sábado, agosto 23, 2025

"Os Frutos da Terra", Knut Hamsun

 

Cavalo de Ferro, 2016. Tradução do norueguês de João Reis
Numa época em que tudo arde, em que a Natureza é posta à última prova, a da sua própria sobrevivência, ler «Os Frutos da Terra», do norueguês Knut Hamsun, já aqui referido com «Fome» e «Pan», não deixa de ser uma triste ironia, uma metáfora desagregadora da relação entre uma Humanidade falhada com uma Terra doente. 

Escrita em 1917, esta obra, contudo, não se pode entender como optimista. Hamsun tem todas as dúvidas, nem sempre explícitas, sobre o destino das comunidades camponesas isoladas no norte da Noruega, cuja vida é marcada pelos ritmos e vontade dos ciclos da terra, do clima, das montanhas, dos pântanos e da vontade férrea e desinteressada do trabalho humano. Erguer uma cultura afastada criteriosamente das cidades, das aldeias, das ideologias e da religião cristã, era o objectivo dessas mesmas comunidades paganizadas que viam no nascer das sementes e do que a floresta lhes dava a verdadeira vida, aquela que valeria a pena ser vivida. Se eram pagãs, não o eram por qualquer escolha religiosa, social ou muito menos política. Era porque assim o determinava os ciclos dos homens, das mulheres, dos jovens e da Natureza. Os conceitos do bem e o mal tornavam-se obsoletos, dispensáveis e só as comunidades e a consciência de cada um, em confronto com as situações que lhes eram manifestadas pelos elementos aleatórios da vida e da morte tinham importância. Agiam conforme o que lhes era ditado por uma justiça que vinha da sabedoria dos ancestrais. Por vezes cruel, outras vezes branda, sempre livres de julgamentos impostos pelas leis dos homens dos governos. 

Juntem todo este magma social a uma escrita única, a um estilo sóbrio e denso, embora claro, e nunca esquecerão este livro. Torna-se presente em nós, como em todos os clássicos. Estamos, de facto, perante um livro inesquecível, tornado público numa era de guerras de uma segunda revolução industrial dos finais do século XIX na Europa e Américas. É daí que surge o leve pessimismo de Knut Hamsun sobre a possibilidade de continuação destas comunidades livres. Os colonos são confrontados com o extractivismo do cobre que esventram as montanhas, o comércio avassalador e inútil que tudo transforma em bens usurários e os impostos e directivas dos governos que se acham senhores de tudo o que é considerado natural. 

Hoje, quer queiramos ou não, e para uma população europeia que vive intrinsecamente ligada à cidade, a energia emergente da terra é indefinida, desconhecida. O telúrico afundou-se em alcatrão e pavimentos de pedra. As relações sociais deslaçaram-se há muito. Teremos então muita dificuldade em entender este livro, mas a atracção reside nisso mesmo: nas possibilidades de voltar, de regressar, de emigrar, de nos tornarmos colonos de uma vida outra. Ou se quisermos ainda salvarmo-nos. Ou se vamos a tempo.

«Os três homens trabalham até ao meio-dia, comem os seus farnéis e conversam por um curto período. Têm as suas próprias coisas de que falar: acerca das aflições que atingem a área remota e os seus colonos. Nada de parvoíces, mas sim assuntos que merecem ponderação. Estão calmos, os seus nervos não se encontram tensos e não fazem o que não devem. O Outono aproxima-se, a floresta em volta está serena, as montanhas estão ali, o Sol está ali, e esta noite, a Lua e as estrelas surgirão: tudo permanece o mesmo, cheio de doçura, em abraço. Aqui, as pessoas têm tempo de descansar na floresta, com um braço servindo-lhes de almofada.» (pág.294)

Falou-se sobre Knut Hamsun noutras ocasiões e sabemos que a sua vida não correu pelo melhor, visto que as suas opções políticas levaram-no a apoiar a Alemanha durante a II Guerra Mundial, ou seja, a estar ao lado do ocupante da Noruega, o que lhe trouxe a infâmia, provavelmente até hoje. De uma vida extremamente indigente na sua juventude, daí o extraordinário «Fome», e depois de ser reconhecido como um dos maiores escritores de sempre, cai na pobreza absoluta novamente devido às expropriações de que foi alvo após o julgamento por traição, inclusive o que tinha ganho com o Nobel de 1920. Morre em 1952. Esquecido. Os livros, não obstante, aí estão, para os acompanharmos sempre.

