sábado, novembro 05, 2022

«Arte em Fluxo», de Boris Groys

 

Orfeu Negro, 2022, Trad. Pedro Elói Duarte
Sem dúvida um dos mais interessantes pensadores contemporâneos que une a arte e a política. São 12 capítulos que julgamos, pela sua diversidade, terem sido compilados através de artigos publicados em revistas ou jornais e que Boris Groys terá juntado neste livro.
Explica, logo no prólogo, o conceito de arte em fluxo: «A arte não prevê o futuro, mas demonstra o carácter transitório do presente - e, assim, abre caminho ao novo. A arte em fluxo engendra a sua própria tradição, a reencenação de um evento de arte como antecipação e realização de um novo começo, de um futuro em que as ordens que definem o nosso presente perderão o seu poder e desaparecerão. E como, para o pensamento do fluxo, todos os tempos são iguais, esta reencenação pode ser realizada em qualquer momento.» (pág.14)

Muito importante a tentativa (penso que com êxito) de superação do conceito de «sociedade do espectáculo» de Guy Debord. Não que este não tivesse sido exemplar na definição da sociedade, mas esta já não existe de todo. Ou seja, quando Debord falava nos tempos livres do trabalho e do trabalhador como tempo alienado, como forma de aprofundamento da exploração e estupidificação das massas, hoje o «tempo livre» já não é passado no museu, no cinema, no teatro, na livraria ou se quisermos o café falando uns com os outros. Hoje, nos tempos livres, as pessoas «trabalham, viajam, fazem desporto e exercício físico.» Não lêem livros ou contemplam arte. São «activas» no sentido muito particular do que quer dizer «criar», escrever ou fazer vídeos no Facebook, no Instagram ou no Twitter. Portanto, a acção está presente nos tempos livres, embora tão alienada como nos anos sessenta, setenta ou mesmo oitenta. É nesta inexistência de contemplação que Groys aponta a destruição e queda dos museus ou do cinema. A arte fixa, imóvel, morreu para dar lugar à performance que já vinha a ser tendência há muito tempo. Daí, hoje não haver exposições sejam elas permanentes ou não, mas sim curadorias onde se apresenta arte efémera que, em certos casos, apela politicamente à inversão da vida quotidiana ou ao combate político. Nasce assim uma espécie de activismo social que ainda está nos seus primórdios. E é aqui que Boris Groys coloca um dilema: estaremos perante arte propriamente dita ou antes na emergência de várias formas de design? 

Se estamos a aceitar que a arte é, hoje, design antes de tudo, entramos na estetização da arte o que, citando Benjamin, nos levará a uma estetização igualmente da política inerente a esse activismo, que foi o que fez o fascismo nos anos 30 com Marinetti, ou Estaline com o realismo socialista. Antes, já o construtivismo russo tinha arredado o revolucionário futurismo cujo expoente máximo seria Malevich com o seu «quadrado negro». Entramos aqui na análise dos movimentos que, de alguma forma, estiveram na primeira linha da destruição da arte como o dadaísmo e o surrealismo. Aliás, voltando a Malevich, o seu manifesto a partir de «O quadrado negro» já pedia ao poder soviético que destruísse todos os museus para dar lugar a uma arte «verdadeira e viva».

O sujeito enquanto artista e a sua relação com os Outros obriga necessariamente a uma revisitação das teorias de Marx e de Stirner sobre a produção na arte e é dos capítulos mais interessantes do livro. Se o artista quando produz arte é um ser único (Stirner) ou se é a conclusão de um processo de produção social integrado (Marx).

Seja como for a afirmação de Groys de que «as sociedades modernas estão assombradas por visões de controlo e exposição totais - visões distópicas do tipo orweliano» levam-nos para um outro patamar em que a arte ou a instalação performativa é claramente um centro de denúncia ou de acção.

«A Arte na Internet» é dos capítulos mais esclarecedores de Groys e socorro-me de uma ou outra citação sua para que fiquemos com a percepção do seu pensamento: «A internet funciona como base no pressuposto do seu carácter não-ficcional, de ter um ponto de referência na realidade offline. A internet é um meio de informação sobre algo. E este algo está sempre fora da internet - ou seja, offline.» Pode-se dizer, portanto, que na net não há arte ou literatura mas sim informação sobre arte e literatura. Não sendo uma novidade total para os utilizadores da internet não deixa de ser sintomático algumas afirmações certeiras de Groys que inverte todo o pensamento de uma possível globalização através desta ferramenta: «Seguimos certos blogues, sites de informação, revistas electrónicas e outros sítios, e ignoramos tudo o resto.  Assim, o trajecto tradicional de um autor contemporâneo não é do local para o global, mas do global para o local.(...) Na verdade, a internet não é um lugar de fluxo de dados; é uma máquina que trava e inverte os fluxos de dados. O medium da internet é a electricidade, e o fornecimento de electricidade é finito. Por conseguinte, a internet não pode suportar fluxos de dados infinitos. (...) Não devemos esquecer que a internet é propriedade privada. E os lucros dos seus proprietários decorrem sobretudo da publicidade dirigida a públicos-alvo. Temos aqui um fenómeno interessante: a monetarização da hermenêutica.(...) A mais-valia que este sujeito produz e que é apropriada pelas empresas da internet é o valor hermenêutico: o sujeito não só faz ou produz alguma coisa na net, como também se revela como um ser humano com s«certos interesses, desejos e necessidades. A monetarização da hermenêutica clássica é um dos processos mais interessantes com que nois confrontamos nas últimas décadas». Eu diria mais perigosos, igualmente.