Céline
O ano era o
de 1980 e encontrava-me em Coimbra, numa Universidade tão antiga, quanto
resistente aos ventos de inovação e crítica que, no país, desde a revolução de
1974 varriam o país. Depois da tempestade transformadora veio a bonança
normalizadora e, enquanto os soldados voltavam para os quartéis, rapando as
longas barbas e cabelos, os operários e camponeses desocupavam as fábricas e
terras; os estudantes, esses, não cortavam os seus cabelos e barbas, mas
preparavam-se para voltar a estudar as longas matérias e tornarem-se úteis à
sociedade – tarefa muito difícil, ou quase impossível, como viriam a comprovar
mais tarde, pelo visível desprezo que o Estado democrático lhes dedicava.
Nos
entretantos do tempo, eu lia poesia, literatura vária, ouvia música e rádio.
Muito rádio. Entre os meus programas favoritos contava-se o excelente «Café Concerto»
de Maria José Mauperrin que, com as escolhas jazzísticas de Aníbal Cabrita, fazia
as delícias dos meus dias da semana entre as 22:00 e a 24:00. Nunca mais me
esqueci de uma entrevista em particular e que, casualmente num encontro entre
livros, relembrei-a com Aníbal, aqui no Porto no ano passado. Maria José
Mauperrin, entrevistava Jorge Listopad. Este, um dramaturgo e realizador de
origem checoslovaca, contava que veio para Portugal, afastando-se do estado do
«socialismo real» que, nos anos 50, já se consolidava no seu país. Lá, o
entusiasmo pela libertação também esmorecia, como em Portugal dos anos 70. Embora
resistente aos nazis no seu país e na Jugoslávia, meteu-se no seu Skoda, com a
mulher e as duas crianças gémeas e só parou em Portugal, travando à vista do
Atlântico. Era uma figura algo controversa mas, pessoalmente, muito empática.
Que tem isto a ver com Céline? A entrevista com Mauperrin continuava interessante
e Listopad contava que, na sua errância, tinha chegado aos arredores de Paris,
noite chuvosa, e as duas gémeas encontravam-se doentes com febre. Uma
gastroenterite, creio. Entrou na vila de Meudon por acaso e, num café,
perguntou se conheciam algum médico perto. Apontaram-lhe uma casa. Listopad,
então, bateu à porta e saiu-lhe um homem rude com um casaco grosso e rodeado de
cães. Era Louis-Férdinand Destouches e Listopad reconheceu-o como Céline. Era o
tal médico, sim. Ao pedir-lhe ajuda, Céline ter-lhe-á dito que não podia
observar e curar as filhas dele porque…tinha de dar comida aos cães! Nunca mais
esqueci esta sequência e mostra bem as partículas elementares da raiva de que
era feito Céline, cuja memória dos seus panfletos antijudaicos, volta a incomodar
a nossa veia iluminista. Fosse este homem quem fosse, e era radicalmente mau
como pessoa, não invalida ter escrito dos maiores libelos contra a guerra como
«Viagem ao fim da Noite» e «Morte a Crédito». Não se trata de uma tentativa
metafórica mas as gémeas de Listopad, essas, salvaram-se, apesar de tudo.
António Luís Catarino, 1/03/2018