VS edições, 2020. Tradução de Diogo Paiva
É pouco, muito pouco, reduzir Paul Nizan à sua frase celebrizada pela crítica, por preguiçosos, ou pela net que, na pesquisa ao seu nome, lá aparece «Eu tinha vinte anos. Não deixarei que alguém diga que é a mais bela idade da vida.» Para além de ter tido razão, Paul Nizan é muito mais que isso. Este «Adém, Arábia», escrito em 1931, é o seu primeiro romance e seria bom que não deixássemos a sua obra por aqui. Traduz a sua experiência em Adém, no Iémen, entre 1926 e 27. Nos tais vinte anos que ele execra, adere ao Faisceau, um partido fascista, mas rapidamente, após conhecer as obras de Lénine, adere ao PCF e chega a ser seu candidato às legislativas. Escreve igualmente «Les Chiens de Garde» sendo violentamente crítico para com os jornalistas que apoiam abertamente ou subrepticiamente a burguesia e o fascismo, uma e a mesma coisa nos anos 30, em que tomava forma a tão vitoriosa, quanto hesitante, Frente Popular.
Paul Nizan é inconfundível na sua escrita e no seu pensamento mas, por vezes, lembra o existencialismo libertário de Camus, ele que foi colega de Sartre no liceu e que com ele privou toda a vida, sem que, mais uma vez, tenha participado na sua obliteração. Porque este ostracismo político a que foi votado pelo PCF teve como causa a sua recusa em aceitar o Pacto Germano-Soviético de 1939. Aqui os «cães de guarda» de Estaline foram Maurice Thorez que o aponta como polícia ao serviço da Alemanha, o infame Aragon e o não menos infame Malraux. Em «Les Communistes», Aragon chega a caracterizar uma personagem da polícia como Nizan, embora cobardemente em 1966, na reedição da obra, o tenha banido, já com Nizan «recuperado». Por cinismo da História, ele foi morto em Dunquerque, em 1940, com uma bala alemã e ao lado dos ingleses! Sartre, cuidadoso, tentou invectivar o PCF para reverter a sua posição face a Nizan, mas durante tempo demais e previsivelmente, conhecendo a personagem, calou-se.
Talvez o melhor de Nizan esteja neste livro que Vasco Santos (VS) editou em 2020. Logo nas suas primeiras páginas mostrou o enorme desprezo que tinha pela École Normale «(...) uma das cabeças de França, que é provida de chefes como uma hidra. Ali se prepara uma parte dessa orgulhosa trupe de mágicos que aqueles que pagam para a formar nomeiam de Elite e que tem por missão manter o povo a caminho da complacência e do respeito, virtudes que representam o Bem.» (pág.15) Mas nem só os jornalistas dos anos 30 foram apodados de «cães de guarda»: igualmente os professores. «(...) Os filósofos serão simplesmente os cães de guarda do vocabulário e os historiadores dessa Idade Média em que as palavras tinham vários sentidos. Entretanto, aprenderam a pôr de lado os pensamentos perigosos, até ao dia em que os seus venenos se evaporem: a razão tem tempo, ela terá a sua hora para os reencontrar, que não coincide com a hora dos homens.» (pág.17)
E sobre a Europa: «A Europa, com a sua magra conta de terras, a sua pobreza de homens e de petróleo, a sua miséria de acontecimentos, parecia uma velha mulher agonizante entre dois heróis: a Ásia, herói da sabedoria, a América, herói do poder. A África, a Oceânia, ainda não eram senão reservatórios transbordantes de poesia que só as feiras de curiosidades e os poetas utilizavam para a inspiração ressequida.
Tudo isto simplesmente acentuava a preguiça e a impotência das pessoas da Europa para fazer alguma coisa por si próprias: os outros continentes forneciam alguns dos mundos imaginários que à noite todos os homens inventavam para esquecer as verdades do seu purgatório e decorar de ilusões a sua indigência e esmagamento.» (pág.32). Esta perspectiva sobre a Europa e sobre os europeus permanece sempre em Nizan, quanto mais ele conhece o Mar Vermelho e o Índico. Ele sabe, nós sabemos do que o europeu é capaz: o colonialismo, a extracção, a rapina, a escravatura, a redução de populações inteiras à miséria, à cupidez do lucro que ele odeia, quando não da prática aberta do genocídio que ainda hoje perdura à frente dos nossos olhos.
Práticas que Paul Nizan não pretende esconder dos outros e de si próprio. Ele virá para França com um ódio renovado, capaz, legítimo: «É preciso perder o receio de odiar. É preciso perder o rubor por se ser fanático. Eu devo-lhes mal: eles estiveram quase a fazer com que eu me perdesse. O ódio vai aumentar com a cólera de saber que o ódio é uma diminuição do Ser, um estado em que a pobreza como mãe. Espinosa diz que o ódio e o arrependimento são dois inimigos do género humano: ignorarei pelo menos o arrependimento, farei um bom par com o ódio. Bom par com o esquecimento. Os deveres honrados, os dramas mágicos engendrados nos corações não são mais do que símbolos de jogos mortíferos para os homens.» (pág.146)
«Farei um bom par com o ódio» poderia ser a frase que poderia substituir aquela dos tais vinte anos que no início referi. Mas o ódio é por sua vez odiado. Quem o usa mais, quem proclama mais o vigente «discurso de ódio» são aqueles que mais ódio têm. Reparem onde ele desagua com uma força imparável: nos comentários dos jornais escritos que, propositadamente, obviam qualquer «regulação» do tal ódio que todos os dias enxameiam as redes. Porque o ódio lhes convém sob aquela forma que é a propaganda. Até á proibição final. O ódio perante os criminosos de hoje que provocam genocídios e criam autênticos calígulas e neros, esses tem uma vida assegurada. Por mim, faria igualmente um bom par com o ódio, sim.
Paul Nizan deveria ser mais lido e estudado.
alc
