terça-feira, agosto 31, 2010
Joaquim Castro Caldas [1956 - 2008]
ir indo
a gente aprende
o coração à lareira
que se fica a ir
e reacende
até que um dia
alguém se lembre
Joaquim Castro Caldas
sábado, agosto 28, 2010
um verbo | Joaquim Castro Caldas
um verbo
o amor não se diz
isso não se faz ao amor
adeus tempo e modo
não se tem é-se-lhe
o amor quer-se dizer
sabe-nos para a vida
não nos faz espécie
o amor não se diz
isso não se faz ao amor
dá-se-nos damos-lhe
Joaquim Castro Caldas
in Mágoa das Pedras
sexta-feira, agosto 27, 2010
Os cadernos de Gémeo Luís na Visão
Esta semana, na revista Visão, um destaque muito especial para Gémeo Luís (a.k.a. Luís Mendonça), colaborador de muitas derivas e vencedor, em 2006, do Prémio Nacional de Ilustração.
Entre outros trabalhos, na Deriva, Gémeo Luís ilustrou O Aquário (texto de João Pedro Mésseder) que conhecerá em Setembro uma nova edição..
Plano Nacional de Leitura - Livro recomendado para o 3º ano de escolaridade destinados a leitura orientada na sala de aula - Grau de Dificuldade II.
Uma história de peixes, cores e sabores para os mais pequenos. Um aquário é também um mundo em miniatura, onde se jogam relações entre iguais e diferentes, novos e velhos, e onde se geram preconceitos e ideias feitas. As ilustrações ajudam a compreender situações e personagens, sem deixarem de construir um cenário onírico e sedutor.
O Aquário de João Pedro Messeder
Críticas de imprensa
"Deste modo, nota-se, que, no desenlace de O Aquário, como, efectivamente, se verifica ao longo de toda a construção deste conto, existe um intuito moralizante, que, quanto a nós, em nada prejudica a criatividade da obra em análise, facto que, em última instância, acaba por ser consentâneo com a simbologia comummente atribuída a este objecto/espaço, na medida em que o aquário simboliza "a solidariedade colectiva, a cooperação, a fraternidade e o desapego em relação às coisas materiais" (Chevalier e Gheerbrant, 1994: 77), valores acompanhados, nesta obra de João Pedro Mésseder e Gémeo Luís, de um invulgar posicionamento pautado pelo altruísmo, pela amizade, pela dedicação social, pela tolerância e, até, pelo multiculturalismo."
Sara Reis da Silva, Rádio Terra Nova
Entre outros trabalhos, na Deriva, Gémeo Luís ilustrou O Aquário (texto de João Pedro Mésseder) que conhecerá em Setembro uma nova edição..
Plano Nacional de Leitura - Livro recomendado para o 3º ano de escolaridade destinados a leitura orientada na sala de aula - Grau de Dificuldade II.
Uma história de peixes, cores e sabores para os mais pequenos. Um aquário é também um mundo em miniatura, onde se jogam relações entre iguais e diferentes, novos e velhos, e onde se geram preconceitos e ideias feitas. As ilustrações ajudam a compreender situações e personagens, sem deixarem de construir um cenário onírico e sedutor.
O Aquário de João Pedro Messeder
Críticas de imprensa
"Deste modo, nota-se, que, no desenlace de O Aquário, como, efectivamente, se verifica ao longo de toda a construção deste conto, existe um intuito moralizante, que, quanto a nós, em nada prejudica a criatividade da obra em análise, facto que, em última instância, acaba por ser consentâneo com a simbologia comummente atribuída a este objecto/espaço, na medida em que o aquário simboliza "a solidariedade colectiva, a cooperação, a fraternidade e o desapego em relação às coisas materiais" (Chevalier e Gheerbrant, 1994: 77), valores acompanhados, nesta obra de João Pedro Mésseder e Gémeo Luís, de um invulgar posicionamento pautado pelo altruísmo, pela amizade, pela dedicação social, pela tolerância e, até, pelo multiculturalismo."
