Cavalo de Ferro, 2025. Tradução do norueguês de Liliete Martins
Será que a prosa tem métrica? Parece que para os entendidos, não, não terá. Mas é inegável que Jon Fosse escreve como respira. Cada período parece ter em atenção a nossa velocidade de leitura em períodos pequenos, dialogantes, ritmados, com palavras escolhidas não por acaso e com ausência quase total de parágrafos que só existem nos poucos diálogos existentes. O nosso pensamento voa com a impressão das letras e das palavras por ele expostas, adivinhamos que profundamente reflectidas, rasuradas, novamente aduzidas. Reedificadas para nosso prazer de leitura. Se a iniciamos é impossível de parar, não só pelo estilo literário, mas pela trama aparentemente repetida, mas com algo de novo em cada situação que decorre.
Jon Fosse é norueguês, de Hausegund, nascido em 1959. Dele, já li com igual alegria a sua «Trilogia». Deram-lhe o Nobel em 2023 o que não o prejudicou em nada, diga-se em abono da verdade. «Casa de Barcos» é dos primeiros dele, de 1989 (!!) e não houve alma editorial que o descobrisse ou agente que o propusesse a esta santa terra lusitana! Adiante, que exemplos destes temos muitos. Pelo menos, Jon Fosse escrevia desde 1983, estreando-se com «Raudt, svart» (Vermelho, preto). Voltarei a ele, ameaça que cumprirei.
A narrativa passa-se numa pequena aldeia norueguesa, junto a um fiorde onde a personagem principal pouco faz além de pescar, tocar guitarra em bailes aos fins-de-semana e, embora trintão vive ainda com a mãe (atenção, que estamos em países nórdicos. Para eles trata-se de um escândalo!). Não trabalha e passa o tempo na Biblioteca a requisitar livros que lê de supetão no sótão da sua casa. A partir de um certo momento inquieta-se e deixa de ler, sai pouco de casa e escreve por necessidade quase física. A chegada de um amigo da sua adolescência, Knut (e não Kurt como vem na contracapa do livro!), vem agravar mais essa tensão interior. Recorda-lhe pequenas, muito pequenas coisas, factos quase irrelevantes, acontecimentos a que não daríamos muita importância, mas que o tempo resolve tornar vívidos. Isto também acontece connosco, e, com a idade, muito mais memória que achamos residual vem à tona, o que confere toda a verosimilhança ao romance. A atracção, o amor, a sedução, a incomodidade, são narradas magistralmente. Até ao final, que me abstenho de contar aqui, como me parece de bom senso.
«Já não saio de casa, uma inquietação apoderou-se de mim e deixei de sair de casa. Foi no último Verão que esta inquietação se apoderou de mim. Voltei a encontrar o Knut, que já não via há uns dez anos certamente. O Knut e eu andávamos sempre juntos. Uma inquietação apoderou-se de mim. Não sei o que é, mas esta inquietação afecta-me o braço esquerdo, os dedos. Já não saio de casa. Não sei porquê, mas há já diversos meses que não ponho um pé fora de casa. E é só por causa desta inquietação. Foi por isso que decidi escrever, vou escrever um romance. Tenho de fazer qualquer coisa. esta inquietação é insuportável. se escrever talvez isso me ajude. (...)» (pág.7)
alc
