terça-feira, dezembro 30, 2025

quinta-feira, dezembro 25, 2025

"Ódio à Civilização Moderna", William Morris

Cornuda Radiante, 2025. Tradução, selecção e notas de Júlio do Carmo Gomes
Não se pense que estamos unicamente perante um livro histórico, datado no tempo. «Ódio à Civilização Moderna» é uma edição recente da Cornuda Radiante, que nos remete para um autor singular no que à ideia de socialismo diz respeito. Trata-se de uma selecção de escritos, quase todos dos finais do século XIX, que se debruça sobre a construção de uma sociedade comunista e que bebe os seus pressupostos nas ideias de Marx, do socialismo e do anarquismo. O que é singular em Morris é o facto de encontrarmos nele um profundo amor pela Natureza e pela solidariedade comum dos homens que só se libertariam do capitalismo e do trabalho assalariado através da construção de uma ideia e prática comuns baseadas no trabalho livre e nas relações de entreajuda em comunidades verdadeiramente cooperativas. A síntese comunista é uma evidência em William Morris, mesmo que Engels o tenha desconsiderado, em correspondência privada, chamando-lhe um «burguês acomodado». Morris desanca a sociedade vitoriana e o capitalismo adivinhando-se já que este se desenvolveria de crise em crise, colocando em causa as relações humanas baseadas no domínio e subjugação dos mais fracos, os trabalhadores, e pelo extractivismo que anunciava uma Natureza exaurida. A fealdade das cidades e dos seus edifícios, o desarrumo dos campos, o fim do artesanato que criava coisas úteis e belas, foram a pedra de toque da denúncia de Morris de uma sociedade que criticou severamente. Perante o reformismo dos socialistas, preconizava a abstenção e a preparação de uma revolução que os ingleses teimavam em negar. Defendia um proselitismo activo das ideias socialistas na classe trabalhadora e invectivava as classes médias a afastarem-se das práticas capitalistas que apontavam à ruína e ao fim de uma humanidade em vias de deixar de ser pela existência de guerras permanentes a que se obrigava pela lógica dos lucros sem fim, da maquinaria industrial que exigia o fim do trabalho livre pela existência de um trabalho escravizado e do estertor da Natureza que se consumia pelo extractivismo. Talvez as melhores páginas desta selecção levada a cabo por Júlio do Carmo Gomes sejam as que se referem à construção pormenorizada de uma sociedade comunista: algumas delas claramente influenciadas pelo socialismo de Proudhon e pelo falanstério, mas igualmente pelas teses de Marx. William Morris não esconde o seu profundo conhecimento pela sociedade e economia feudais e colabora em clubes românticos, pré-rafaelitas, o que não deixa de ser sintomático sabendo nós a simpatia que Marx tinha para com poetas e pintores românticos muito pouco alinhados com a sociedade burguesa dessa época. 

Reside nessa síntese teórica a possibilidade de um caminho das ideias da Esquerda e do Socialismo nos miseráveis dias de hoje. Numa época em que a realidade já foi ultrapassada pelo espectáculo e em que a mentira é o artifício da tecnologia e de quem a dirige, este «Ódio à Civilização Moderna» não nos deixa de invectivar, de nos obrigar ao questionamento permanente de como outra sociedade é possível. É por isso que este livro é tão importante.

«É uma sociedade que não conhece o significado das palavras rico e pobre, nem o direito de propriedade, nem a lei e a legalidade, nem a nacionalidade: uma sociedade que não tem de viver com a assunção de ser governada; uma sociedade na qual a igualdade de condições é uma questão natural e na qual nenhum homem é recompensado por prestar serviços à comunidade pelo mero facto de dispor do poder de causar-lhe dano.
É uma sociedade ciente do desejo de preservar uma vida simples e de renunciar a uma parte do poder de domínio sobre a natureza, adquirido ao longo de eras passadas, com a finalidade de ser mais humana e menos mecânica, e disposta a fazer algum sacrifício para atingir esse fim. Estaria dividida em pequenas comunidades, muito diversas entre si dentro dos limites consentidos pela ética social respectiva, mas sem rivalidades e olhando com aversão para a ideia de um povo eleito.» (pág.156)

alc

segunda-feira, dezembro 22, 2025

2026

 

