que, vistos aos olhos de hoje, são anedóticos. No entanto, foram benevolentes, aturando-os, lamentando a sua irrequietude como se fossem paizinhos de garotos insubordinados e malcomportados. Valeu-lhes ainda a faculdade de poder dançar. Maiakovsky, o poeta que aderiu aos bolcheviques, criador o futurismo russo, bate com a porta quando observa que a política interfere com a arte e continua com as performances provocatórias. Odeia o espírito burguês, faz cartazes para o Exército Vermelho na guerra civil e desconhece as conjeturas que já o colocam em causa devido à sua extravagância. Suicida-se mais tarde, diz-se que por amor. Alexander Blok adere entusiasticamente à revolução, tornando-se, inclusive, comissário bolchevique. No fim escreve «o poeta morre porque já nada tem para respirar; a vida perdeu o sentido». Recusa comer, tratar-se de uma crise cardíaca, de subnutrição, de esgotamento. O encenador Meyerhold depois de aderir à revolução compreendeu depressa demais que as suas peças teatrais não estavam de acordo com os objetivos do estado soviético. De resto, muitos artistas emigram, fogem de determinadas formas e calam-se, alguns para sempre. Diaghilev, dos «Ballets Russes», Stravinsky, Natalia Gontcharova ou Larionov nem chegam à Rússia. Nos anos seguintes a 17, emigram Rachmaninov, Prokofiev, Kandinsky, Chagall, Bunine, Nabokov e até Gorki que muda de ares para a Itália. Ficam, embora controlados ao ínfimo pormenor da vida, Bulgakov, Pasternak, Tsvetaieva, Mandelstam, Zamiatine, que escreve a distopia «Nós» e o pintor suprematista Malevitch que, só ele, seria objeto de análise para um artigo. O problema de dançar ou não em 1917, prende-se com o grande problema do homem ou mulher da esquerda atual: acordam a ler uma utopia e adormecem com uma distopia. É que, quando o objetivo é o de criar um regime totalitário, os artistas são sempre os primeiros a dançar.


António Luís Catarino, 23/12/2017