Sara Reis da Silva, Rádio Terra Nova
"João Pedro Mésseder conta aos mais pequenos a história de alguns peixinhos vestidos com sentimentos de gente. No seu pequeno mundo (perscrutado pelo olhar de um menino) os habitantes do aquário assumem comportamentos que vincam a diferença e atenuam a natureza que os une. Numa situação limite, as atitudes azedas e preconceituosas acabam por ceder, dando lugar à confraternização, amizade e entreajuda - sem quaisquer moralismos forjados." Salomé Castro, Comércio do Porto, 28 de Dezembro de 2004
"Uma história sobre a diferença e aceitação, mas debaixo de água. Peixes de cores e de naturezas diversas terão de se habituar a partilhar o espaço, o tempo e a comidinha. Não é fácil, como todos o sabem. Mesmo em terra seca, há que ter paciência e aprender a conhecer os outros. E não se trata apenas de sobrevivência. João Pedro Mésseder e Gémeo Luís formaram uma boa equipa para dar início à aposta da Deriva no formato álbum ilustrado para o público infantil." Rita Pimenta, Público (Publicozinho), 4 de Dezembro de 2004
"(...) Belíssimo livro escrito por João Pedro Mésseder e ilustrado por Gémeo Luís que conta as desventuras dum peixe vermelho forçado a brincar só por um cardume antipático." Jornal das Letras, 22 de Dezembro de 2004
quarta-feira, agosto 25, 2010
Para que serve a Literatura?, Antoine Compagnon [trad. José Domingues de Almeida]
Antoine Compagnon, autor de La Seconde Main Ou Le Travail De La Citation, Le Demon De La Theorie: Litterature Et Sens Commun e Les Cinq Paradoxes De La Modernité, apenas para referir os mais conhecidos, conhece agora uma tradução portuguesa, resultante de uma parceria da Deriva Editores com o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa,da Faculdade de Letras do Porto.
O livro em causa é Aula Inaugural no Collège de France - La Littérature, Pour Quoi Faire ? - Para que serve a Literatura?, com tradução de José Domingues de Almeida ). Um ensaio essencial que problematiza o espaço e o valor da literatura hoje.
As colecções Pulsar e Cassiopeia, resultantes de uma parceria com o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa,da Faculdade de Letras do Porto, dão a conhecer estudos muito relevantes no âmbito da Teoria da Literatura.
Na Pulsar, foram já editados Jean‑Pierre Sarrazac (com A Invenção da Teatralidade seguido de Brecht em Processo e O Jogo dos Possíveis), Pascal Quignard (com Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos).
Na Cassiopeia, que já acolheu um inédito de Pedro Eiras, intitulado Tentações: Ensaio sobre Sade e Raul Brandão, teremos brevemente um ensaio sobre Kafka: Kafka, um Livro sempre Aberto, de Teresa Martins de Oliveira e Gonçalo Vilas-Boas.
Na Pulsar, foram já editados Jean‑Pierre Sarrazac (com A Invenção da Teatralidade seguido de Brecht em Processo e O Jogo dos Possíveis), Pascal Quignard (com Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos).
Na Cassiopeia, que já acolheu um inédito de Pedro Eiras, intitulado Tentações: Ensaio sobre Sade e Raul Brandão, teremos brevemente um ensaio sobre Kafka: Kafka, um Livro sempre Aberto, de Teresa Martins de Oliveira e Gonçalo Vilas-Boas.
terça-feira, agosto 24, 2010
Antoine Compagnon: Para que Serve a Literatura? [col. PULSAR]
(imagem daqui)
A propósito do lançamento de Para que Serve a Literatura?, de Antoine Compagnon, na colecção PULSAR, fruto de uma parceria com o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa, da Faculdade de Letras do Porto, onde foram já editados Jean ‑Pierre Sarrazac (com A Invenção da Teatralidade seguido de Brecht em Processo e O Jogo dos Possíveis), Pascal Quignard (com Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos), não resistimos a partilhar um excerto de um texto Rosa Maria Martelo que pode ser lido na íntegra aqui.
É certo que a literatura “pode” muita coisa: pode proporcionar um contacto único com a complexidade do discurso; pode associar discurso e emoção estética; pode promover o conhecimento do outro no tempo e no espaço; pode facultar ao leitor um auto-conhecimento. E é certo que o que chamamos “literatura” é um conjunto de práticas discursivas de tal modo heterogéneo e diversificado que seria possível desenvolver aqui listagens imensas e cheias de especificidades, distinguindo o papel da poesia do da narrativa, distinguindo a função da literatura mais culturalista e de circulação restrita daquela que obtém largos sucessos de mercado, distinguindo a literatura para a infância e a juventudecomo uma área de criação específica, etc. Mas, hoje, talvez o mais importante seja transmitir aos estudantes de literatura, e de poesia em particular, que o seu trabalho incide sobre tipos de discurso que são extremamente abertos ao diálogo com outras artes, com outros discursos, com outras práticas culturais. Se no século XIX emerge, fortíssima, a relação entre Literatura e Nação, hoje o que sobressai é o modo como a Literatura põe em relação identidade linguística, cultural e social com a experiência intercultural que caracteriza o mundo em vivemos. Não há como recusar o breve diagnóstico de Antoine Compagnon, quando descreve o lugar da literatura na sociedade actual:
(...) le lieu de la littérature s’est amenuisé dans notre société depuis une génération:à l’école, où les textes documentaires mordent sur elle, ou même l’on dévorée;dans la presse, où les pages littéraires s’étiolent et qui traverse elle-même une crise peut-être funeste; durant les loisirs, où l’accélération numérique morcelle le temps disponible pour les livres. Si bien que la transition n’est plus assurée entre la lecture enfantine (...) et la lecture adolescente, jugée ennuyeuse parce qu’elle requiert de longs moments de solitude immobile.
