António Lobo Antunes / foto «Visão»
Foi uma simples frase de Marc Ferro, no seu derradeiro livro
Cegueira,
que me fez pensar na epistolografia e na cinematografia de guerra. Dizia este
historiador que o filme Non ou a vã glória de mandar, de
Manoel de Oliveira, é uma forma de contar a derrota de 1578, em Alcácer Quibir,
transportando-a para todas as guerras que se lhe seguiram, entre elas, a
colonial. Este tema encontra-se noutros realizadores como João Botelho, Um
adeus português, e escritores como Assis Pacheco, Mário de Carvalho,
Lídia Jorge e outros para quem a guerra colonial portuguesa não foi uma simples
nota de rodapé da História ou que se pudesse esconder debaixo do seu tapete. A
guerra durou 13 longos anos em 3 frentes africanas e mobilizou 1 milhão e meio
de jovens. Mais de 13 mil não vieram para casa e centenas de milhar diminuídos
física e intelectualmente. A guerra foi terrível e só terminou em 1974. É aqui
que chamo António Lobo Antunes, um escritor ímpar na nossa literatura. A guerra
colonial absorveu a sua escrita e deu-lhe forma física, dolorosa e incongruente,
como um fardo coletivo. Sabemo-lo no excelente filme de Ivo Ferreira, Cartas
da guerra, baseado no livro que as filhas de Lobo Antunes editaram na
epistolografia mantida entre o pai e a mãe, esta recentemente falecida. São
perto de 400 aerogramas (cartas que se destinavam às famílias dos soldados da
frente) de amor entre ele e a mulher, Maria José. Ele, médico em Angola,
assiste ao pior das guerras: aos massacres, às torturas perpetradas pela PIDE e
por comandos, aos amigos a morrerem, à cobardia e ao heroísmo vão. Não mostra
nenhum moralismo ou arrependimentos serôdios. Era a guerra que claramente
contestava e uma pesada solidão que se pressente quer no filme de Ivo Ferreira
ou na leitura das cartas. Quase toda a obra de António Lobo Antunes reflete
isso mesmo desde os primeiros O cu de judas ou A
memória do elefante, por acaso (?), recusados por editoras nos finais
dos anos 70 e com a jovem democracia cicatrizando ainda as feridas da guerra,
até às obras posteriores deste autor. D'Este viver aqui neste papel descripto:
Cartas da Guerra é como se chama o livro que deu lugar ao filme de Ivo
Ferreira e que levou o escritor a afirmar que «É sobretudo uma história de amor
e isolamento e de como um Estado pode privar mais de um décimo da população das
suas vidas, contaminando um país inteiro. É uma declaração de amor e uma
questão de sobrevivência». Essa luta pela sobrevivência sente-se a cada frame
do filme ou cada palavra de uma carta. Mas às vezes não. O espírito soçobra
perante a estupidez da guerra e da sua sujidade, da nostalgia de um país adiado,
pequenino, intriguista, pobre e sujeito à vidinha quotidiana, cuja fuga
possível seria o futebol, o fado e Fátima. Nesse desespero, Lobo Antunes
escreve, de Angola para Portugal, todos os dias e redige palavras sublimes à
mulher que ama: «Gosta sempre de mim. Imagino o frio que aí estará, a nossa
casa de que me hei-de lembrar sempre, apesar de nunca mais voltarmos para lá, o
porteiro, a rua, os móveis, a cozinha, a cama com o cobertor ao meio, as
gravuras, e vejo como fui feliz aí contigo, como tenho sido sempre feliz
contigo, como gostaria de voltar, de voltar depressa para poder ver-te,
tocar-te, falar-te, meter a minha chave na fechadura do teu corpo, a língua na
tua boca, apertar-te o peito com as mãos, morder-te o pescoço, voar, lembro-me
de pormenores absurdos, do sinal do peito do teu pé, do teu dente de ouro, do
canal da tua nuca, e gosto absurdamente de todos: minha senhora, eu amo-a.»
António Luís Catarino, 21/03/2018