Talvez, num dia próximo, consiga ver em qualquer eleição, debate parlamentar, associativo ou mediático, defender que os trabalhadores necessitam, isso sim, de deixar de o ser; que o trabalho deixe de ser assalariado e os trabalhos inúteis sejam abolidos, substituídos por horas de trabalho útil, manual ou intelectual, livre do lucro e do desperdício que alimenta o lixo. Também gostaria de ver defendido o decrescimento económico, já que o crescimento tem motivado ondas de miséria, de guerra permanente e de fenecimento do planeta. Dou por garantido que os trabalhadores, conscientes de o serem, serão protagonistas de uma nova sociedade que tenha por base a igualdade com acesso livre à educação, à saúde, à habitação, ao trabalho digno, ao ócio e à paz. Não é pedir muito - é só uma revolução, certo?

sábado, dezembro 20, 2025

"L' Adversaire", Emmanuel Carrère


P. O. L., Folio, 2000
Emmanuel Carrère parte de um acontecimento baseado em factos reais, sórdido, o de um assassinato, em 1993, de uma família inteira perpetrado por um indivíduo que, além da mulher e dois filhos, mata igualmente os seus velhos pais reformados, para construir uma narrativa em que nada o que parece é. Há uma componente social importante que se estende para a análise psicológica de um assassino e de um enquadramento religioso muito caro a Emmanuel Carrère, autor de «O Reino» já aqui referido nestas páginas, tal como «L'Uchronie». 

O autor questiona-se sistematicamente no seu papel como escritor de um verdadeiro massacre, que destapa uma vida assente em mentiras forjadas num ambiente suburbano da classe média francesa. Revela-nos os quotidianos seráficos, as leituras, os hábitos pensados ao milímetro, as ansiedades sociais, as contrariedades, os gestos sopesados por pessoas para quem subir o elevador social é uma necessidade absoluta. Pede ao assassino autorização para privar com ele, saber o que o levou a um tal acto, não escondendo alguma empatia para Jean-Claude (assim se chama o assassino) e para com outros que se aproximam dele, numa tentativa de o regenerarem pelo cristianismo. Troca com ele cartas, visita-o na prisão, quer saber como se tentaria suicidar e se esse fim era o seu objectivo real. Assiste ao seu julgamento e fala com outros jornalistas, questiona os psiquiatras que o analisaram. Aborda o seu advogado e ouve os argumentos do ministério público perante o tribunal. 

Sabemos de outras experiências literárias que seguiram este caminho, nomeadamente as de Truman Capote, com evidente solidez e seriedade de propósitos não cedendo ao espectáculo muito comum dos tablóides e das tv's; Emmanuel Carrère vence na franqueza demonstrada em cada linha de «L'Adversaire», reparte connosco as suas dúvidas e incertezas perante, mesmo, o que é dito por ele ou o que lhe dizem num jogo de sombras e de zonas indefinidas. 

De qualquer maneira, este livro não será muito aconselhável para pessoas plenas de certezas.

alc

domingo, dezembro 14, 2025

"O Náufrago", Thomas Bernhard

 

Relógio D'Água, 2024. Tradução de Leopoldina Almeida 

Thomas Bernhard foi aluno de Horowitz, juntamente com Glenn Gould e Wertheimer, no Mozarteum de Salzburgo e no Conservatório de Música e Artes Dramáticas de Viena. Bernhard e Wertheimer sendo pianistas de grande talento, sucumbiram, no entanto, à arte de excelência, dificilmente igualável de Glenn Gould. E foi a partir desta impossibilidade que deixaram de pensar em voltar a tocar piano. É Gould que se encontra na capa deste livro e basta percorrer alguns filmes sobre ele «off the record» e «on the record», para sentir o que estamos a afirmar: dobra-se sobre o piano de uma forma quase animal, vocaliza as notas, ergue o corpo sobre a cauda do piano, ajusta-se, funde-se com o instrumento que o torna num só corpo. 
A partir de Glenn Gould, Thomas Bernhard cria uma narrativa torrencial, disruptiva, desafiando-nos a percorrer pensamentos sobre o suicídio, a decadência, a loucura e a doença, a tensa relação com os outros. E a relação com os outros, principalmente com a sociedade vienense e austríaca, é complexa. Já tínhamos lido «Betão» e «Derrubar Árvores» do mesmo autor e sentimos como essa tensão se abria à nossa frente, através das suas palavras quer irónicas, quer violentas, sobre a intelectualidade e a sociedade austríacas. Toda ela, aliás. Não é o único autor da Áustria que assim se comporta: temos outros exemplos de divórcios litigiosos com essa mesma sociedade a que chamam de hipócrita e decadente. Assim foi com Elfriede Jelinek, Georg Haas, Ingeborg Bachmann e outros. Talvez seja esta a prova que a Áustria ainda não se refez de alguns traumas que pretende esconder a todo o custo, o que não a impede de apresentar uma das melhores literaturas. E este livro é disso prova.

