terça-feira, janeiro 22, 2019

De como Almeida Faria decompõe Portugal, o seu passado e destino / 25


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Almeida Faria nasceu em 1943 na alentejana vila de Montemor-o-Novo. Aos 19 anos publica Rumor branco com que ganha o Prémio Revelação da então Sociedade Portuguesa de Escritores. Outros se seguirão. Aluno de Vergílio Ferreira no liceu de Évora é com entusiasmo que este o vê como jovem prometedor, faltando-lhe a continuidade desse apoio aquando da saída de Paixão, em 1965, não vá o diabo tecê-las e de jovem prometedor não fosse tornar-se escritor concorrente. Segundo Almeida Faria, a relação esfriou-se e entende que estas invejas e maledicências são próprias de um país pequeno. Geografias, portanto. Não me escuso de afirmar a excelência de Almeida Faria e a sua enorme coerência. Uma vida, uma obra. Percorre a escrita poética em forma de prosa que se transforma em romance que se lê com avidez. Óscar Lopes, esse professor ímpar, diz que o uso recorrente de aliterações, anáforas, hipérbatos e principalmente a metáfora viva nos seus romances-poemas em «ritmo livre» é que liberta a leitura ritmada por pontuações abertas. Mas é Manuel Gusmão que nos dá a dimensão exata da coerência literária de A.F. projetada no tempo e que o leitor deduzirá se a leitura for rigorosamente cronológica da Trilogia Lusitana com Paixão (1965), Cortes (1978) e Lusitânia (1981) a que se veio juntar Cavaleiro andante (1983) transformando-se em Tetralogia Lusitana. Traduzido para várias línguas, em Espanha só se conhece Lusitânia, editado pela Alfaguara em 1985 e O conquistador, já fora da tetralogia, pela Tusquets, em 1997. A singularidade deste escritor prende-se com a forma de apresentar o romance destes quatro livros: Paixão, passa-se a uma sexta feira santa, Cortes a um sábado e Lusitânia no domingo de Páscoa. As personagens, do sul latidundiário português, sendo as mesmas, são submersas pelos acontecimentos e absorvidos pela História, espaçados pelo tempo de quase trinta anos. Houvesse uma teoria da relatividade literária e Almeida Faria seria o seu inventor, retirando essa condição a Joyce, obviamente. A técnica literária do escritor varia entre a epistolografia até à descrição das personagens e dos anos de brasa do pós-25 de abril e da descolonização. Em 2012, publica O Murmúrio do mundo de uma viagem a Goa, talvez à Índia camoniana, onde perfila citações várias e as cruza com a História. Apresento-vos o final de Cortes que, infelizmente, não o viram traduzido em espanhol: «João Carlos não acha graça, diz: merda de pátria, azar ter caído aqui, ninguém nem nada me consola, desastre ter tomado o comboio errado, em descensão há séculos, apodrecido por dentro, por fora velho cagado, arrumado em ramal fechado, atacado de demência do passado, mantido em vida por extremo artifício, tresanda a bafio, a morte, a melancolia inglória.(...)» Onírico, clássico, romance-ensaio como afirma Óscar lopes, poema-prosa, psicanalista rigoroso de um povo, como diz dele Eduardo Lourenço, que sabe, como ninguém, quais os nossos labirintos feitos da saudade. Volto a Almeida Faria, em Lusitânia: «Sair desta terra não seria novidade. Gerações de gente sobrevivente, não raro subserviente, não são um caso à parte. Os mais valentes sempre emigraram.»

António Luís Catarino, 20/05/2018