quarta-feira, dezembro 29, 2021

«Suicidas», de Henrique Manuel Bento Fialho

 

Foto: Gazeta das Caldas
Paul Celan

(...)
Sei há muito o peso da rotina. Ando encafuado no tráfego e nem a rádio sintonizada numa cassete meticulosa me salva, ando sem esperança a passar os dias, a enchê-los de um pouco, vá lá, de conforto possível, ando, isso mesmo, num andar por andar até que se formem calos na base dos pés e a dor se torne insuportável, ando, isso mesmo, a certificar-me de que os parques públicos respeitem as regras necessárias para que os filhos possam continuar a sorrir e que os rios ainda têm água onde um dia possamos mergulhar. Agora diz-me, que a vida é menos vida do que esta? Uma rotina consciente de si. Por isso, para o próximo Natal peço um ramo de tulipas a desfazer-me as paredes do corpo. Deixa os escorpiões sossegarem no deserto. Mete as tulipas a dançar ao som de um leão em coma. Sem pressa, por favor. Sem pressa. Com o andar vagaroso dos aborígenes.

Henrique Manuel Bento Fialho, «Suicidas», Deriva Editores, 2013, ''Paul Celan'', pág. 81


terça-feira, dezembro 28, 2021

«Bach», de Pedro Eiras

 

Foto: Artistas Unidos
Livro admirável que se lê com um gosto crescente, acompanhado de dúvidas, interpretações, possibilidades, ligações... Legítimas ou não, «Bach» não é um livro só sobre Bach. É muito mais que isso. Obriga-nos a pensar e a repensar a sua leitura e, nesse jogo, cumpre o seu papel inquietante.

«Bach» provoca-nos em direcção à música. Cada capítulo tem uma referência clara a um trecho do músico. Cantatas ou sonatas, acho dificílimo que a curiosidade nos deixe só com as palavras perante os convites, explícitos ou implícitos, que nos são dirigidos para escutar ou seguir de maneiras diversas as propostas de Pedro Eiras.

O livro inicia-se com uma carta de ''Anna Magdalena Bach'' a Frederik da Prússia que, sem perder a sua dignidade, pede que lhe seja dada, e às suas filhas do segundo casamento do músico, a vida que merecem. Não se poderá entender esta epístola sem ler atentamente o segundo capítulo ''Esther Meynell'' onde Pedro Eiras se confronta com a pesquisa (quase frustrante) que o levou a Bach; aí, lê-se: «Tentei, uma vez: alguns fragmentos, breves trechos para explicar como ouvia a música de Bach. Desisti; lembro-me de escrever uma carta a um amigo, a contar o impasse, a impossibilidade. Alguns anos passaram. Tentei novamente: um caderno crescia, entre leituras, experiências. Mas para onde, para que Bach - histórico, pessoal, real ou imaginário -, como dizer a música? Novo impasse. Descobria dolorosamente as fronteiras da linguagem; que nem sempre ela serve; que é preciso não pedir o impossível. E ninguém pode escrever um texto cujo tempo ainda não chegou. Mas nunca se sabe quando esse tempo chega. Escreve-se na ignorância, na escuridão.» (pág.31). É precisamente nesta confissão que o leitor terá de estar preparado para a beleza experimental de «Bach», de Pedro Eiras. Tudo, neste livro notável, tem um sentido; até no seguimento da procura de um silêncio de John Cage ou do ruído libertador da rua em ''Jean-Marie Straub e Danièle Huillet'' no Maio de 68 francês. Ou pretender, no capítulo referente a Leibniz, ouvir «o som infinitesimal de um floco de neve.»

A epistolografia é retomada em ''Gustav Leonhardt'' e nota-se a tentativa de causar uma ruptura com o romantismo com que alguns quiseram ligar Bach: «Não sei se concorda comigo Nikolaus, mas sinto que hoje se pensa um Bach devedor de Haydn e Mozart, de Mendelssohn e Brahms, um Bach que precisasse de ser corrigido à luz dos compositores seguintes. Por mim, não leio Bach à luz dos classicismos e romantismos posteriores, mas como o auge de uma tradição anterior: Frescobaldi, Pachelbel, Reincken, Buxtehude. (...) Os pianos são feitos para cantar, e a música de Bach exige um instrumento capaz de falar. Não importa uma longa melodia colorida, mas a articulação clara dos motivos. Como se o cravo pudesse apresentar o pensamento.» (pág.52) E essa separação do romântico continua em ''Glenn Gould». Uma construção de um tríptico verdadeiramente inquietante é realizada com Llansol, quando Pedro Eiras coloca em diálogo a poeta, Pessoa e Bach, repartindo com Llansol a dificuldade em escrever sobre um músico e a partir de Lisboaleipzig (Leipzig a cidade de Bach).