«Dia e noite escuto o lamento dos grandes pensadores que fechámos nas nossas bibliotecas, essas ridículas sumidades de espírito, como cabeças mirradas dentro de uma vitrina, assim dizia ele [Wertheimer], pensei. Toda essa gente profanou a natureza, dizia ele, cometeu crime maior contra o espírito, e por isso são punidos por nós e encerrados para sempre nas nossas bibliotecas. Porque morrem sufocados nas nossas bibliotecas, essa é que é a verdade. As nossas bibliotecas são como presídios em que encerrámos as nossa sumidades de espírito, o Kant numa cela de isolamento, como é natural, tal como Nietzsche, tal como Schopanhauer, como Pascal, como Voltaire, como Montaigne, as figuras mais insignes em celas isoladas, todos os outros em celas colectivas, mas todos ali metidos para todo o sempre, meu caro, para toda a eternidade até ao fim dos tempos, eis a grande verdade. (...)» (pág.57)

«Mas tudo o que dizemos é um absurdo, dizia ele, pensei, seja o que for que dissermos é tudo um absurdo, e toda a nossa vida é uma absurdidade total. Percebi isso muito cedo, mal comecei a ser capaz de pensar logo o percebi, só falamos em absurdos, tudo o que dizemos é absurdo, mas também tudo o que é dito pelos outros é um absurdo, tal como tudo é dito de uma maneira geral, neste mundo só se têm dito absurdos, até hoje, assim dizia ele, e, na realidade como é natural só se têm escrito absurdos, todas as obras escritas que possuímos mais não são do que absurdos porque só podem ser absurdos, e a história tem-no provado, dizia ele, pensei.» (pág.58)

alc

«Um Sonho», de August Strindberg

Que interpretações fantásticas de «Um Sonho», de August Strindberg. No Teatro da Cerca de S. Bernardo e encenado por António Augusto Barros. 
 

terça-feira, dezembro 09, 2025

"La Fôret de Flammes et d'Ombres", Akira Mizubayashi

 

Gallimard, 2025
Isto das leituras e dos livros tem o que se lhe diga. Acredito que existe uma rede completamente informal de leitores que interagem movidos pela empatia. Assim foi com este livro de Akira Mizubayashi, autor japonês que não conhecia: mão amiga apresentou-me este «La Fôret de Flammes et d'Ombres» e durante algum tempo vi-me envolvido numa escrita extremamente leve sem que a leveza tenha alguma coisa a ver com a facilidade. Nada disso. A leveza de que falo é uma espécie de levitação durante o processo de leitura devido à toada lírica imprimida pela escrita, pelo extraordinário bom gosto assente nas descrições da vida quotidiana, do amor existente nas personagens e mesmo até na descrição das cenas de guerra em que o Japão se viu envolvido pela obra e graça do imperador Hirohito e dos fascistas que o rodeavam. Aqui, neste extraordinário romance, não há ódio avulso. Há uma recusa silenciosa do totalitarismo em que a arte surge como escape, memória e alavanca para um mundo onde a liberdade tenha sentido. 

O triângulo existente entre as personagens Yuki, Ren e Bin dão à narrativa essa leveza de que falava atrás. São pessoas justas no seu entendimento do outro, compreendem-se totalmente, são imensamente livres porque não se batem em competições inúteis. Cada um tem a sua sensibilidade, a sua mundividência, uma maneira muito própria de ser e de se entreajudarem sem objectivos escondidos, sem que haja uma quebra na forte amizade que os uniu, mesmo nas piores condições de uma guerra terrível onde o Japão conheceu o apocalipse nuclear. O fim da guerra significou igualmente o fim de um regime e o começo de grandes viagens protagonizadas pelas personagens e pelos seus descendentes até aos dias de hoje. Procuram a completude o que acredito que tenham conseguido. A técnica narrativa utilizada por Mizubayashi é fulgurante, de uma síntese que nos espanta a nós leitores.

Não é só a técnica narrativa do autor que admiramos. Quando, no seguimento da leitura de «La Fôret de Flammes et d'Ombres», nos vimos «obrigados» a ouvir a Cavatina, op.130, de Beethoven ou a Nº2, op.13, de Mendelssohn e tentamos visionar as obras pictóricas de Iri e Toshi Maruki é porque o livro e o seu autor cumpriram realmente o seu papel. Perceberão porquê ao ler o livro se assim o entenderem. E mais óbvio ainda é que imaginamos os quadros de Ren tal como nos são descritos enquanto os quartetos de cordas nos dão a conhecer uma música que adivinhamos tão suave, como suaves são os diálogos entre as personagens.