Se pensarmos na exiguidade das actuais tiragens de livros de poesia, na sua reduzida visibilidade nas páginas da imprensa, onde facilmente “perde” diante das artes que exploram a imagem visual, se pensarmos na reputação de “difícil” que lhe atribuem os estudantes, no lugar geralmente periférico que os livros de poesia ocupam nas livrarias, esse diagnóstico não pode senão agravar-se.
sábado, agosto 21, 2010
Montolieu
Imaginem-vos cansados, mal dormidos, com alguma fome e a precisarem de descanso total depois de percorridos muitos quilómetros (entre os quais muitos a pé, em cidades europeias). Depois de pararem em cafés, em estradas secundárias do Languedoc e do País Cátaro e depois de desconfiarem do turismo de Carcassone, onde se encontravam milhares de pessoas, têm acesso a um lugarzinho chamado Montolieu, de 760 habitantes segundo um censo de 2000, com 15 livrarias. Quinze livrarias e alfarrabistas! Para não falar de um Hotel em cujo hall de entrada esperava que entrasse o inspector Maigret a todo o momento. Não faltava a Abadia (fortificada, claro) não estivéssemos nós em território de revoltas camponesas e hereges. Por falar nisso, a sede do PCF, outrora forte na região, foi transformada num estranhíssimo «espaço Che» onde pulavam algumas crianças e outros, mais velhos, bebiam café e bolos. Os idosos, provavelmente sem paciência para gerirem «espaços», jogavam no jardim central. Demorei-me dois dias, quase três e ainda hoje lá estaria, não fossem as sempiternas «obrigações».
Mas 15 livrarias e alfarrabistas, duas editoras, ateliers de produção artesanal de livros e ilustrações, bibliotecas numa pequena vila, mesmo que (soube-o depois) se lhe desse o nome de «village du livre» é obra que me custou uns euros (não muitos) em livros (atenção que vim com um saco cheio deles, pagando por um livro do século XVIII 6 euros, com desconto final de 1 euro!). Perdi-me naquilo, acreditem. Como me perdi na leitura de alguns livros, entre cerveja, cigarros e café do verdadeiro arábico, como estava escrito no tal hotel. O jazz e a música clássica esperavam por nós ao fim da tarde, ao ar livre, em restaurantes e poucos bares.
A história destes sortudos 760 habitantes é simples: nos anos 80 um bibliófilo de Paris, farto de estar por lá, criou, com a ajuda da Mairie e de uns quantos entusiastas locais, condições para virem com armas e muitas bagagens alfarrabistas de toda a França (e alguns ingleses também) para Montolieu. A pequena vila ainda hoje está em recuperação deste sonho, depois de ter falecido o seu mentor. Mas aquilo não pára. Só dele, de Michel Braibant, uma grande e antiga fábrica foi adaptada para um enorme lugar onde se pode vender e comprar livros de todos os géneros. Não sem que nos lembrassem que aquela antiga fábrica foi lugar de exílio forçado de 400 republicanos espanhóis que fugiam de Franco e que aquela pequena vila se recusou a entregar. A bandeira da Espanha republicana está lá a recordar-nos.
Nunca antes assentei este nome «Montolieu» no meu mapa mental ou em outro mais físico. Nunca ouvi falar de tal experiência ou desta pequeníssima vila. Mas fui lá ter – esta é, de facto, a teoria da deriva.
sexta-feira, agosto 20, 2010
Desesperar é preciso, Rui Bebiano e A Mobilização Global seguida de O Estado-Guerra Santiago López-Petit (trad. e notas de Rui Pereira)
Rui Bebiano, historiador, professor de História Contemporânea na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Estudos Sociais, destaca, no A Terceira Noite , A Mobilização Global seguida de O Estado-Guerra Santiago López-Petit (trad. e notas de Rui Pereira), num breve texto com o pertinente título - Desesperar é preciso - parafraseando a máxima dos navegadores antigos Navegar é Preciso.
Diz Bebiano:
Sublinho Santiago López-Petit, em A Mobilização Global, enquanto penso nesta cultura do um contra o outro apresentada como único cenário do futuro sem esperança em nome do qual tudo nos é pedido.