Há momentos de uma grande exigência para o leitor deste livro, como quando se depara com «Ich Habe Genug...» que traduzido significa «tenho o suficiente». Se é afirmado que a música de Bach é um quinto evangelho e se se apresentam os salmos atribuídos a David como salvíficos e de cantos de louvor (também de ira e de fúria) tentando escutar a música dos confins dos tempos através da panóplia de instrumentos e versos, ficamos com a proposta provocadora de seis páginas em branco, somente com a anotação musical da cantata BWV 82. Ficamos a perceber porquê se a ouvirmos com atenção. No final, elas serão preenchidas.

Os capítulos mais belos do livro, ''Martin Luther'' liga-se estranhamente com o último: ''2002''. Essa ligação é avassaladora se conseguirmos sentir, através, da leitura que nos dá Pedro Eiras a respiração suave que emana de um amor de uma filha para com um pai. Fazer isto em literatura não é para qualquer um. Pedro Eiras conseguiu-o plenamente.

António Luís Catarino

segunda-feira, dezembro 27, 2021

Bach, Joahnn Sebastian (1685-1750), de José Ricardo Nunes

Não,
o seu rosto  não foi,
apagado antes, muito
antes de concebermos e logo
à beira de se perder.

O Clavier-Büchlein, que tinha
uma função precisa e não
a cumpriu, a noite
devia circundá-lo, não
apoderar-se, não
foi.

Anna Magdalena voltaria
a encher-se, a morrer
na miséria, a poeira
cega-me e não
foi, também não foi
a minha descendência a tresmalhar-se,
séculos depois
bombas
a arrasarem Leipzig.

A viagem até Lübeck
para ouvir Buxtehude, as massas
sonoras desfaziam a igreja, aglomeravam-se
a uma cadência rotativa,
fantasiosa,
essa jornada não
foi.

E nem sequer eu
fui, de corpo inteiro reclamar
existência, a exigir
melhor salário,
condições compatíveis.

Eu
jamais,
a música.

Na noite em que ouvi
pela primeira vez
o som atravessar-me e vacilei,
apesar da violência não
foi.

Biografia, circunstâncias,
nada
me prendeu ao transitório.
Esquece Forkel e o Nekrolog.

Não foi
uma escolha entre a vida e a morte.

A compenetração,
uma caminhada em Mühlhausen,
o silêncio que me embaraçava
depois de Zimmermann encerrar o estabelecimento,
nada disso.

''A música é só música'',
a música não,
nada.´

https://www.youtube.com/watch?v=K59Eh273QXo

José Ricardo Nunes, «Compositores do Período Barroco, 2011-2012», Deriva Editores, junho de 2013, pág. 114
Foto de Margarida Araújo

domingo, dezembro 26, 2021

Auschwitz, Cidade Tranquila - Primo Levi

Hoje será preciso alguma dose de coragem para ler um livro cuja capa tenha o nome de Auschwitz, tal a imensa bibliografia (?) com este nome gerada pelo comércio livreiro a que não escapa sequer o baratinho e promocional «Pack Auschwitz». Ler Primo Levi devia ser um exercício obrigatório a quem se lance a adquirir a mercadoria abjecta do filão «holocausto». Não que seja um escritor de primeira linha, longe disso, mas é de uma grande objectividade e não rodeia questões, como se as houvesse!, perante o horror programado dos nazis. Este «Auschwitz, cidade tranquila» vale não só pelo seu título sardónico; conta-nos histórias e pequenos contos do tristemente célebre Lager alemão. Lembremo-nos que Levi foi encarcerado pela Gestapo em 1943 na Itália donde era natural e não por ser judeu. Era resistente ao fascismo e só mais tarde, depois de apurada a sua ascendência judaica, é que terá seguido para o campo da morte. Só que era igualmente um químico de renome e talvez tenha sido essa a razão de ter sobrevivido, embora não haja certeza absoluta desse facto. Muitos outros químicos que pertenciam ao «Komando» químico do campo soçobraram de frio, de fome ou na marcha forçada aquando da queda do campo devido ao avanço russo. Essa marcha forçada de prisioneiros escravos até Birkenau é dos momentos mais horríveis de que há memória na história da II Guerra Mundial. Só um quarto, como nos diz Levi, lá chegou. O autor encontrava-se entre os sobreviventes. Isto foi em Janeiro de 1945. A libertação total do campo pelos soviéticos e a morte de Hitler foi em Maio.

