Cavalo de Ferro, 2016. Tradução do norueguês de João Reis
Numa época em que tudo arde, em que a Natureza é posta à última prova, a da sua própria sobrevivência, ler «Os Frutos da Terra», do norueguês Knut Hamsun, já aqui referido com «Fome» e «Pan», não deixa de ser uma triste ironia, uma metáfora desagregadora da relação entre uma Humanidade falhada com uma Terra doente.
Escrita em 1917, esta obra, contudo, não se pode entender como optimista. Hamsun tem todas as dúvidas, nem sempre explícitas, sobre o destino das comunidades camponesas isoladas no norte da Noruega, cuja vida é marcada pelos ritmos e vontade dos ciclos da terra, do clima, das montanhas, dos pântanos e da vontade férrea e desinteressada do trabalho humano. Erguer uma cultura afastada criteriosamente das cidades, das aldeias, das ideologias e da religião cristã, era o objectivo dessas mesmas comunidades paganizadas que viam no nascer das sementes e do que a floresta lhes dava a verdadeira vida, aquela que valeria a pena ser vivida. Se eram pagãs, não o eram por qualquer escolha religiosa, social ou muito menos política. Era porque assim o determinava os ciclos dos homens, das mulheres, dos jovens e da Natureza. Os conceitos do bem e o mal tornavam-se obsoletos, dispensáveis e só as comunidades e a consciência de cada um, em confronto com as situações que lhes eram manifestadas pelos elementos aleatórios da vida e da morte tinham importância. Agiam conforme o que lhes era ditado por uma justiça que vinha da sabedoria dos ancestrais. Por vezes cruel, outras vezes branda, sempre livres de julgamentos impostos pelas leis dos homens dos governos.
Juntem todo este magma social a uma escrita única, a um estilo sóbrio e denso, embora claro, e nunca esquecerão este livro. Torna-se presente em nós, como em todos os clássicos. Estamos, de facto, perante um livro inesquecível, tornado público numa era de guerras de uma segunda revolução industrial dos finais do século XIX na Europa e Américas. É daí que surge o leve pessimismo de Knut Hamsun sobre a possibilidade de continuação destas comunidades livres. Os colonos são confrontados com o extractivismo do cobre que esventram as montanhas, o comércio avassalador e inútil que tudo transforma em bens usurários e os impostos e directivas dos governos que se acham senhores de tudo o que é considerado natural.
Hoje, quer queiramos ou não, e para uma população europeia que vive intrinsecamente ligada à cidade, a energia emergente da terra é indefinida, desconhecida. O telúrico afundou-se em alcatrão e pavimentos de pedra. As relações sociais deslaçaram-se há muito. Teremos então muita dificuldade em entender este livro, mas a atracção reside nisso mesmo: nas possibilidades de voltar, de regressar, de emigrar, de nos tornarmos colonos de uma vida outra. Ou se quisermos ainda salvarmo-nos. Ou se vamos a tempo.
«Os três homens trabalham até ao meio-dia, comem os seus farnéis e conversam por um curto período. Têm as suas próprias coisas de que falar: acerca das aflições que atingem a área remota e os seus colonos. Nada de parvoíces, mas sim assuntos que merecem ponderação. Estão calmos, os seus nervos não se encontram tensos e não fazem o que não devem. O Outono aproxima-se, a floresta em volta está serena, as montanhas estão ali, o Sol está ali, e esta noite, a Lua e as estrelas surgirão: tudo permanece o mesmo, cheio de doçura, em abraço. Aqui, as pessoas têm tempo de descansar na floresta, com um braço servindo-lhes de almofada.» (pág.294)
Falou-se sobre Knut Hamsun noutras ocasiões e sabemos que a sua vida não correu pelo melhor, visto que as suas opções políticas levaram-no a apoiar a Alemanha durante a II Guerra Mundial, ou seja, a estar ao lado do ocupante da Noruega, o que lhe trouxe a infâmia, provavelmente até hoje. De uma vida extremamente indigente na sua juventude, daí o extraordinário «Fome», e depois de ser reconhecido como um dos maiores escritores de sempre, cai na pobreza absoluta novamente devido às expropriações de que foi alvo após o julgamento por traição, inclusive o que tinha ganho com o Nobel de 1920. Morre em 1952. Esquecido. Os livros, não obstante, aí estão, para os acompanharmos sempre.
alc