«Estamos sós face ao mundo. Ou, o que é o mesmo, interiorizámos aquilo que os nossos governantes nos repetem incessantemente: ‘a vossa situação depende apenas de vós mesmos’. E acreditamos que é assim. Temos nós próprios que sair do atoleiro, o que dito pelas palavras próprias da cultura empresarial significa que temos de nos avaliar continuamente. Contra nós mesmos, contra os trabalhadores dos outros países que se esfalfam por conseguir a mesma produção cobrando menos. Incerteza que gera insegurança, insegurança que produz medo. Medo do outro que é como eu. Medo do outro, que é estrangeiro, porque não é como eu. (…) O [novo] estado de natureza alastra como um mar enfurecido até cobrir-nos por completo.»
E mastigo a certeza de que a esperança apenas pode nascer do desespero.
quinta-feira, agosto 19, 2010
O Albatroz, (a propósito de Mágoa das Pedras), de Joaquim Castro Caldas
O Albatroz, (a propósito de Mágoa das Pedras), de Joaquim Castro Caldas
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher. (Baudelaire)
Eu vi a luz em um país perdido. (Pessanha)
Tendo por fundo um eco baudelairiano, Castro Caldas evoca em Mágoa das Pedras (2008) a consciência da indiferença do seu tempo e da sua própria diferença – um albatroz em desasado. Quando o albatroz, o monarca azul dos ares, é por sádico prazer preso pelos marinheiros, perde a graça e as longas e as suas pesadas asas tornam-se um empecilho. O que antes era belo e admirável é agora risível – “lui naguère si beau, qu'il est comique et laid!” . O poeta que enfrenta vendavais e se ri da seta no ar, quando exilado no chão, obrigado a cumprir regras que desconhece e a estar monotonamente no meio de todos, não consegue, sequer, andar. Assim o albatroz de Coleridge e Baudelaire, assim Joaquim Castro Caldas.
Nenhuma imagem é tão perfeita para a poesia e para a figura de JCC como a do albatroz: o poeta incompreendido, o príncipe da altura, o estrangeiro em terra. Façam-lhe ao menos a justiça de o não julgar nem fora , nem antes do tempo (pg.10).
Mágoa das Pedras traz-nos uma memória de um tempo em que se amava “e nunca se pedia / aos corações desamarrados / falava-se de tesouros perdidos / partia-se à procura de um dia” ( p. 35), mas um tempo que não vale já a pena lembrar pois “mordiscar o tempo sabe a esferovite” (p. 28). O poeta continuou a dançar mesmo depois de a música ter parado. Todos os outros, se habituaram a viver sem asas, a andar rente ao chão: ele não, insiste no voo, resiste - “apanho mar e lavo os olhos com luz / deito a cabeça na areia carrego o coração” (p. 13) – e transfigura-se em “anjo mensageiro que por mar, terra e céu” anuncia o apocalipse para os que “informatizam a eternidade” (p. 17) e para os que não perceberam que a grande revolução ainda não está feita.
Mágoa das Pedras é feita de aindas e agoras : “ainda as líricas impressas”, “ainda a vida em fundo” (p. 10), “o lume ainda aceso (p. 20), “um grande amor ainda espera pelo amor ” (p.59) e por agoras, certezas de que acções incompreendidas no passado, agora fariam ainda mais sentido: “agora é que tinha graça” e “há lixo da época ouro hoje […] que agora nos deixam a pele em arrepio” (p.55). Os “aindas” e os “agoras” do texto são pequenos freios impostos ao tempo: tentativas fugazes de, com o capital de vida acumulado, viver de uma forma mais distendida, mas a velocidade impressa no passado, não perdoa e já não há travões possíveis (note-se que quase não há pontos finais, não se pode mesmo parar).
A imagem que o título cataforicamente projecta na obra é a do relógio de água: a clepsidra - água, mágoa, pedra. A água que mede o inexorável passar do tempo e nada fixa. A palavra escrita é a resistência num tempo esquivo: “escrevo à mão a quem se debruça ainda nas líricas impressas” (p. 10), num tempo de sms – “hoje para chegar a tempo manda-se um silêncio a dizer morri, vivalma, nada”(p. 31) - e outras redes.Numa óptica palimpséstica, Mágoa das Pedras traz-nos o desejo presente em Pessanha de “deslizar sem ruído” de passar, de ir. Sem nascimento e sem morte: apenas uma mudança de energia - on/ off : “tudo passa e desaparece, recomeça, a cada vez diferente, a voz sugere, o que está em movimento recupera a fonte, a voz foge, aqui não há morte, a vida recomeça, há só uma energia que muda de forma e mergulha” (p. 9).