Fixei, contudo, um pequeno conto de Levi que sintetiza bem a mentalidade de um jovem casal nazi alemão, em 1943. Ele químico, ela não sei, o autor não diz. O jovem Mertens teme os bombardeamentos aliados e prefere uma zona mais tranquila já que quer construir família e ganhar algum dinheiro. Os amigos berlinenses tentam demovê-lo; que não, a vida no campo rural é um rame-rame, há os aldeãos, terão de habituar-se a ritmos diferentes, eles que são citadinos. No entanto, Mertens está decidido e pede a transferência para a fábrica química de Buna-Werke na Polónia, agora Alemanha: ganha-se bem, não há bombardeamentos, a guerra decorre lá longe e terá oportunidades para subir mais depressa. Mertens e a agora mulher instalam-se na cidadezinha com o nome polaco de Oswiecim, em que muitas casas bonitas se encontravam vazias e à espera de ocupação. Nem isso o fez perguntar porquê. Na fábrica onde subiu rapidamente a Oberingenieur, tinha como trabalhadores uns tipos esqueléticos, medrosos, de olhar baixo, tremendo de frio e fome, que vestiam uns pijamas azuis às riscas. O nosso Mertens nada perguntou. Um deles era Primo Levi e trocou com ele duas ou três frases. Numa ocasião, pediu que lhe dessem sapatos mais quentes e um casaco. Depois vieram os russos e Mertens nunca mais foi visto até aos anos 60, em que o acaso de uma troca de correspondência entre fábricas químicas devido a um erro de uma encomenda, Levi se cruza com Mertens. Era ele. A troca de cartas é demolidora para qualquer um de nós, em que ainda reste alguma sensibilidade: à pergunta lógica de Levi sobre o que ele pensava do seu papel no genocídio, respondia que não, nunca deu por isso no campo de morte, nunca viu morrer ninguém, que seria punido se tal viesse a ser comentado, então sabia ou não?, não!, falava-se mas nada de provas. Dedicou-se ao trabalho e nada mais, e que se lembrava dos sapatos e do casaco, sim, enfatizando claramente o facto, como um lampejo de arrependimento. Como bom alemão, obediente e escrupuloso, burocrata, nada sabia, nada viu, nada comentava. O nome da cidadezinha polaca que agora era alemã tomou o nome de Auschwitz, em vez de Oswiecim. Mas ele não sabia de nada, claro. Morreu pouco depois desta troca de correspondência.

sábado, dezembro 25, 2021

Os Anjos de Klee, de Ricardo Gil Soeiro

Os anjos de Klee

E existíamos como um só rosto.                
Esquecendo-me de propósito
onde eu começo e onde tu terminas,
desenhávamos uma flor na escuridão.
As palavras há muito deixaram de insistir:
são de uma paciência infinita.
Amanhã haverá vozes de sombras
que nos pintarão de perguntas
– o interstício de te voltar
a ver na curva do tempo.
Anjo morto, desperta do
teu sono e vem depressa
iluminar esta sede de um
silêncio que não existe.