alc

quinta-feira, agosto 14, 2025

"Flauta de Luz" 11

 

Cada número que sai constitui uma surpresa pela qualidade, mas igualmente pela insubmissão que espelha em cada artigo que se lê, não fosse ela feita de Luz. Gostaria de aqui destacar um ou outro artigo, mas seria injusto e ostracizaria todos os outros. Arrisco, no entanto, falar do genocídio de Gaza ("Gaza é o destino da Humanidade", de Ognian Kassabov, por exemplo, é arrasador de tão verdade que é), um texto maravilhoso de Christian Bobin, o fim do extractivismo no Barroso, Alfred Jarry, Gunther Anders, Júlio Henriques, Joelle Ghazarian, David Watson, etc...etc...

"Memórias do Subterrâneo", Fiódor Dostoievski

Relógio D'Água, 2017. Tradução de António Pescada
Sabemos que Dostoievski foi um ser atormentado. Foi Deus, o mundo, a sociedade, a educação, a família, ele próprio. O «Subterrâneo» é a vida dele e contou-a aqui, teria 45 anos o que, mesmo no século XIX, seria um pouco prematuro. Não sei se essa tormenta que ele diz ter sido a vida dele, criada numa casa da pequena nobreza russa, não terá sido uma espécie de lampejo filosófico-emocional que levou o homem a fazer chorar as pedras da calçada, mas se assim foi, fê-lo bem melhor que os românticos que acusa de má literatura. Se assim foi, repito, e se estas memórias são mesmo dele e não um mero exercício de estilo, o homem terá sido um canalha para com Liza, para com os amigos, para com o seu criado, foi corroído pela inveja, pelo ostracismo social, pela falta de dinheiro, pela incompetência no trabalho e invectivando-nos a todos a ser como ele. Mesmo que o recusássemos, ele lembra-nos que essa negação é uma forma de aceitar o que para ele é obvio: somos todos canalhas! Ou seja, a dupla negação é uma afirmação. Como matemático supera, em muito, a filosofia. Deixemos Dostoievski falar, por si, acerca deste mesmo livro:

«Mesmo agora ao fim de tantos anos, recordo tudo isto como demasiado mau. Há muitas coisas que agora recordo mal, mas... não será melhor terminar aqui estas ''Memórias''? Parece-me que cometi um erro ao começar a escrevê-las. Pelo menos senti vergonha durante todo o tempo em que escrevia esta narrativa: portanto, isto nem é literatura, mas um castigo correcional. Porque contar, por exemplo, uma longa história sobre como estraguei a minha vida a um canto com a depravação moral, a insuficiência de meios, a desabituação da vida viva e a maldade vaidosa no subterrâneo, palavra, não é interessante; no romance é necessário um herói, mas aqui estão de propósito reunidos todos os traços de um anti-herói, e, principalmente, tudo isto causa a mais desagradável impressão, porque todos nós nos desabituámo-nos da vida, todos manquejamos, uns mais, outros menos. (...)» (pág.126)

Talvez subscreva.

alc 

sábado, agosto 09, 2025

"Adém, Arábia", Paul Nizan

 

VS edições, 2020. Tradução de Diogo Paiva 
É pouco, muito pouco, reduzir Paul Nizan à sua frase celebrizada pela crítica, por preguiçosos, ou pela net que, na pesquisa ao seu nome, lá aparece «Eu tinha vinte anos. Não deixarei que alguém diga que é a mais bela idade da vida.» Para além de ter tido razão, Paul Nizan é muito mais que isso. Este «Adém, Arábia», escrito em 1931, é o seu primeiro romance e seria bom que não deixássemos a sua obra por aqui. Traduz a sua experiência em Adém, no Iémen, entre 1926 e 27. Nos tais vinte anos que ele execra, adere ao Faisceau, um partido fascista, mas rapidamente, após conhecer as obras de Lénine, adere ao PCF e chega a ser seu candidato às legislativas. Escreve igualmente «Les Chiens de Garde» sendo violentamente crítico para com os jornalistas que apoiam abertamente ou subrepticiamente a burguesia e o fascismo, uma e a mesma coisa nos anos 30, em que tomava forma a tão vitoriosa, quanto hesitante, Frente Popular. 

