terça-feira, agosto 02, 2022

Malina, de Ingeborg Bachmann

 

Antígona, 2022. Tradução: Helena Topa

Ingeborg Bachmann - Getty Images

Por vezes pergunto-me, mas só a mim, o que os germânicos, e particularmente os austríacos, têm contra as mulheres livres. A resposta está não só na sociedade fortemente patriarcal do interior da Áustria (não propriamente de Viena, a cosmopolita) como no nazismo que ainda perdura, lá e na Alemanha. «O fascismo é a coisa primeira a vigorar na relação entre um homem e uma mulher...» disse Ingeborg Bachmann citada por outra escritora «maldita» Elfriede Jielinek de quem já falámos aqui, por mais de uma vez neste blogue, e que faz um posfácio datado de 1983, «pago e não publicado» pela Spiegel! Diz Jielinek que os editores não esperavam que ela dissesse bem de Ingeborg.

Vejamos: Ingeborg nasce em 1926 e vê desfilar à sua frente as hordas nazis com verdadeiro «horror». Com 9 ou 10 anos começam as perseguições a judeus  e a Noite de Cristal que podia ser o título de uma bela história infantil que o pai lhe devia ler na cama, não foi mais que o assassínio consentido por milhões de alemães e também pelo pai que adere ao NDASP e por quem alimenta um verdadeiro ódio, em capítulo sonhado, mas extremamente violento. Por essa altura dá-se o Anschluss e lá vai a Áustria integrar o III Reich que inicia a II Guerra Mundial terá ela 13 anos. No final da guerra tem Ingeborg 18 anos, idade de todas as utopias, só que as dela são bem diferentes das delicodoces esperanças do pós-guerra. Em 1946 nasce Jielinek que a conhece e contacta com ela. Por aquilo que li de uma e de outra tornam-se amigas. São verdadeiras escritoras do pós-guerra que puseram os dedos em várias feridas e que são ostracizadas por isso mesmo, já que, falando de literatura, estamos perante o melhor que tenho lido.

Deprimida, arrasadora, violenta e paradoxalmente submissa para com Malina (é um homem, sendo o nome de sonoridade feminina, propositado) e Ivan, cria um triângulo amoroso, que me atrevo a comparar com a sua vida real entre Paul Celan e Max Frisch. Pouco importa. Tais minudências não são para aqui chamadas. O que sobressai é o jogo de domínio exercido pelos dois sobre ela, que a destrói. O final do livro é composto por uma só palavras: «assassínio».

Existe, quanto a mim, uma estranha, quanto assustadora coincidência: durante o livro deparei-me várias vezes com a descrição de fogos. Na Universidade onde faz um doutoramento tem os pés em chamas e o cheiro a queimado invade os corredores, tem preocupações constantes com o fogão, com as velas, com a queima de documentos e cartas, de lume para os seus cigarros. Sabendo, pela sua biografia e pelo belíssimo ensaio de Jelinek que ela faleceu com queimaduras graves devido a um incêndio em sua casa, fico a pensar que isto só acontece a almas atormentadas, mas infinitamente altivas, cujo orgulho que lhe restava ainda se sobrepôs a todos os que a quiseram derrubar. Mas isto, como disse no início, sou eu a pensar. Como se ela fosse o anjo de Klee.

«Surge um tumulto de palavras na minha cabeça e depois um lampejo, algumas sílabas já cintilam, e de todas aquelas frases encaixadas voam vírgulas coloridas, e os pontos, que já foram pretos, sobem-me à cabeça, cheios como balões, porque no livro magnífico que estou prestes a descobrir tudo vai ser como um EXULTATE JUBILATE. Se este livro vier a existir, e um dia terá de existir, as pessoas vão atirar-se ao chão de alegria ao fim de uma página apenas, vão pular de contentes, vão ser confortadas, vão continuar a ler e a morder a mão para não gritarem de alegria, é impossível resistir, e quando se sentarem no parapeito da janela e continuarem a ler, atirarão conffetti às pessoas qua passam na rua, para que se detenham de espanto, como se tivessem ido parar a uma floresta de Carnaval, atirarão maçãs e nozes, tâmaras e figos lá para baixo como se fosse o dia de S. Nicolau, debruçando-se da janela, sem sentir vertigens, e gritando: Ouçam, ouçam! vejam, vejam só!, li uma coisa maravilhosa, posso ler-vos cheguem-se mais perto, é deveras maravilhoso!» págs.45 e 46

«Vivo neste mundo animado como uma mulher semi-selvagem, libertada pela primeira vez dos juízos e preconceitos do mundo à minha volta, incapaz já de fazer um juízo sobre o mundo, capaz apenas de dar uma resposta imediata, de choro e gemido, felicidade e alegria, fome e sede, porque durante muito tempo não vivi. (...)» pág.64

«A História ensina, mas não tem alunos» pág.76

«Um dia virá em que as pessoas terão olhos-negros dourados, em que verão a beleza, em que serão libertadas da sujidade e de todas as cargas, elevar-se-ão nos ares, mergulharão nas águas, esquecerão os seus calos e as suas privações. Um dia virá em que serão livres, todos os seres humanos serão livres, até da liberdade que tinham presumido. Haverá uma liberdade maior, ultrapassará todas as medidas, durará toda uma vida.» pág.104

«Um dia virá em que as nossas casas cairão, os automóveis terão sido transformados em sucata, em que teremos sido libertados dos aviões e dos foguetões, em que renunciaremos à descoberta da roda e da cisão do átomo, em que o vento fresco descerá das colinas azuis e expandirá o nosso peito, em que estaremos mortos e respiraremos, será por toda uma vida.» pág. 122

«Nunca mais,
É sempre guerra.
Aqui há sempre violência.
Aqui há sempre luta.
É a guerra eterna.» pág.207

«Malina» foi escrito em 1971 e faria parte de uma trilogia que, infelizmente, ficou incompleta com a morte trágica da escritora em 1973. Foi agora editado pela Antígona e traduzido por Helena Topa.