Ricardo Gil Soeiro, Palimpsesto, pag.148, Deriva Editores, 2016




sexta-feira, dezembro 24, 2021

Uma Abelha na Chuva, de Carlos de Oliveira

 



Imaginem uma abelha numa campânula de vidro. Que quer sair e não consegue por mais que choque contra as paredes. Se, contudo, sair a chuva apanha-a e desorienta-a, mata-a. Isto é um romance de morte protagonizado por vivos, meios-vivos e, outros, realmente mortos embora não o saibam ainda. Tudo é feito de vidro que se estilhaça, por cacos que cortam como lâminas, por raiva contida, por vidros que, arremessados, partem retratos violentamente, por copos atirados às paredes cujos líquidos escorrem sem que ninguém os limpe, por garrafas que alimentam Silvestre, um morto que se julga ainda vivo. As vítimas são os jovens que alimentam esperanças, Jacinto e Carla, que se amam e são abafados pela manha frustre e pela maldade dos simples. O mistério da beleza deste livro está não só na mestria da narrativa, mas na depuração da sua escrita. Nem um advérbio ou adjectivo a mais; todavia, as personagens apresentam-se claras e densamente representadas nas suas misérias, frustrações e motivos, tal como as paisagens são descritas com cores vivissimas e com a mesma contenção e precisão. Aqui as abelhas somos nós. Um livro a que se deve voltar sempre que o tenhamos por perto. Um clássico.

quinta-feira, dezembro 23, 2021

Os Salmos. Uma visão de Timothy Radcliffe


Sempre tive uma verdadeira adesão emocional aos Salmos. Razão pela qual me obrigo não só a ouvi-los presencialmente ou, na falta, a ouvi-los em cd. Para ser mais sincero: a música dita religiosa provoca-me sensações estranhas, quer de enlevo, quer de inquietação. Seja como for, detenho-me a ler tudo o que me chega às mãos sobre salmos. O que acontece, por vezes, é que não valerá a pena comprar livros ou publicações sobre este tema; ou porque são muito académicos e ninguém compreende nada ou porque são demasiado teológicos e nada ganhamos. Não ouvimos salmos para saber teologia. Muitas ocasiões encontramos descrições e considerações importantíssimas onde menos esperamos. Aconteceu isso lendo Timothy Radcliffe em «Arte de Viver em Deus» já aqui referido.

O autor é defensor de um verdadeiro renascimento do que chama «imaginação cristã» como forma contracultural de lutar contra a banalidade do quotidiano. O ruído está em todo o lado: nos correios electrónicos, na rua, nos cafés, nos parques, nas praias, nas faculdades. A televisão e o computador obrigam-nos a horas de trabalho com que paradoxalmente nos libertamos com mais horas jogando e vendo filmes...no computador! Vejamos este trecho:

«O modo tradicional como os cristãos resistiram ao impulso gravitacional da banalidade foi reservar momentos de cada dia para recitar ou cantar poesia. Durante dois milénios, a Igreja manteve viva a sua imaginação contracultural, mediante cantos e poemas, em especial aqueles poemas indomáveis por vezes beligerantes e, amiúde, belos, os Salmos. Eles arrancam-nos do modo banal e utilitário de ver as nossas vidas. Os membros das ordens religiosas reúnem-se várias vezes por dia para cantar cânticos que nos sacodem do senso comum da nossa sociedade. Milhões de leigos rezam o breviário connosco ou sozinhos. O canto dos Salmos foi vital para os nossos antepassados, quando a nossa fé era ainda mais contracultural. (...) Embora os Salmos estejam repletos de cólera e desespero, terminam sempre, excepto um, com uma nota de esperança e louvor. Expressam raiva de uma forma muito real. Quando sofremos, talvez estejamos enfurecidos com Deus. (...) As palavras do Salmo exprimem essa raiva, abraça-a para que não fiquemos isolados, porque as palavras são partilhadas por cristãos e judeus, em todo o mundo e ao longo dos tempos. Não estamos sós na nossa fúria.»


Abjectos Surreais - edição de 120 exemplares esgotada


E «Abjectos Surreais» esgotou a sua edição de 120 exemplares. Tendo alguns guardados para cumprir algumas obrigações e coisas prometidas, o livro-catálogo lá foi. Reparo agora que a exposição no Liquidâmbar surgiu três anos após «Anjos do Desespero» para lembrar Heiner Müller. Edição igualmente esgotada. O tempo passa muito depressa. Um obrigado a todos, sem excepção. Aos que não gostaram e aos que me endereçaram palavras que não esqueço. Numa hora destas as palavras devem ser poucas.