Em Castro Caldas, há um paradoxal estar dentro das coisas, estando ao mesmo tempo distante. Há uma incapacidade de parar, de fixar, por pouco tempo que seja, o próprio tempo. Uma fina película - “película de água” (p.9), “película de geada” (p.39) - aproxima-o e afasta-o do concreto, como se esvoaçasse, sem nunca verdadeiramente voar, mas também, sem nunca verdadeiramente poisar. É um estar por dentro, vendo tudo a uma certa distância, ou melhor num outro tempo. A película, o biombo, a neblina devolvem-nos um intervalo e, ainda assim, “tudo se passa por dentro” (p.33).
Os amigos são as estratégias de continuar inscrito, amarrado ao tempo e ao real: são os violinos e são as cartas. O amigo é o príncipe e o livro que depois relido continua novo e puro. O amigo é a faca que rasga caminhos, é aquele que chega sempre a tempo ao mesmo destino.
Em Mágoa das Pedras sente-se a correria desatinada para o abismo, através de um trajecto de acumulação de ideias e de uma de construção sintáctica desajectivada. A febre que empurra para o abismo é a mesma que faz com que se entrecruzem planos e sensações na água, na mágoa que tudo arrasta.
As palavras que tomou de empréstimo – as que disse, as que usou - são agora despidas e despedidas, como que se tivessem atingido uma maioridade que o dispensa, a ele enquanto voz:Vão-se embora palavras
Deixem-me ali à esquina
Amem e façam-se à vida
Não temam a morte voem
Sabem que são minhas
Para lá dessas fronteiras
Que desapertam as rimas
Com poemas ou bombas
Fucem apanhem boleias
Só vos deixei preparadas
Para os cornos dos poetas
(p. 46)
Num poeta “diseur” é curioso este mandar ir as palavras, sem si, este “ir indo”: as palavras ficam desatadas como puro espírito à procura de uma voz, talvez porque acredite existir só “uma oportunidade” (p.52):
Tinha uma luz para voar
Tinha o dom e a dedicação
Para ir mais longe do que tudo
Mas esqueceu-se de que além do brilho
Só há uma oportunidade
(p.52)
Depois do sopro no pavio, são as palavras desfraldadas, as palavras ditas e escritas que ficam e sobrevivem ao tempo: são a inscrição possível nas pedras. Não há espaço para corrigir erros, repetindo, qual jockey, a corrida à procura de um outro resultado. O destino é o do albatroz prisioneiro, o do cavalo caído. Resta-lhe apenas ajudar o próximo cavalo a ter melhor sorte “e não culpar ninguém ” (p. 53).
Do poeta habituado a “dizer”, sobra para a poética, a música verlainiana: “vagas breves”(p. 13); “Suor / do trigo/ a sangrar / no dorso” (p. 23); “Moinho / do vento / violento/ a dobrá-lo” (p. 23); “o amigo é um violino / estimado, obstinado” (p. 24); “de alfinete paciente e carinho antigo / o virtuoso ausente/ omnipresente “ (p. ), “Sotaque e o cognac“ (p 27 ), Mesmo triste a sorrir sempre” (p. 27), “as papoilas as palmas “ (p. 28); “não há orgãos, mãos e olhos, esporas e poros” (p.31); “bebemos buio / fumamos breu” (p. 33); “passa a mão ao de leve pela sede e na seda” (p. 44); “ vão as botas mágoa erecta de ervas” (p. 48). A música que emana dos versos, a música do violino é omnipresente – como se todos os silêncios, todas as solidões tivessem de ser preenchidas agora, pois não se sabe se há música depois, espera-se apenas que ela exista: “espero que haja música / no espaço mítico da morte” (p. 51).
Castro Caldas junta, neste livro, os quatro elementos: esconde no título a água e a terra, deixa fugir para a capa o fogo e deixa os versos futuar. Ar, Fogo, Água e Terra, assim o albatroz faz o poema.
Concluímos com Sena e com o seu albatroz:"Os marinheiros tinham apanhado o albatroz, e a ave, coitada, habituada a sobrevoar livremente as ondas, não sabia andar no convés do navio, tropeçava nas asas. É o que acontece com todos nós, os que voámos alguma vez. Fica-se a vida inteira a tropeçar nas asas, e a dar com a cabeça na gaiola." (Jorge Sena)
Mágoa das Pedras guarda as mágoas do albatroz que tenta voar, mas inevitavelmente inscreve o seu sangue nas pedras. [Paula Cruz]
Mágoa das Pedras, Deriva Editores, 2008
Nuno Abrunhosa criou, no Facebook um grupo para reunir leitores e amigos de Joaquim Castro Caldas: clicar aqui para aderir.
quarta-feira, agosto 18, 2010
Importa-se de parar de olhar para mim? - um conto de Paulo Kellerman
De repente, ele diz: importa-se de parar de olhar para mim?
