Língua Morta, Junho de 2022
Lembram-se do assassínio de Carlo Giuliani pelos carabinieri, em Génova, a 20 de Junho de 2001? Eu lembro-me bem e não mais esqueci a brutalidade policial que os manifestantes contra o G7 sofreram naquela cidade em fogo. Todo o perímetro urbano estava ocupado por centenas de milhar de manifestantes radicais (outros nem tanto) que lutavam contra a polícia com o que podiam e fabricavam. Armas igualmente letais contra a organização armada do Estado. Restou-nos a fúria e a impotência dos que viam as imagens de longe e recebiam os comunicados de informação alternativa.
Nós necessitávamos há muito de um livro assim. Tão bom e por vezes tão desconcertante. Luhuna Carvalho descreve-nos experiências muito vívidas de quem escolheu o «outro lado». A barricada dos que não querem ser subservientes à lógica do domínio e do controlo burguês. Sabe do que fala e quem o lê, ou já tenha passado por confrontos de baixa intensidade em manifs, ou viveu o Prec de fogo com a volúpia destruidora que apontava paradoxalmente para a construção de utopias livres e humanamente autónomas, sente que Luhuna Carvalho tem tanto de genuíno, como de inteligente, apresentando-nos um pensamento e uma teoria sólidos da Europa em que vive(mos).
O périplo insurgente deste autor que desconhecia (tem um artigo interessantíssimo no blogue Punkto e revela igualmente os seus estudos em Filosofia e um doutoramento em Londres) não ficou só em Génova; seguiu-se (não por ordem cronológica) Barcelona, Nantes, Paris, Roma, Londres, Amesterdão...até aos States de Nova Iorque e à estadia numa reserva índia no interior da América profunda.
A sua experiência em Barcelona, as barricadas, as fugas, a estratégia black bloc (Luhuna não se identifica totalmente com ela) encontra-se extremamente bem descrita, mas também a vida nas comunas em casas ocupadas, as diferenças individuais dos que as habitavam, os debates, as drogas, a solidariedade e o sexo. As suas opiniões são-nos reveladas com uma franqueza brutal e ao mesmo tempo, solidarizando-se com esta experiência de euforia colectiva, não deixa de ser crítico em alguns aspectos e que vale a pena citar só uma parte: «Essa folia criava, na verdade, inúmeras solidões povoadas, e muita gente que ali transitava numa cantada euforia acabava, meses depois, por sair com uma galopante depressão, algo que anos depois seria um novo normal, a forma de vida mais comum nas grandes cidades.»(pág.60) Quem viveu qualquer coisa de parecido, embora à escala deste país (já lá vamos), sabe que Luhuna está a ser verdadeiro. Depois de uma grande euforia colectiva, comunal, vem a depressão, o fim da festa. O mesmo acontece a quem tomou drogas. A paranóia e a desconfiança pelo outro vêm muito depois sem darmos por ela. Mas enquanto as usamos abre-se um mundo iluminado onde tudo é possível.
Voltemos aos mortos de Génova. Mais que Seattle ou outra cidade onde houve repressão a sério, a violência policial aqui foi descontrolada. Lembremo-nos que Carlo Giuliani foi assassinado enquanto permanecia no chão ferido e faleceu quando o jipe dos carabinieri fez marcha a trás para o calcar até à sua morte. A palavra de Luhuna Carvalho sobre Génova: «O Estado assumira um confronto nas ruas que tinha perdido, e cobrava cara essa derrota. A polícia, humilhada durante dias, encontrava indefesos nos responsáveis pela sua derrota e despejara sobre eles uma violência de contornos bíblicos que visava a sua aniquilação total, apanhados de pijama a comer umas sandes, reduzidos a uma sopa de sangue e cabelo.»(pág.53) O autor, tal como os menos ingénuos de nós, sabe que o Estado é isso mesmo e que a violência de um manifestante armado e organizado nunca é igual à dos polícias. O insurgente, o revoltado, luta e destrói a cidade que o condiciona corporal e mentalmente, que o faz sofrer em eterna (?) solidão; o revoltado quer paralisar o fluído repressor da cidade e de quem a controla, através da barricada da ocupação e da festa contínua. Está no seu direito, como a pequena burguesia está no direito de permanecer toda a vida em centros comerciais e hipermercados.
Luhuna Carvalho assistiu em Lisboa às grandes manifestações anti-troika de 2011 e 2012 com a esquerda institucional a perder momentaneamente o controlo da rua. É evidente que o autor mais que experimentado na observação da contestação radical em outras cidades europeias ficou atónito (provavelmente como eu me senti no Porto, mesmo sem ter vivenciado as lutas urbanas europeias - talvez em Madrid, nos 90, tenha observado uma escaramuça) com o ambiente que encontrou: «Em Lisboa as coisas eram diferentes. Nada desta problemática (da violência urbana) era sequer reconhecida. Ao mínimo sinal de conflito, a esquerda corria a benzer-se e a gritar que os responsáveis eram infiltrados da polícia. este mundo em ebulição parecia nem sequer existir. Falava com militantes e dirigentes dos partidos do que tinha visto e observado noutros locais e era como se lhes estivesse a falar de Marte.»(pág.71) No entanto, em frente ao parlamento aconteceu um confronto descrito assim: «Ao lado do tipo de peito nu, calções e sandálias, com a t-shirt à volta da cara e tatuagem dos No Name Boys nas costas, estava um tipo de camisa aos quadrados e sapatos de vela, os dois a atirar pedras à polícia.»(pág.73). É esta a contestação portuguesa tal como eu assisti no Porto num apedrejamento a um banco e imediatamente anulada por militantes de esquerda.
Vai ser difícil não ter na cabeça este livro durante mais uns tempos e voltar possivelmente a ele para saborear as imagens da revolta e destruição eufórica sentidas pelo «outro lado». Pelo «nosso» lado, alguns de nós que intuímos que na acção da Internacional Situacionista poderia estar a súmula da teoria libertadora dos revolucionários, ou seja, daqueles que não terão nada a perder senão o tédio e a sobre(vida): «Ninguém seria capaz de admitir, e talvez muitos não tivessem sequer consciência disso, mas aquele ensaio júnior de permanente deriva situacionista era obviamente um privilégio de classe. Ainda assim, o uso espúrio desse privilégio era simultaneamente ridículo e nobre.»(pág.82) Talvez seja a tentativa legítima de superação dessas mesmas teorias que Luhuna Carvalho nos propõe. A coisa que fica é uma enorme solidão (Cap.IV O Tempo da Solidão) e uma constatação de quem experimentou tudo isto como «demasiado comunista para os anarquistas e demasiado anarquista para os comunistas». Entendo bem estas palavras e assumo, provavelmente com outros, que a violência popular em Génova e Barcelona foi feita com a mesma massa que os ainda inoperantes mas que, em silêncio, esperam a oportunidade de agir.