Paul Nizan é inconfundível na sua escrita e no seu pensamento mas, por vezes, lembra o existencialismo libertário de Camus, ele que foi colega de Sartre no liceu e que com ele privou toda a vida, sem que, mais uma vez, tenha participado na sua obliteração. Porque este ostracismo político a que foi votado pelo PCF teve como causa a sua recusa em aceitar o Pacto Germano-Soviético de 1939. Aqui os «cães de guarda» de Estaline foram Maurice Thorez que o aponta como polícia ao serviço da Alemanha, o infame Aragon e o não menos infame Malraux. Em «Les Communistes», Aragon chega a caracterizar uma personagem da polícia como Nizan, embora cobardemente em 1966, na reedição da obra, o tenha banido, já com Nizan «recuperado». Por cinismo da História, ele foi morto em Dunquerque, em 1940, com uma bala alemã e ao lado dos ingleses! Sartre, cuidadoso, tentou invectivar o PCF para reverter a sua posição face a Nizan, mas durante tempo demais e previsivelmente, conhecendo a personagem, calou-se. 

Talvez o melhor de Nizan esteja neste livro que Vasco Santos (VS) editou em 2020. Logo nas suas primeiras páginas mostrou o enorme desprezo que tinha pela École Normale «(...) uma das cabeças de França, que é provida de chefes como uma hidra. Ali se prepara uma parte dessa orgulhosa trupe de mágicos que aqueles que pagam para a formar nomeiam de Elite e que tem por missão manter o povo a caminho da complacência e do respeito, virtudes que representam o Bem.» (pág.15) Mas nem só os jornalistas dos anos 30 foram apodados de «cães de guarda»: igualmente os professores. «(...) Os filósofos serão simplesmente os cães de guarda do vocabulário e os historiadores dessa Idade Média em que as palavras tinham vários sentidos. Entretanto, aprenderam a pôr de lado os pensamentos perigosos, até ao dia em que os seus venenos se evaporem: a razão tem tempo, ela terá a sua hora para os reencontrar, que não coincide com a hora dos homens.» (pág.17)
 
E sobre a Europa: «A Europa, com a sua magra conta de terras, a sua pobreza de homens e de petróleo, a sua miséria de acontecimentos, parecia uma velha mulher agonizante entre dois heróis: a Ásia, herói da sabedoria, a América, herói do poder. A África, a Oceânia, ainda não eram senão reservatórios transbordantes de poesia que só as feiras de curiosidades e os poetas utilizavam para a inspiração ressequida. 
Tudo isto simplesmente acentuava a preguiça e a impotência das pessoas da Europa para fazer alguma coisa por si próprias: os outros continentes forneciam alguns dos mundos imaginários que à noite todos os homens inventavam para esquecer as verdades do seu purgatório e decorar de ilusões a sua indigência e esmagamento.» (pág.32). Esta perspectiva sobre a Europa e sobre os europeus permanece sempre em Nizan, quanto mais ele conhece o Mar Vermelho e o Índico. Ele sabe, nós sabemos do que o europeu é capaz: o colonialismo, a extracção, a rapina, a escravatura, a redução de populações inteiras à miséria, à cupidez do lucro que ele odeia, quando não da prática aberta do genocídio que ainda hoje perdura à frente dos nossos olhos. 

Práticas que Paul Nizan não pretende esconder dos outros e de si próprio. Ele virá para França com um ódio renovado, capaz, legítimo: «É preciso perder o receio de odiar. É preciso perder o rubor por se ser fanático. Eu devo-lhes mal: eles estiveram quase a fazer com que eu me perdesse. O ódio vai aumentar com a cólera de saber que o ódio é uma diminuição do Ser, um estado em que a pobreza como mãe. Espinosa diz que o ódio e o arrependimento são dois inimigos do género humano: ignorarei pelo menos o arrependimento, farei um bom par com o ódio. Bom par com o esquecimento. Os deveres honrados, os dramas mágicos engendrados nos corações não são mais do que símbolos de jogos mortíferos para os homens.» (pág.146)