Sinto um súbito embaraço, vergonha misturada com surpresa, vontade de fugir; ou de reagir; mas limito-me a murmurar, em tom humilde: peço desculpa. E volto a cabeça, ostensivamente.
Penso que ninguém se terá apercebido desta breve troca de palavras, ou que ninguém se tenha importado, se tenha surpreendido, o que limita o meu embaraço. Mas o autocarro está cheio - imagino que esteja cheio - e é impossível mudar de lugar; tenho de permanecer aqui, em frente a este homem que acabou de me proibir de o olhar; e não sei bem o que fazer: olhar para a direita ou para a esquerda rapidamente me provocará dores no pescoço, e talvez na coluna; e, neste momento, já tenho dores suficientes. Por isso, penso que resta olhar para os sapatos; pergunto-me por que se terá incomodado o homem com o meu olhar; depois, tento imaginá-lo: pela voz, suponho que será alguém mais velho que eu; talvez seja um pouco atarracado, pequenino: vozes agressivas compensam, muitas vezes, estaturas minúsculas; talvez um aposentado precoce, por motivos de saúde; alguém contrariado, que se considera demasiado infeliz, injustamente maltratado pelas forças do universo; um homem dolorosamente banal, que sabe que a sua passagem pelo mundo não modificou absolutamente nada. Ou seja: alguém que me poderia entender. Mas estou a fantasiar, como sempre faço. A sua inesperada agressividade indispôs-me contra esta pessoa, que talvez até seja encantadora. Mas também tenho o direito de me indignar, de ser irracional: e apesar de não o conhecer, odeio-o. Um daqueles ódios viscerais, que por vezes me corroem e dilaceram; o ódio intemporal e genérico que transporto na minha alma, desde sempre, e que por vezes não consigo deixar de focalizar em alguém específico, como se fosse esse alguém a causa única da minha raiva.
Tento distrair-me, com as divagações habituais: sendo cego, deveriam permitir que olhasse para onde desejasse; para os outros, deveria ser indiferente que os olhasse ou não, já que não os posso ver; contudo, acontece o contrário: apesar de não ver, meu olhar parece incomodar mais que o olhar dos que podem ver. Como se imaginassem o meu olhar como uma acusação, um pedido de desculpas. E vou pensando nisto, remoendo os mesmos pensamentos de sempre, as mesmas lamentações de sempre, as mesmas culpas de sempre.
O tempo vai passando, devagarinho e escuro. Esforço-me por me manter distraído, o que é fundamental para não cair na tentação de ter pena de mim, de me chorar; penso no homem e tento odiá-lo, tranquilamente, anonimamente; na verdade, preciso de odiar os outros - um outro qualquer - para não me odiar a mim, ou para esquecer que me odeio.
Gostava de ser uma pessoa normal, fazer o que faz uma pessoa normal: olhar pela janela, por exemplo. E ver. Olhar lá para fora; ver a paisagem desfilar; e não pensar, não pensar, em nada. Olhar, simplesmente: porque olhar e ver é fugir; e eu estou preso em mim. Condenado a mim.
O autocarro pára e o homem sai; sinto-o passar junto de mim, respiro o seu cheiro, a sua hostilidade, a sua pressa. Não resisto a imaginar-lhe um destino; e como sempre, os destinos que fantasio para aqueles que odeio representam os destinos que desejo para mim mas sei que nunca viverei; o que me permite aprofundar o ódio, descobrir novas nuances no ódio que preciso de ir alimentando, para que depois me alimente dele. Mais importante que tudo: é preciso distrair-me de mim. Fingir que posso fugir.
Estou tão absorvido que, de início, nem reparo que a mulher que se senta ao meu lado falou para mim; mas depois, quando percebo o sentido da sua frase, compreendo que só pode estar a dirigir-se a mim. Disse ela: sabia que o senhor que acabou de sair, aquele que se chateou consigo, também era cego?
Não, claro que não fazia ideia. No meu silêncio, ela adivinha a minha resposta; e não insiste no diálogo - que certamente não lhe interessa -, sente que já cumpriu a sua função. Deixa-me só, com a minha estupefacção. Penso no inesperado da situação, no ridículo: dois cegos a olharem-se, sentindo que estão a ser olhados, incapazes de suspeitar que estão a ser olhados por outro cego. Olham: mas não vêem nem são vistos. E fico a pensar nisto. Não ver nem ser visto; ou seja: não existir. Fico a pensar nisto durante muito tempo. Distraído.
