Alfaguara, 2025. Tradução de Ana Cláudia Santos
A escrita de Fleur Jaeggy continua, e creio que continuará, a constituir uma surpresa sempre renovada. Extremamente contida nas palavras, usa-as como facas, como uma seta apontada aos nossos sentidos. A imprevisibilidade, o choque, a relação agressiva e distante para quem a lê são constantes na leitura de Jaeggy. Cumpre, portanto, o papel da Literatura. «A viagem de núpcias dos senhores Ruegg durou poucos dias. Otto Karl estava inquieto, queria ter regressado a casa após a primeira noite. Com a mulher ao lado da cama, considerava os abraços um sinal de preguiça. A mulher dormia agora, ele tinha a mão pousada sobre a nuca que pouco antes tinha mordido. Fazia projetos. Queria um matadouro.» (pág.25)
Li todos os livros de Jaeggy editados em português, através do trabalho da tradutora e escritora Ana Cláudia Santos e este é muito diferente de «Felizes Anos de Castigo» e de «Viagem no Proleterka». São sete contos dedicados à morte física ou mental ou muito perto dela e cuja presença se faz sentir de múltiplas formas: ou afastada de nós sem esperarmos nada dela, violentamente presente desde o início dos contos ou, até, insinuante. Mas sempre connosco. Daí, o medo do céu, porque nunca saberemos de que é feito, de que matéria química é sustentado e que gases edénicos envolverão os corpos para além dos vermes ou do fogo terreno. Assim é a escrita de Fleur Jaeggy. Cruel, desprovida de qualquer empatia para quem a lê, mas certeira pelo incómodo gerado, pelas verdades que perpassam as relações humanas e principalmente as familiares, sempre abertas aos piores ódios. Ela sabe escrevê-los como é raro encontrar na literatura contemporânea.
Sei muito pouco sobre a vida de Fleur Jaeggy. Não será a nuvem digital que me vai revelar alguns aspectos que gostaria de saber mais desde que li «Felizes Anos de Castigo» sobre a vida de um colégio interno onde ela passou vários anos da sua adolescência e que, julgo, a marcaram para sempre. Mas há outro mistério que se adensa: tendo nascido em 1940, em Zurique, vive hoje quase reclusa em Milão e conviveu com Ingeborg Bachmann, Thomas Bernhard, Joseph Brodsky, Italo Calvino que se referiram a ela como uma escritora excepcional. Na minha opinião, é-o, e não se compreende que fosse traduzida tão tarde aqui. E, conhecendo pouco a pouco o estilo inconfundível de Fleur Jaeggy, percebemos por que razão ela estudou e escreveu sobre o enorme Robert Walser e também sobre o escritor maldito Thomas de Quincey.
Deixo-vos com um extracto da sua escrita neste «O Medo do Céu»:
«Verena sentia-se jovem e calma. Só tinha curiosidade pela sua velhice, tornara-se vaidosa. Nunca o fora, então. Tinha sido modesta, na juventude. E tinha notado que também os outros velhos tinham ficado inchados de vaidade. É a idade, aquela idade teimosa, avessa à morte, em que nos sentimos vaidosos. Ela tem a certeza disso, a vaidade não pertence aos jovens. Não pertence às belas mulheres nem aos rapazes. Não, essa não é senão um subproduto da vaidade. Ela observara-os, aos jovens, quando saía de casa, fizera até uma comparação entre si e eles. Está decrépita, teriam dito aqueles jovens. Agora, andava sempre tão bem arranjada, não apenas por causa daquela ideia tola de a polícia dizer, se a encontrasse morta: ''Mas que limpa que está a sua casa.'' Isso era uma desculpa. Uma desculpa para a polícia. Só o céu podia saber quanto ela era realmente vaidosa. É uma coisa que vai além do físico, uma coisa profunda, terrivelmente profunda. Nem o desespero poderia ser tão profundo. Mas, pensando bem, Verena tem um sobressalto. Talvez seja desespero, a vaidade dos velhos. Os seus cabelos vaporosos vão de azul ao cinza, os seus olhos azuis são entre o cinza e o amarelo, os olhos que observam o marido com desafio e supremacia celestial.» (pág.111)
Provavelmente desenhá-la-ei.
alc
