quarta-feira, agosto 18, 2010

Importa-se de parar de olhar para mim? - um conto de Paulo Kellerman


Importa-se de parar de olhar para mim?, de Paulo Kellerman

De repente, ele diz: importa-se de parar de olhar para mim?
Sinto um súbito embaraço, vergonha misturada com surpresa, vontade de fugir; ou de reagir; mas limito-me a murmurar, em tom humilde: peço desculpa. E volto a cabeça, ostensivamente.
Penso que ninguém se terá apercebido desta breve troca de palavras, ou que ninguém se tenha importado, se  tenha surpreendido, o que  limita o meu embaraço. Mas o autocarro está cheio  -  imagino que esteja cheio  - e é impossível mudar de lugar; tenho de permanecer aqui, em frente a este homem que acabou de me proibir de o olhar; e não sei bem o que fazer: olhar para a direita ou para a esquerda rapidamente me provocará dores no pescoço, e  talvez na coluna; e, neste momento,  já tenho dores suficientes. Por isso, penso que resta olhar para os sapatos; pergunto-me por que se terá incomodado o homem com o meu olhar; depois, tento imaginá-lo: pela voz, suponho que será alguém mais velho que eu; talvez seja um pouco atarracado, pequenino: vozes agressivas compensam, muitas vezes, estaturas minúsculas; talvez  um  aposentado  precoce,  por motivos  de  saúde;  alguém  contrariado,  que  se  considera  demasiado  infeliz, injustamente maltratado pelas forças do universo; um homem dolorosamente banal, que sabe que a sua passagem pelo mundo não modificou absolutamente nada. Ou seja: alguém que me poderia entender. Mas estou a  fantasiar, como sempre faço. A sua inesperada agressividade indispôs-me contra esta pessoa, que talvez até seja encantadora. Mas  também  tenho o direito de me  indignar, de ser  irracional: e apesar de não o conhecer, odeio-o. Um daqueles ódios viscerais, que por vezes me corroem e dilaceram; o ódio intemporal e genérico que transporto na minha alma, desde sempre, e que por vezes não consigo deixar de  focalizar em alguém específico, como se  fosse esse alguém a causa única da minha raiva.
Tento  distrair-me,  com  as  divagações  habituais:  sendo  cego,  deveriam  permitir  que  olhasse  para  onde desejasse; para os outros, deveria ser indiferente que os olhasse ou não, já que não os posso ver; contudo, acontece o contrário:  apesar  de  não  ver,  meu  olhar  parece  incomodar  mais  que  o  olhar  dos  que  podem  ver.  Como  se imaginassem  o  meu  olhar  como  uma  acusação,  um  pedido  de  desculpas.  E  vou  pensando  nisto,  remoendo  os mesmos pensamentos de sempre, as mesmas lamentações de sempre, as mesmas culpas de sempre.
O  tempo  vai  passando,  devagarinho  e  escuro. Esforço-me  por me manter  distraído,  o  que  é  fundamental para  não  cair  na  tentação  de  ter  pena  de mim,  de me  chorar;  penso  no  homem  e  tento  odiá-lo,  tranquilamente, anonimamente; na  verdade, preciso de odiar os outros  - um outro qualquer  - para não me odiar  a mim, ou para esquecer que me odeio.
Gostava de ser uma pessoa normal, fazer o que faz uma pessoa normal: olhar pela janela, por exemplo. E ver. Olhar lá para  fora; ver a paisagem desfilar; e não pensar, não pensar, em nada. Olhar, simplesmente: porque olhar e ver é fugir; e eu estou preso em mim. Condenado a mim.
O autocarro pára e o homem sai; sinto-o passar junto de mim, respiro o seu cheiro, a sua hostilidade, a sua pressa. Não  resisto  a  imaginar-lhe  um  destino;  e  como  sempre,  os  destinos  que  fantasio  para  aqueles  que  odeio representam  os  destinos  que  desejo  para mim mas  sei  que  nunca  viverei;  o  que me  permite  aprofundar  o  ódio, descobrir novas nuances no ódio que preciso de ir alimentando, para que depois me alimente dele. Mais importante que tudo: é preciso distrair-me de mim. Fingir que posso fugir.
Estou tão absorvido que, de início, nem reparo que a mulher que se senta ao meu lado falou para mim; mas depois, quando percebo o sentido da sua  frase, compreendo que só pode estar a dirigir-se a mim. Disse ela: sabia que o senhor que acabou de sair, aquele que se chateou consigo, também era cego?
Não, claro que não fazia ideia. No meu silêncio, ela adivinha a minha resposta; e não insiste no diálogo  - que certamente não lhe interessa -, sente que já cumpriu a sua função. Deixa-me só, com a minha estupefacção. Penso no  inesperado  da  situação,  no  ridículo:  dois  cegos  a  olharem-se,  sentindo  que  estão  a  ser  olhados,  incapazes  de suspeitar que estão a ser olhados por outro cego. Olham: mas não vêem nem são vistos. E fico a pensar nisto. Não ver nem ser visto; ou seja: não existir. Fico a pensar nisto durante muito tempo. Distraído.

Paulo Kellerman, in Gastar Palavras






TODOS OS LIVROS DO PAULO KELLERMAN AQUI