Paulo Kellerman, in Gastar Palavras
TODOS OS LIVROS DO PAULO KELLERMAN AQUI
terça-feira, agosto 17, 2010
João Maio Pinto na Magnética
A Magnética Magazine de Julho é quase na sua íntegra dedicada à ilustração em Portugal. Há ilustração para ver, referências a edições de natureza diversa, personagens transversais, abordagem de questões editoriais sempre importantes, entrevistas, e um singelo mas certeiro catálogo.No editorial participa João Maio Pinto, que ilustrou na Deriva, Vozes do Alfabeto, que, juntamente com Pedro Zamith - e Vanessa Teodoro, foi convidados a pintar sobre os corpos de uma modelo. O resultado está à vista nas páginas da Magnética (revista online).
segunda-feira, agosto 16, 2010
Estranhas Criaturas, de Henrique Manuel Bento Fialho lido pela Esquerda da Vírgula
A Esquerda da Vírgula já leu as Estranhas Criaturas.
Henrique Manuel Bento Fialho, HMBF a partir daqui, trouxe agora à luz Estranhas Criaturas que, na abertura do livro faz datar de 2009, e que veio a ser publicado pela Deriva no passado mês de Junho.
Às vezes, no início de livros, está a chave da cancela de portagem que dá acesso à estrada onde, ao fundo, se lê FIM. Aqui, todavia, fim tem o significado de finalidade, a de ajudar a revelar-nos aonde nos leva a estrada por onde vamos lendo.
Assim funciona a epígrafe de Estanhas Criaturas, retirada de As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, da história 5, da parte de As Cidades Ocultas. Lendo-a, sabemos que Teodora, a cidade da história, foi sujeita, ao longo dos séculos, a invasões sucessivas de pragas de animais, que o homem foi vencendo, até conseguir a sua paz e a sua ordem, era o que todos os teadorenses já pensavam. Mas, da biblioteca da cidade, dos tomos de Buffon e de Lineu, acordaram de longa letargia toda a sorte de seres mitológicos malditos, que reocupam Teodora e a governam.
HMBF serve-se não só da epígrafe retirada desta história, como denunciadora de um tempo convulso, e talvez final, que sentimos ser o nosso (a que o tempo de outros irá suceder, acrescento eu), mas também como fornecedora de títulos aos textos, os nove nomes da citação, mais doze de figuras mitológicas malfazejas como aquelas, ou outras figuras perversas, retiradas da Literatura, Dr. Jekyll, Dr. Mabuse e Zaroff. Não é despicienda a função lateral que estas figuras têm no livro, a de reforçarem a sua unidade, já de si conseguida, quer pela disposição dos textos, quer pelo tom verberante que HMBF confere à escrita, um modo que, por si só, conseguiria a unidade, mesmo depois de baralhada toda a ordem do livro.
Tal como em As Cidades Invisíveis, sem mais nenhum contacto que o já dito de denúncia do nosso tempo, HMBF utiliza o texto curto, raramente maior do que uma página, que vemos hoje usado com democrática frequência e desbarato, ainda assim bem mais curtos, com o olho na clientela de leitura dita sem tempo disponível — nada de generalizações, ouço —, o que em Estranhas Criaturas não sucede, por ser um tamanho que assenta bem no carácter frequentemente alegórico, a que a figura ou o termo do título dos textos reforçam.
Ainda: alguns dos textos exigem esse tamanho por assumirem a forma de poema em prosa(1), que raramente requer proporções maiores. Temos, como exemplos claros de poemas em prosa, Água Benta, Aguarela, Basilisco (uma bela alegoria), Casas, Esfinge, Hidras, Morte, Poemas, Profetas, Sátiros, Vento e Zaroff, o último texto do livro, que avulta como final e como poema em si. Haverá mais poemas em prosa, porém foram estes que se me salientaram com maior clareza.
A linguagem poética usada não exige nenhum hermeneuta, é, pelo contrário, imediatamente digerida, mesmo quando, aqui e além, se transmuda em necessidade de significação e entra no campo sensorial da escrita e da leitura.
São ao todo quarenta e oito textos, em que sobressai a revolta social, a crítica mordaz, a rejeição, a irrisão da figura de poetas, cujo exemplo mais refinado é, desde logo, a Introdução ao livro, escrita pelo próprio, e presente nos textos Ophiuchuos, Quíron, Unicórnio, Vampiro, não sei se saltei algum texto. Digo que o barrete servirá a muitos, só que aposto 1 contra 1.000 que ninguém o vai pôr, isto é coisa que HMBF sabia antes de a escrever, e mesmo assim não só a escreveu, como a publicou, digo-o para melhor exemplificar o desassombro de todo este livro. Não é um livro que faça bem ao fígado, mas aos olhos garanto que faz. E não esqueça, para o fígado há o Cholagutt. Ataque logo, na primeira toma, com trinta gotas, o dobro do que eles mandam. Remédio santo.
