quarta-feira, agosto 03, 2022

«O Cão de Deus», Louis-Ferdinand Céline

 

Hiena, 1995, Trad. Alberto Nunes Sampaio

Não há quem não se refira a Céline sem que nos lembre o seu passado ou o homem. Mas há poucos que analisem, ao menos, a sua escrita. Não vou fazer uma coisa, nem outra. Nem poderia. O que me leva a escrever estas linhas nas fichas de leitura que faço aqui é o não esquecimento do que li e das emoções que geri ao longo dos anos. Uma delas chama-se Louis-Ferdinand Céline.

«Cães de Deus», era como os dominicanos se chamavam a si próprios em defesa do altíssimo. O epíteto relacionado com Céline está longe desse conceito medieval. Céline era o que era, mas ao mesmo tempo um poderosíssimo escritor. Evidentemente, mal compreendido porque o anátema cola-se-lhe à pele.

«Língua Morta» é como ele chama ao francês utilizado pelas academias que detestava e que, segundo ele, o empobreciam cada vez que saía um romance da chamada elite intelectual parisiense, seja ela quem for e o que for. Ainda hoje é assim. E o francês empobrece cada vez mais. Tal como o português, diga-se. Mas não chamaria, como alguns o fazem, de «inovador» a Céline. Acho que se estivesse a ouvir este termo lhe daria uma apoplexia. Ele sabia bem o que fazia. De origens pobres teve de trabalhar muito cedo e ajudar a mãe viúva. Enquanto se despedia tumultuosamente de treze patrões antes de se formar em medicina, nunca o deixaram evoluir na profissão, exercendo-a em dispensários e até em navios mercantes. Dessa vida conheceu a língua francesa, o calão forte, a palavra atirada sem o sentido literal que a burguesia lhe dava, as pragas, que assustavam o repimpado burguês. O argot. Não bebia, mas os bares de prostituição eram o seu poiso habitual, embora sem relações habituais com mulheres. Tal como usou o francês puro de Rabelais que ele citava como dos melhores escritores franceses e nunca ultrapassado, a não ser talvez por Voltaire, mas sem mudanças desde aí. Não pensem que este livro é uma defesa em sua «honra». É um doloroso ataque a quem lhe desejou a morte, o fuzilamento, a que Brasillach não conseguiu escapar, mais os 200 mil que os encostaram à parede, logo após a libertação em 44. Tinha uma filha cujo marido não lhe deu a conhecer os 5 netos. Nunca os viu. Vivia pobremente em Meudon onde nasceu. Deixou a medicina muito antes e vivia rodeado de cães e gatos. E um papagaio. Paradoxalmente, era gentil para quem o procurava, mas as entrevistas que dava eram fogo puro de desespero ou talvez ódio. Ele negava. Mas continuava a escrever? Sim porque a Gallimard exigia-lho para pagar as suas pretensas dívidas!

Em Portugal, não sei se conhecemos a sua obra completa (certamente que não!) ou sequer que a exijamos conhecer. No fundo, o que conhecemos melhor é o Viagem ao Fim da Noite e o Morte a Crédito, os seus dois primeiros livros. É manifestamente pouco. 

Sobre o papel de Jean-Paul Sartre sobre a amnistia de 1951 que ele recusou porque não se poderia defender das acusações de antissemitismo, patentes em dois panfletos que editou, aí, teríamos muito que falar. O que posso dizer é que, segundo Céline, ele não foi o defensor do seu não fuzilamento, antes pelo contrário: escreveu um artigo acusador logo em 1945 que o ia levando ao enforcamento ainda na prisão na Dinamarca. Jean-Paul Sartre de uma maneira cobarde e sem provas acusa-o de estar ao lado do ocupante por ter sido pago! Safou-se por pouco, mas defendia que queria ser julgado e apontar alguns nomes ditos colaboracionistas e agora na tal elite da «merda seca do olho do cu», quais resistentes encartados. Não pôde! Acho, ainda hoje, a defesa de Sartre, Beauvoir ou Aragon para com Céline uma história muito mal contada. Acredito mais na possibilidade De Gaulle, aliás como Céline aventa neste livro.

Sobre o estilo: «As grandes civilizações mudaram muitas vezes de estilo. Falo das grandes civilizações desaparecidas, esquecidas, quer a dos Sumerianos, quer a dos Arameanos; de todas estas civilizações entre o Tigre e o Eufrates, há uma quarenta, cinquenta que tiveram poetas que tiveram escritores, que tiveram legisladores. E mudaram muitas vezes de estilo. Os franceses, esses, estão de pedra e cal; (...)» pág.82

Sobre política já em 1933: «A posição dos homens ao meio da sua confusão de leis, costumes, desejos, instintos aceites, repelidos, fez-se ao mesmo tempo tão perigosa, tão artificial, tão arbitrária, tão trágica e tão grotesca, que a literatura nunca foi tão fácil de conceber como agora, mas nunca foi mais difícil, também, de suportar. Estamos rodeados de países totalmente cheios de embrutecidos anafilácticos; o mais pequeno choque precipita-os em convulsões assassinas que nunca mais acabam.
    Chegámos, pois, ao final de vinte séculos de grande civilização, e no entanto não há regime que resista a dois meses de verdade. Tanto estou a referir-me à sociedade marxista como às nossas sociedades burguesas e fascistas!
        De facto, o homem não pode persistir em nenhuma desta formas sociais, que são brutais ao máximo, completamente masoquistas, sem a violência de uma mentira permanente e cada vez mais maciça, repetitiva, frenética, totalitária, como lhe chamam. Privadas deste freio desmoronar-se-iam, as nossas sociedades, na pior anarquia. Hitler não é a última palavra, talvez cheguemos a ver um género ainda mais epiléptico.» Fala nas linhas seguintes das «berrarias ditatoriais» Pág.39

Morre em 1961.