quinta-feira, novembro 10, 2022

«Um Adeus aos Deuses» de Ruben A.

 

Assírio & Alvim, 1ª ed.1963. Esta edição: 2010
Visitar a Grécia em 1963. Ruben A. deveria ter os seus 42 anos e nota-se em todo o livro uma procura comovida pelos deuses gregos, pela arte grega, pela própria Grécia e pelos seus habitantes, seguindo Sophia, Homero, Fernando Pessoa, Miller, Byron que lá morreu, Seferis, Debussy, entre outros. Um caminho autobiográfico, um caderno de viagem, seja como o cataloguem é bom de se ler. Refresca, mesmo sabendo que um português vivendo com uma moeda que nada valia a nível internacional e sob a ditadura salazarista, encontra outro povo vivendo igualmente mal e sob uma outra ditadura, esta dos coronéis. Com Xenakis condenado à morte e no exílio francês, com Yannis Ritsos preso em campos de concentração e Theodorakis fugido, igualmente no exílio. Começa aí, sem o dizer explicitamente, uma solidariedade que se descobre nas ofertas comuns, nas conversas de tasca, «os gregos falam, falam, falam», na partilha da resina e nas trocas das estórias de vidas.

Um dos aspetos mais interessantes das crónicas é o seu fascínio pelos kuroi, as esculturas arcaicas de homens e mulheres cuja técnica é claramente influenciada pelo Egipto. São hirtas, hieráticas, mas plenas de erotismo o que as contrapõe à arte egípcia que paradoxalmente foi a referência, mas mais guerreira, mais reverencial para com os poderosos. «O Kouros é a abstracção inventiva de um tipo de beleza que possa agradar aos deuses - é o encontro mais brilhante entre a uniformidade do tema e a diversidade em exprimi-lo, a neutralidade definitiva da identificação. O Kouros é a imagem mítica de um Menino Jesus adulto.» (pág.35). O mesmo sentimento do maravilhoso em Ruben A. é a Arte das Cíclades, o que ficou das antigas Deusas-Mãe de uma Pré-História mítica: «Marrei os olhos à espera que saltasse toda a imaginação de uns corpos com a dignidade de deuses absolutos, de braços ainda não lamentados nem gesticulados, de braços assentes na própria formação da figura humana.»(pág.37).

Percebe-se o encantamento de Ruben A. pelo arcaico o que na minha leitura não deixou de ser, por um momento, estranho. O lugar comum, o senso comum que pessoalmente não lhe tenho respeito algum, é descrever de uma maneira algo basbaque as esculturas clássicas do século V, chamado do século de ouro de Atenas ainda por cima fazendo-o ligar a um estratega político - Péricles. «O arcaico é que está dentro de mim, é tudo aquilo que é perfeito sem estar definido, tudo o que se opõe à regra rígida de um cânone estabelecido pelo senso comum. - senso comum inventado um dia pelos Gregos, no século V, que teve a infelicidade de se repetir através dos séculos. um senso comum que teve efeitos nos bolos de pastelaria, nas concepções rígidas da moral, quando a tragédia dos moralistas quer aproximar em regras fixas o espírito da beleza clássica do homem.»(pág.34) Nunca li - talvez nos surrealistas a que Ruben A. não estava de todo afastado - uma crítica tão bem elaborada por um escritor ao senso comum e aos cânones estabelecidos e colocados em limbo num esquecimento que só se revela quando oportunistas querem convencer os incautos. À falta de melhor, venha de lá o «senso comum» e os parvos caem que nem tordos.

O seu horror pelo Clássico é bem descrito nesta passagem quando visitava Olímpia: «Custa-me às vezes perceber o grego clássico, mas lá vou com o meu Larousse das ideias tentar penetrar na brincadeira jocosa de dois tagarelas que se desafiam em conversa fiada. Não gritam! Não fazem ruídos nem desafinam. Aqui está outro dos sublimes segredos destes habitantes - quando querem dizer qualquer coisa geometrizam a economia da palavra, tiram-lhe o conteúdo floreado de palha e avenca, e deixam ao pôr do sol o descanso do diálogo que ficou suspenso à entrada do templo.»(pág.72)

Depois de mais encantamento e do calor branco e azul da Grécia, de Miconos, de Lindos, do Parténon em que se recusou a subir até lá de burro (estamos em 1962!) e embora o tenha feito e louvado tal transporte em Creta com um comerciante sírio, do Epidauro onde leu, na orkestra e em inglês um trecho do Orestes-Rei aplaudido por um pequeno grupo de turistas. Turistas esses já objecto de jocosidades do autor, como aquele par suíço que somente reteve da Grécia o terem visto um porta-aviões americano «Sabe, os lagos na Suíça são pequenos»! Gostava que lessem esta parte teatralizada por Ruben A. (a parte lida no Epidauro?) e extraíssem possíveis ilações de quem estaria ele a falar; se o recado não era direitinho para as duas ditaduras na boca do povo que condena à morte Orestes, depois deste ter convencido os deuses a estarem ao seu lado:
«Vozes - Orestes serviu-se dos deuses, Orestes não acreditou na justiça dos homens, Orestes traiu-nos - invocou poderes sobrenaturais para governar. Orestes quer justificar o poder absoluto. Da tragédia da família quer arrastar à tragédia do seu povo. Orestes não é homem, Orestes pode vingar-nos com os deuses. Vai invocá-los para nos governar. De absoluto passa a tirano, de tirano a carrasco. Queremos Orestes julgado pelos homens, julgado nesta praça pelos seus próprios cidadãos - um Orestes liberto das divindades, irmanado à desgraça natural e à alegria simples dos seus. Orestes é traidor! Só a morte o pode salvar. Queremos a morte para Orestes.»(pág.97)

O diário continua nos últimos dias de Ruben A. numa Grécia paradisíaca. Não sei se lá voltou.