«Farei um bom par com o ódio» poderia ser a frase que poderia substituir aquela dos tais vinte anos que no início referi. Mas o ódio é por sua vez odiado. Quem o usa mais, quem proclama mais o vigente «discurso de ódio» são aqueles que mais ódio têm. Reparem onde ele desagua com uma força imparável: nos comentários dos jornais escritos que, propositadamente, obviam qualquer «regulação» do tal ódio que todos os dias enxameiam as redes. Porque o ódio lhes convém sob aquela forma que é a propaganda. Até á proibição final. O ódio perante os criminosos de hoje que provocam genocídios e criam autênticos calígulas e neros, esses tem uma vida assegurada. Por mim, faria igualmente um bom par com o ódio, sim. 

Paul Nizan deveria ser mais lido e estudado.

alc

domingo, agosto 03, 2025

«Casa de Barcos», Jon Fosse

 

Cavalo de Ferro, 2025. Tradução do norueguês de Liliete Martins
Será que a prosa tem métrica? Parece que para os entendidos, não, não terá. Mas é inegável que Jon Fosse escreve como respira. Cada período parece ter em atenção a nossa velocidade de leitura em períodos pequenos, dialogantes, ritmados, com palavras escolhidas não por acaso e com ausência quase total de parágrafos que só existem nos poucos diálogos existentes. O nosso pensamento voa com a impressão das letras e das palavras por ele expostas, adivinhamos que profundamente reflectidas, rasuradas, novamente aduzidas. Reedificadas para nosso prazer de leitura. Se a iniciamos é impossível de parar, não só pelo estilo literário, mas pela trama aparentemente repetida, mas com algo de novo em cada situação que decorre.

Jon Fosse é norueguês, de Hausegund, nascido em 1959. Dele, já li com igual alegria a sua «Trilogia». Deram-lhe o Nobel em 2023 o que não o prejudicou em nada, diga-se em abono da verdade. «Casa de Barcos» é dos primeiros dele, de 1989 (!!) e não houve alma editorial que o descobrisse ou agente que o propusesse a esta santa terra lusitana! Adiante, que exemplos destes temos muitos. Pelo menos, Jon Fosse escrevia desde 1983, estreando-se com «Raudt, svart» (Vermelho, preto). Voltarei a ele, ameaça que cumprirei.

A narrativa passa-se numa pequena aldeia norueguesa, junto a um fiorde onde a personagem principal pouco faz além de pescar, tocar guitarra em bailes aos fins-de-semana e, embora trintão vive ainda com a mãe (atenção, que estamos em países nórdicos. Para eles trata-se de um escândalo!). Não trabalha e passa o tempo na Biblioteca a requisitar livros que lê de supetão no sótão da sua casa. A partir de um certo momento inquieta-se e deixa de ler, sai pouco de casa e escreve por necessidade quase física. A chegada de um amigo da sua adolescência, Knut (e não Kurt como vem na contracapa do livro!), vem agravar mais essa tensão interior. Recorda-lhe pequenas, muito pequenas coisas, factos quase irrelevantes, acontecimentos a que não daríamos muita importância, mas que o tempo resolve tornar vívidos. Isto também acontece connosco, e, com a idade, muito mais memória que achamos residual vem à tona, o que confere toda a verosimilhança ao romance. A atracção, o amor, a sedução, a incomodidade, são narradas magistralmente. Até ao final, que me abstenho de contar aqui, como me parece de bom senso. 

«Já não saio de casa, uma inquietação apoderou-se de mim e deixei de sair de casa. Foi no último Verão que esta inquietação se apoderou de mim. Voltei a encontrar o Knut, que já não via há uns dez anos certamente. O Knut e eu andávamos sempre juntos. Uma inquietação apoderou-se de mim. Não sei o que é, mas esta inquietação afecta-me o braço esquerdo, os dedos. Já não saio de casa. Não sei porquê, mas há já diversos meses que não ponho um pé fora de casa. E é só por causa desta inquietação. Foi por isso que decidi escrever, vou escrever um romance. Tenho de fazer qualquer coisa. esta inquietação é insuportável. se escrever talvez isso me ajude. (...)» (pág.7)

alc

sexta-feira, agosto 01, 2025

"O Medo do Céu", Fleur Jaeggy

 

