segunda-feira, novembro 28, 2022

«Andanças com Heródoto», de Ryszard Kapuscinsky

 

Kapuscinsky conheceu o mundo. Nascido em 1932 e falecido em 2007, escreveu este livro três anos antes e fá-lo como uma espécie de homenagem a Heródoto. Não segue o seu roteiro geográfico ou cronológico. Escreve que aprendeu com ele a distinguir o que é aproximação da verdade e o que é totalmente mentira ou efabulação não voluntária. Chama-lhe repórter o que é uma grande provocação para os historiadores e académicos que ensinam aos seus alunos a desconfiar de Heródoto, embora lhe apontem o epíteto do primeiro historiador. Kapuscinsky na sua corrida pelo mundo real em todos os continentes do planeta conseguia levar os tomos da «Histórias» do grego de Halicarnasso, hoje Godum na Turquia. Portanto, os dois são conhecedores do que melhor e de pior é capaz a Humanidade. E no pior vem sempre a guerra, esse vírus que não nos larga pela cobiça e pelo poder. E isto não é de humanismo serôdio. É a realidade que convém não esquecer ao optimimista que teima ainda em construir algo de novo. Heródoto, seguido por Kapuscinsky, tem explicações para o facto das guerras serem permanentes. No fundo, pagamos ainda hoje por erros de antepassados, por vinganças e cobiça de poder e riquezas que se arrastam por séculos num turbilhão de ódio que aparentemente não tem fim. Heródoto apresenta-nos duas causas para as guerras e meios para as debelar: 1) assinalar aquele que eu sei ter sido o primeiro a cometer actos injustos; 2) a felicidade humana nunca permanece firme, sendo que esta última será a pior das causas porque a ambição pela chamada felicidade é ilimitada. Viver com o que se tem e com o necessário para uma vida digna e ser feliz com isso é um dos limites mais difíceis para a humanidade seguir. Parecem coisas simples a que um intelectual ocidental, habituado às complicadas teses filosóficas, poderá nem dar a importância que merece, mas não esqueçamos que quem nos escreve são dois homens que calcorrearam desde as regiões mais cosmopolitas até às mais inóspitas e desérticas. Conversaram com pessoas, viram guerras, viveram a paz, provaram de tudo e separaram o trigo do joio nos factos que lhes comunicavam. Se Heródoto conheceu ou relatou as guerras entre Persas e Gregos entre aqueles e Citas e se chegou a escandalizar com a crueldade inominável a que assistiu ou viu referida, também Kapuscinsky não lhe fica atrás com os massacres e torturas na América do Sul, na Ásia ou em África. Disso, ainda estamos como antes. Pior, talvez: a ciência e a tecnologia deram uma ajuda no aumento do sofrimento em teatros de guerra!

Sempre com Heródoto na mochila, Kapuscinsky conheceu a Índia dos anos 50 e a secessão do Paquistão com 1 milhão de mortos e 5 milhões de refugiados, o Egipto de Nasser, a Argélia de Ben Bella, a guerra civil do Congo, o Uganda, o Gana, os primeiros passos para a independência africana, o Senegal de Leopold Senghor e a negritude, a América do Sul, a China das «Cem Flores» de Mao e o início da Revolução Cultural, a Rússia, a Checoslováquia e a «sua» Polónia. Digo «sua» entre aspas porque duvido que ele se sentisse, no fim da vida e após tantas viagens, inteiramente polaco. Antes um cidadão do mundo, um passaporte inexistente mas pertencente a uma qualidade que muito poucos a conseguem atingir. Tal como Heródoto que duvidando de muito do que lhe diziam ou aceitando as coisas com reservas, ia dando conta da diversidade riquíssima da Europa, Ásia e África. Como ele dizia, «continentes todos com nomes de mulheres».

Conhecendo outras obras de Kapuscinsky, esta não é a mais enérgica e longe do que esperamos dele, mas o registo das Histórias de Heródoto que cruza com as suas experiências no mundo faz com que o tenhamos junto a nós. Nem que seja para nos lembrar que não somos assim tão diferentes dos de há 5 mil anos atrás. Tal como os deuses que nos guiam que, desconfiava Heródoto com algum cuidado desprezo, não seriam assim tão diferentes uns dos outros e que eram objecto de imitações entre povos com as mesmas necessidades e sonhos.