Gosto de Amélie Nothomb. Belga a viver em Bruxelas, cidade de que gostei bastante de visitar por duas vezes, teve uma infância e adolescência na China e no Japão; deste último país, cuja língua fala e escreve fluentemente, ficou-lhe um traço que se nota nos seus livros que é, ao que julgo, uma grande capacidade de síntese ao mesmo tempo que consegue, com um aceitável domínio da escrita, caracterizar muito bem as personagens e os ambientes. Define-se não como escritora, mas como «grafómana», o que desde logo captou a minha simpatia. Ganhou vários prémios, tem 26 livros, até agora, e escreve muito bem, digo-vos.
Este «Antéchrista» foi editado em português logo em 2003, ano em que foi publicado na Bélgica, França e em vários países. Trata-se de um thriller emocional em que uma miúda de dezasseis anos, solitária e com vários complexos da adolescência, se vê enredada numa teia montada por uma amiga de quem se aproximou e, sem medir qualquer consequência, a convida para sua casa julgando que esta não teria dinheiro para se sustentar na universidade que frequentam.
Blanche, a miúda precoce que, com dezasseis anos se vê na universidade será aquilo que hoje se chama uma nerd e Christa a «buller» que se assenhoreia não só dos seus sentidos, como de toda a família. Pai e mãe que vêem, nesta, um exemplo que a filha deveria seguir. A narrativa traz-nos surpresas, mas não vale a pena aqui revelá-las. Mas a razão que leva Christa a maltratar psicologicamente Blanche tem uma forte razão que se pode ancorar numa surda luta de classes. Ao contrário, mas sempre luta de classes. E já disse muito.
Descrevo um pensamento de Blanche:
«Até ao meu encontro com Christa, uma das felicidades da minha vida de adolescente consistia em ler: deitava-me na cama com um livro e embrenhava-me na leitura. Se o romance era de qualidade, transformava-me nele. Se era medíocre, não passava menos horas maravilhosas, deleitando-me naquilo que não gostava nele, sorrindo nas passagens estranhas.
A leitura não era um prazer de substituição. Visto do exterior, a minha existência era esquelética; visto do interior, inspirava-me o que suscitam os apartamentos cujo único mobiliário é uma biblioteca sumptuosamente repleta: a alegria contemplativa para que o supérfluo não atrapalhasse a existência do necessário.
Ninguém conhecia o meu interior: ninguém sabia que eu não estava a protestar, somente eu - e isso bastava-me. Eu aproveitava a minha invisibilidade para ler dias inteiros sem que alguém se apercebesse.» (tradução minha, pág.61)