Alfaguara, 2025. Tradução de Ana Cláudia Santos 
A escrita de Fleur Jaeggy continua, e creio que continuará, a constituir uma surpresa sempre renovada. Extremamente contida nas palavras, usa-as como facas, como uma seta apontada aos nossos sentidos. A imprevisibilidade, o choque, a relação agressiva e distante para quem a lê são constantes na leitura de Jaeggy. Cumpre, portanto, o papel da Literatura. «A viagem de núpcias dos senhores Ruegg durou poucos dias. Otto Karl estava inquieto, queria ter regressado a casa após a primeira noite. Com a mulher ao lado da cama, considerava os abraços um sinal de preguiça. A mulher dormia agora, ele tinha a mão pousada sobre a nuca que pouco antes tinha mordido. Fazia projetos. Queria um matadouro.» (pág.25)

Li todos os livros de Jaeggy editados em português, através do trabalho da tradutora e escritora Ana Cláudia Santos e este é muito diferente de «Felizes Anos de Castigo» e de «Viagem no Proleterka». São sete contos dedicados à morte física ou mental ou muito perto dela e cuja presença se faz sentir de múltiplas formas: ou afastada de nós sem esperarmos nada dela, violentamente presente desde o início dos contos ou, até, insinuante. Mas sempre connosco. Daí, o medo do céu, porque nunca saberemos de que é feito, de que matéria química é sustentado e que gases edénicos envolverão os corpos para além dos vermes ou do fogo terreno. Assim é a escrita de Fleur Jaeggy. Cruel, desprovida de qualquer empatia para quem a lê, mas certeira pelo incómodo gerado, pelas verdades que perpassam as relações humanas e principalmente as familiares, sempre abertas aos piores ódios. Ela sabe escrevê-los como é raro encontrar na literatura contemporânea. 

Sei muito pouco sobre a vida de Fleur Jaeggy. Não será a nuvem digital que me vai revelar alguns aspectos que gostaria de saber mais desde que li «Felizes Anos de Castigo» sobre a vida de um colégio interno onde ela passou vários anos da sua adolescência e que, julgo, a marcaram para sempre. Mas há outro mistério que se adensa: tendo nascido em 1940, em Zurique, vive hoje quase reclusa em Milão e conviveu com Ingeborg Bachmann, Thomas Bernhard, Joseph Brodsky, Italo Calvino que se referiram a ela como uma escritora excepcional. Na minha opinião, é-o, e não se compreende que fosse traduzida tão tarde aqui. E, conhecendo pouco a pouco o estilo inconfundível de Fleur Jaeggy, percebemos por que razão ela estudou e escreveu sobre o enorme Robert Walser e também sobre o escritor maldito Thomas de Quincey. 

Deixo-vos com um extracto da sua escrita neste «O Medo do Céu»:

«Verena sentia-se jovem e calma. Só tinha curiosidade pela sua velhice, tornara-se vaidosa. Nunca o fora, então. Tinha sido modesta, na juventude. E tinha notado que também os outros velhos tinham ficado inchados de vaidade. É a idade, aquela idade teimosa, avessa à morte, em que nos sentimos vaidosos. Ela tem a certeza disso, a vaidade não pertence aos jovens. Não pertence às belas mulheres nem aos rapazes. Não, essa não é senão um subproduto da vaidade. Ela observara-os, aos jovens, quando saía de casa, fizera até uma comparação entre si e eles. Está decrépita, teriam dito aqueles jovens. Agora, andava sempre tão bem arranjada, não apenas por causa daquela ideia tola de a polícia dizer, se a encontrasse morta: ''Mas que limpa que está a sua casa.'' Isso era uma desculpa. Uma desculpa para a polícia. Só o céu podia saber quanto ela era realmente vaidosa. É uma coisa que vai além do físico, uma coisa profunda, terrivelmente profunda. Nem o desespero poderia ser tão profundo. Mas, pensando bem, Verena tem um sobressalto. Talvez seja desespero, a vaidade dos velhos. Os seus cabelos vaporosos vão de azul ao cinza, os seus olhos azuis são entre o cinza e o amarelo, os olhos que observam o marido com desafio e supremacia celestial.» (pág.111)

Provavelmente desenhá-la-ei.
alc