Boris Kustodiev - O Bolchevique, 1920
A anarquista Emma Goldman nem belo dia de inspiração disse:
“Se não posso dançar, não é a minha revolução”. Há 100 anos, em 1917, a
revolução russa ainda permitiu, nos seus primeiros tempos, que os artistas
dançassem livremente, não esquecendo igualmente que alguns deles já o faziam
desde 1905 na primeira tentativa de derrube do czar autocrático. A Okrana pouco
se importava se eles dançassem ou não, preocupada que estava em prender e
torturar bolcheviques, socialistas revolucionários, anarquistas, niilistas ou
simplesmente moderados constitucionalistas. Em fevereiro de 1917, eles dançaram
de facto nas ruas de Moscovo e Sampetersburgo. Embebedaram-se de liberdade e
criatividade. Em 2017, Todorov escreveu, neste preciso ano da sua morte, um
livro inquietante: «O Triunfo do Artista – A Revolução e os Artistas. Rússia:
1917-1941». É toda uma ode aos criadores, mas é também uma sinfonia de
desespero dos que, a partir principalmente de 1928, anos da troika de Zinoviev,
Kamenev e Estaline, viram coartados os seus direitos de criação. Não que Lenine
ou Trotsky tivessem uma especial preferência por vanguardas artísticas que não
obedecessem ao cânone bolchevique de «servir o povo». Há opúsculos que, vistos
aos olhos de hoje, são anedóticos. No entanto, foram benevolentes, aturando-os,
lamentando a sua irrequietude como se fossem paizinhos de garotos
insubordinados e malcomportados. Valeu-lhes ainda a faculdade de poder dançar.
Maiakovsky, o poeta que aderiu aos bolcheviques, criador o futurismo russo,
bate com a porta quando observa que a política interfere com a arte e continua
com as performances provocatórias. Odeia o espírito burguês, faz cartazes para
o Exército Vermelho na guerra civil e desconhece as conjeturas que já o colocam
em causa devido à sua extravagância. Suicida-se mais tarde, diz-se que por
amor. Alexander Blok adere entusiasticamente à revolução, tornando-se,
inclusive, comissário bolchevique. No fim escreve «o poeta morre porque já nada
tem para respirar; a vida perdeu o sentido». Recusa comer, tratar-se de uma
crise cardíaca, de subnutrição, de esgotamento. O encenador Meyerhold depois de
aderir à revolução compreendeu depressa demais que as suas peças teatrais não
estavam de acordo com os objetivos do estado soviético. De resto, muitos
artistas emigram, fogem de determinadas formas e calam-se, alguns para sempre. Diaghilev,
dos «Ballets Russes», Stravinsky, Natalia Gontcharova ou Larionov nem chegam à
Rússia. Nos anos seguintes a 17, emigram Rachmaninov, Prokofiev, Kandinsky,
Chagall, Bunine, Nabokov e até Gorki que muda de ares para a Itália. Ficam,
embora controlados ao ínfimo pormenor da vida, Bulgakov, Pasternak, Tsvetaieva,
Mandelstam, Zamiatine, que escreve a distopia «Nós» e o pintor suprematista
Malevitch que, só ele, seria objeto de análise para um artigo. O problema de
dançar ou não em 1917, prende-se com o grande problema do homem ou mulher da
esquerda atual: acordam a ler uma utopia e adormecem com uma distopia. É que,
quando o objetivo é o de criar um regime totalitário, os artistas são sempre os
primeiros a dançar.
António Luís Catarino, 23/12/2017