quarta-feira, dezembro 22, 2021

Uma legítima e pouco conhecida arte de viver


Além de uma arte de viver paradoxalmente pouco conhecida hoje, deve conhecer-se esta obra sem quaisquer preconceitos, o que acontece várias vezes quando abordamos literatura teológica e religiosa cristã. E esta recomendação serve para cristãos, agnósticos ou ateus. Talvez somente teológica, porque como o autor diz várias vezes durante o seu «A Arte de viver em Deus» o cristianismo não é uma religião no sentido do «religio» latino, de ligação. O seu autor é Timothy Radcliffe, frade dominicano, viajado, culto não só no sentido clássico mas também contemporâneo, professor em Oxford, embora desconfiamos que este último epíteto não lhe é para ser levado demasiado a sério; pelo menos, para este livro escrito enquanto luta contra um cancro terminal. Claramente ao lado do Papa Francisco e da profunda mudança que ele protagoniza na Igreja, dá-se conta, durante a sua leitura, que muitos dos mitos urbanos nascidos da crítica ao catolicismo caem pela base na análise aturada que faz Radcliffe: a questão do corpo, da razão e do pensamento, do peso dicotómico do mal e do bem, da crítica ao capitalismo (quando se cita Naomi Klein e David Graeber está quase tudo dito), da ideia do pecado, do amor e do ódio, do sexo, da crise ambiental, da tecnologia dominante e dominadora, realçando sempre de que tudo o que é humano não pode ser estranho (Marx?). E não hesita uma só vez quando vai buscar Bruno Schultz, Levi, Bakhtin ou Wittgenstein. 

Não quero de modo nenhum fazer aqui uma síntese porque estava votado ao fracasso, embora ele assuma que o faz. Pena que as citações de Timothy Radcliffe que vou aqui colocar possam correr o risco de descontextualização. No entanto, arrisco:

«Jesus foi inteiramente obediente ao Pai, mas não era um zombie robótico. A verdadeira obediência é inteligente, quationadora, sem medo de duvidar e experimentar, na sua demanda de verdade. É uma conversação paciente...», pág.43

«A obediência da fé assemelha-se mais a ouvir, numa atitude expectante um quarteto de cordas de Beethoven do que a obedecer a um agente policial.» pág.44

«A compreensão cristã do que significa estar vivo é inteiramente contracultural.» pág.51

«O sangue vermelho nas nossas veias contém ferro nascido das estrelas. Escreveu o teólogo e cientista de Oxford, Arthur Peacocke: '' Cada átomo de ferro no nosso sangue não existiria se não tivesse sido produzido numa explosão galáctica, há milhares de milhões de anos, e se, por fim, não se tivesse condensado para formar o ferro na crosta da Terra, da qual emergimos.'' A real substância dos nossos corpos é inimaginavelmente antiga. Não poderia o Cristianismo, por seu turno, alargar a imaginação científica, afirmando que a emergência dinâmica da vida complexa e da consciência, que a teoria evolucionista urde, não acaba num universo esgotado, mas encontra uma realização para lá do alcance da ciência? » pág.70

«[Citando George Eliot] O crescimento do bem no mundo depende, em parte, de atos sem história; o facto de as coisas não estarem tão mal convosco e comigo como poderiam estar, deve-se em parte aos que viveram com fidelidade uma vida oculta e descansam em túmulos que não são visitados.» pág.99

«Estar vivo é encaminhar-se para a maturidade, ao passo que muitas manifestações da modernidade acorrentam as pessoas ao infantilismo.» pág.125

«Raramente encontrei a famosa ''culpa católica'' na minha infância. O catolicismo em que eu cresci e fui educado não estava oprimido pelo escrúpulo. Para mim, o medo era vergonha. O importante era não ser descoberto. Mas a culpa infectou algumas formas do catolicismo irlandês [eu diria, do ibérico, também] tingido de escrupulosidade jansenista. Muitas vezes, morava no sexo. Timothy Egan recorda a sua educação na infância: ''O sexo era sujo. O sexo era vergonhoso. O sexo era antinatural. Pensar nele era mau. A própria premeditação era um pecado e também namoriscar. O sexo tinha uma finalidade: a procriação, o ato sem alegria da reprodução.'' Brian Moore começa uma das sua primeiras histórias com a frase: ''No princípio era a palavra e a palavra era NÃO.''» pág.128

