Devo dizer-vos que se trata de uma história verdadeira que
aconteceu comigo e se terá passado certamente convosco. As pessoas que hoje vão
nos cinquenta anos, sessenta e outros «enta» sabem que perderam livros que ao
longo do tempo constituíram a sua biblioteca quando tinham quinze, dezasseis
anos e mais uns dos que vieram logo a seguir. Penso que a década em que tivemos
vinte anos talvez seja mesmo a que desenha a nossa personalidade estampada nos
livros e que se reflete até hoje, com algumas variantes, bem-entendido.
Entretanto, as bibliotecas pessoais foram alargando-se, engordando, vítimas do
sabor do tempo e da moda. E os poetas que nos abandonaram vendendo-se ao status quo? E os nossos autores preferidos
que, entretanto, se renderam aos prémios literários? Quantos destes livros
foram deitados ao lixo e substituídos por outros mais «modernos». Agora vejam:
para além da contínua substituição dos livros, dos empréstimos a alguns a quem
perdemos o rasto, houve também mudanças de casas e livros perdidos, inundações,
divórcios, separações litigiosas ou compreensivas, embora não tanto que
impedisse o ex-cônjuge de dizer «estes são meus!» e as bibliotecas continuaram a transformarem-se.
Ora, um bom amante de livros não os esquece tão facilmente. Aqueles que perdi,
pensava eu definitivamente, aparecem gloriosos, agora, nos alfarrabistas. Já
passaram 40 e muitos anos e torna-se lógico que numa visita a um alfarrabista
se encontram os livros da nossa juventude. Agora vem a história: há uns anos
vendi parte da minha biblioteca para conseguir dinheiro para uma viagem a
grande parte da Europa numa autocaravana. Devo dizer que escondi do comerciante
alguns de que não podia sequer pensar em separar-me. Mas a grande parte da
poesia, do romance, dos livros de História, de Filosofia, Sociologia,
Antropologia, de catálogos de arte, foram-se. O arrependimento veio logo a
seguir, de alguns livros que deixei ir: alguns do editor Vítor Silva Tavares, um
de António Maria Lisboa, de Cesariny, de Nuno Júdice, de Mircea Eliade ou de
Edgar Morin. Muitos. O que me acontece agora é reencontrar-me com eles nas
lojas de livros antigos. Tenho recuperado muitos a preços proibitivos. Do que
mais senti a falta, aquele que me fez chorar copiosamente a alma foi a minha
venda criminosa de um livro do poeta surrealista Cesariny. Eram os Textos de afirmação e combate do Movimento
Surrealista Mundial, uma resenha luminosa da poesia surrealista que se fez
pelo mundo todo. Mas há uma semana, readquiri-o numa Feira do Livro. O preço
era exorbitante: 175 euros, quando, com 22 anos, me custou uns 200 escudos que
correspondem hoje a 1 euro. E assim tenho-me afastado paulatinamente das
livrarias dos grandes espaços e enfio-me em alfarrabistas procurando o meu
passado nos livros que possuí. Cada vez que reponho um livro na minha estante,
sinto-me mais velho, mas incomparavelmente mais feliz. E mais falido, também.
Mereço-o.
António Luís Catarino, 13/06/2018