(1) Não poucas vezes se comete a sinédoque de substituir poema em prosa por prosa poética. A prosa poética é a que define o poema em prosa, mas também que pode estar presente em peças de prosa tout court, ficção, crónicas, etc
quinta-feira, agosto 12, 2010
Perigo Vegetal, Rámon Cáride e Miguel Anxo Prado
Said e Sheila vivem, no ano 2075, no interior da Galiza, mas estão ligados em comunicação ao mundo global do passado. Uma gigantesca companhia transnacional, a C.U.B., tenta apoderar-se de todas as sementes de cereais existentes como parte de um plano para dominar toda a agricultura do planeta.
O Perigo Vegetal é apenas a primeira aventura destes dois corajosos irmãos.Ramón Caride escreveu e Miguelanxo Prado ilustrou.
“Depois da colheita da planta, as raízes que ficam na terra sofrem uma mutação e originam esta planta destruidora. […] a única forma de a eliminar é arar muito fundo, a vários metros de profundidade, para eliminar todas as raízes e poder voltar a semear. Mas o processo é muito complexo, basta que fique uma raiz, por pequena que seja e regenera-se a praga.” in Perigo Vegetal
Perigo Vegetal aborda, de uma forma simples, as consequências nefastas da monocultura e da manipulação genética, sem controlo e sem escrúpulos.
O comportamento das plantas geneticamente modificadas é diferente em laboratório e em vastas áreas. Se as plantas geneticamente modificadas tiverem um elevado poder de propagação elevado, as plantas convencionais podem vir a ser exterminadas. A biodiversidade fica em perigo. Com menor diversidade de espécies a vida na Terra torna-se mais sujeita a alterações ambientais. Pelo contrário, quanto mais rica é a diversidade biológica, maior é a oportunidade para descobertas no âmbito da medicina, da alimentação, do desenvolvimento económico, e de serem encontradas respostas adaptativas a essas alterações ambientais.
Plano Nacional de Leitura
Livro recomendado no programa de português do 6º ano de escolaridade, destinado a leitura orientada na sala de aula - Grau de Dificuldade II.
No blogue As aventuras de Sheila e Said são disponibilizados alguns recursos didácticos para auxiliar na exploração do texto.
Críticas
"Uma aventura para miúdos com dez anos ou mais, cujos protagonistas vivem na Galiza, no ano de 2075. Perigo Vegetal conta-nos como experiências com um super-cereal estão a pôr em perigo o planeta. Sheila e Said são dois irmãos que, do futuro, lançam alertas ecológicos para o passado. Uma espécie de diário a quatro mãos, que não deixa de transparecer as embirrações próprias dos manos adolescentes. Vindo da banda desenhada, o ilustrador Miguelanxo Prado cria um ambiente que se adequa bem à natureza do texto. Um tema pertinente." Rita Pimenta, Milfolhas, Público, 20.Dez.03
"Uma obra bem contada, divertida, actual, das que se lêem de uma só vez e fazem novos leitores para as aventuras que se seguem." Helena Pérez, Julho de 2002
sábado, agosto 07, 2010
quinta-feira, agosto 05, 2010
Pulsar e Cassiopeia [Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa,da Faculdade de Letras do Porto]
As colecções Pulsar e Cassiopeia, resultantes de uma parceria com o Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa,da Faculdade de Letras do Porto, dão a conhecer estudos muito relevantes no âmbito da Teoria da Literatura.
Na Pulsar, foram já editados Jean ‑Pierre Sarrazac (com AInvenção da Teatralidade seguido de Brecht em Processo e O Jogo dos Possíveis), Pascal Quignard(com Um Incómodo Técnico em Relação aos Fragmentos). Muito em breve chegará, às livrarias, a Aula Inaugural no Collège de France de Antoine Compagnon( Para que serve a Literatura? ). Um ensaio essencial que problematiza o espaço e o valor da literatura hoje.
Na Cassiopeia, que já acolheu um inédito de Pedro Eiras, intitulado Tentações: Ensaio sobre Sade e Raul Brandão,teremos brevemente um ensaio de Gonçalo Vilas-Boas sobre Kafka.
domingo, agosto 01, 2010
Deixou-se ficar ao sol - a língua iluminada, Catarina Nunes de Almeida
Deixou-se ficar ao sol - a língua iluminada
polida pelo vento e as ruínas da folha onde foram
um joelho um braço rasgando as nuvens.
Ave severa esta árvore que embala a morte.
Os ossos cercados pela penugem dos pomares,
sem receio de pernoitar
de apodrecer entre os frutos.
Catarina Nunes de Almeida
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