Deixo-vos com um extracto de um diário de uma das personagens, escrita magistralmente por Akira Mizubayashi: «(...) A Arte - tanto a música como a pintura - reúne as almas, abre-as umas a seguir às outras, porque revela e revive nelas este poder de empatia, esta força de identificação singular com o ser sofredor, com o morto, o mais sofredor de todos os sofredores. A Arte exacerba esta faculdade fundamental do homem, empurra-a para o seu paroxismo. É assim, creio, que resiste à morte. (...)» (pág.264)

alc

segunda-feira, dezembro 08, 2025

"Um Saco de Ossos", Maria Lis

 
Língua Morta, 2025

Maria Lis não deixa de nos surpreender com este seu terceiro livro de poesia. Revisitando Georgia O'Keeffe, leva-nos por extensas caminhadas em espaços improváveis no Novo México, no Texas ou ainda em Nova Iorque, deixando-nos uma quadrícula onde pontificam cores, pedras, águas, plantas. A cor está sempre presente dum modo quase obsessivo «...perguntas-me pela música vou respondendo por cores / as palavras não levam a melhor...» e a matéria e a forma de tudo o que nos rodeia, inertes ou vivas, atravessam os poemas «...por ora pinto flores / já que a realidade não precisa de ajuda / posso dedicar-me por inteiro à forma / é que a cor, o âmago, o cheiro / vêm com cada coisa de jeitos torcidos e grotescos...», deixando-nos embrenhados numa mundividência singular protagonizada por O'Keeffe e assenhoreada poeticamente por Maria Lis. Essa osmose, essa junção, é realizada por uma comunicação epistolar baseada provavelmente (soubemo-lo, mais tarde, pelo posfácio) pela correspondência com uma amiga e que a poeta adquiriu num alfarrabista de Santa Fé. 

É um livro de poesia que não nos deixa indiferentes, tal como o seu posfácio: violentamente, Maria Lis atropela-nos com a nossa derrota muitas vezes não assumida, na impossibilidade de questionamento político, na eterna fénix capitalista que se ergue sempre vitorioso, retirando-nos a possibilidade de uma vida própria. Resta-nos a fuga ou a poesia dos sentidos. Como este livro.

alc.

sábado, dezembro 06, 2025

"Oráculo Portátil e Arte da Prudência", Baltazar Gracián

 

VS. Editor, 2021. Tradução de Miguel Meruje
«Oráculo Portátil e Arte da Prudência» é um livro que se deve ler devagar. Baltasar Gracián oferece-nos um conjunto de conselhos em forma de aforismos que nos leva a pensar sobre a arte de viver num mundo intemporal onde vinga a ignorância, a culpa, a maledicência ou, entre muitas outras iniquidades, a cupidez e o embuste. A estupidez e a ousadia dos incompetentes também têm um lugar destacado, mas, ainda assim, sobressaem os remédios para as esconjurar.

Gracián sabe do que fala. Jesuíta, com evidências claras para a escrita e literatura, foi obrigado a vergar-se à disciplina férrea e militar da Companhia fundada por Loyola. Desde a proibição dos seus escritos pela Inquisição até à tortura a pão e água, aconteceu de tudo um pouco: censuras, privação de leituras de livros, prisão, proibição de uso de papel e plumas, não bastaram para a desistência deste homem luminoso. Ele sabia onde doía na sua luta contra a hierarquia e poderosos. Este livro destinava-se aos comuns, aos que labutavam pela sobrevivência num mundo «às avessas», não eram conselhos para príncipes que já tinham a sua maquia com Maquiavel, fosse este irónico ou subserviente. 

Talvez por isso foi lido e seguido, desde meados do século XVII. Assim o fizeram Voltaire, Schopenhauer, Nietzsche, Lacan, Phillipe Sollers ou Debord. Desenvolvido numa estrutura literária barroca, contemporâneo de António Vieira e Quevedo, soube aliar uma crítica política a um pensamento prático da vida comum, alicerçado em paradoxos, aforismos ou puro jogo de palavras rodeadas de brilho. Numa época em que as palavras são amiúde esvaziadas de sentido, não deixa de ser necessário voltar aos séculos de ouro da literatura. Baltasar Gracián é um desses expoentes.

alc