quinta-feira, agosto 14, 2025

"Memórias do Subterrâneo", Fiódor Dostoievski

Relógio D'Água, 2017. Tradução de António Pescada
Sabemos que Dostoievski foi um ser atormentado. Foi Deus, o mundo, a sociedade, a educação, a família, ele próprio. O «Subterrâneo» é a vida dele e contou-a aqui, teria 45 anos o que, mesmo no século XIX, seria um pouco prematuro. Não sei se essa tormenta que ele diz ter sido a vida dele, criada numa casa da pequena nobreza russa, não terá sido uma espécie de lampejo filosófico-emocional que levou o homem a fazer chorar as pedras da calçada, mas se assim foi, fê-lo bem melhor que os românticos que acusa de má literatura. Se assim foi, repito, e se estas memórias são mesmo dele e não um mero exercício de estilo, o homem terá sido um canalha para com Liza, para com os amigos, para com o seu criado, foi corroído pela inveja, pelo ostracismo social, pela falta de dinheiro, pela incompetência no trabalho e invectivando-nos a todos a ser como ele. Mesmo que o recusássemos, ele lembra-nos que essa negação é uma forma de aceitar o que para ele é obvio: somos todos canalhas! Ou seja, a dupla negação é uma afirmação. Como matemático supera, em muito, a filosofia. Deixemos Dostoievski falar, por si, acerca deste mesmo livro:

«Mesmo agora ao fim de tantos anos, recordo tudo isto como demasiado mau. Há muitas coisas que agora recordo mal, mas... não será melhor terminar aqui estas ''Memórias''? Parece-me que cometi um erro ao começar a escrevê-las. Pelo menos senti vergonha durante todo o tempo em que escrevia esta narrativa: portanto, isto nem é literatura, mas um castigo correcional. Porque contar, por exemplo, uma longa história sobre como estraguei a minha vida a um canto com a depravação moral, a insuficiência de meios, a desabituação da vida viva e a maldade vaidosa no subterrâneo, palavra, não é interessante; no romance é necessário um herói, mas aqui estão de propósito reunidos todos os traços de um anti-herói, e, principalmente, tudo isto causa a mais desagradável impressão, porque todos nós nos desabituámo-nos da vida, todos manquejamos, uns mais, outros menos. (...)» (pág.126)

Talvez subscreva.

alc