«A palavra paróquia vem do grego paroikeis, que significa um ''visitante'' ou ''estranho''. pág.207

«O cristianismo compraz-se na diferença. Está no seu ADN. A diferença é fecunda. A nossa Bíblia engloba as duas Alianças, Antiga e a Nova. O Novo Testamento não abole o Antigo, como pretenderam alguns dos primeiros cristãos, e o Judaísmo também não é simplesmente substituído pelo Cristianismo. Vivemos na interação da esperança do Antigo Testamento e da consumação do Novo. O Novo Testamento contém, debaixo da mesma capa quatro Evangelhos que descrevem a vida, a morte e a ressurreição de Jesus de modos aparentemente incompatíveis. Um bispo disse-me que, ao tentar explicar a um grupo de presos, porque é que os Evangelhos apresentam narrativas inconciliáveis daquilo que Jesus disse e fez, um deles não viu aí qualquer problema: ''Se todos eles dissessem a mesma coisa, seria um arranjinho!''» pág.230

«Lamentava-se Theodore Zeldin: ''Infelizmente, embora os seres humanos ruminem, cogitem, meditem, joguem com ideias, sonhem e façam inspirados palpites acerca dos pensamentos das outras pessoas, nunca existiu um kamasutra da mente para revelar os prazeres sensuais do pensamento, para mostrar como é que as ideias podem flirtar umas com as outras e aprender a abraçar-se.''» pág.232

«[Citando Romano Guardini: ''A face de um homem que busca apaixonadamente a verdade não é apenas mais «espiritual» do que a do homem com uma mente entorpecida; é também mais face, ou seja, é mais «corpo» de uma forma genuína e intensa...O corpo, como tal, torna-se mais animado...à medida que é mais fortemente informado pela vida do coração, da mente e do espírito.''» pág. 278

«[Citando Lewis Hyde] A lealdade das crianças das escolas, o conhecimento indígena, a água que se bebe, o genoma humano - tudo está à venda.» pág.303


sábado, dezembro 18, 2021

João Damasceno

 

Tive de conter alguma emoção ao passar com o neto da Ananda na Avenida Afonso Henriques e, enquanto ele brincava no jardim à frente do Liceu José Falcão, reparar no poema lindíssimo de João Damasceno que alguém colocou na fachada da já muito antiga escola onde passei e, sem qualquer nostalgia, os melhores momentos da minha vida estudantil: aí lutámos contra o marcelismo por associações livres de estudantes liceais, aí participámos na energia límpida do Prec, aí construímos sonhos em assalto contínuo aos céus, aí amámos e odiámos também. Este poema do João com quem partilhámos momentos inesquecíveis de rebeldia e de resistência tocou-me particularmente ao autor do inesquecível «Corpo Cru». A fotografia não mostra bem (a mão tremia-me?) mas o poema é este:

Pertenço a uma
comunidade de homens
que acordam a meio 
da noite para sonhar

Onde tu estiveres, João Damasceno, quero dizer-te que, em parte, levaste alguns dos melhores sonhos contigo. Parece que previste a modorra, o cansaço insuportável da vida social quotidiana. Hoje, acordamos a meio da noite para olhar, nas varandas, uma escuridão imposta e vislumbrar não o néon com que também iluminou muitos dos incêndios que ateámos em matilhas esfomeadas pela cidade de Coimbra, mas a forma como no dia seguinte, de dia, nos podemos alhear da sua luz já decadente. Isto hoje está tudo em paz. Esquisita, mas em paz.

António Luís Catarino






quarta-feira, dezembro 08, 2021

A Sociedade contra o Estado, de Pierre Clastres

 

A 1ª edição da Afrontamento de «A Sociedade contra o Estado», de Pierre Clastres, andou na minha mão logo que saiu em 1979. A edição em França foi em 1974 sendo a tradução portuguesa de Bernardo Frey com revisão de Miguel Serras Pereira. Esta nova edição da Antígona tem a tradução de Manuel de Freitas e não estou apto a ajuizar se é melhor ou pior, até porque já não disponho da primeira. Mas parece-me fiel ao autor que morreu demasiado cedo, vivendo e conhecendo bem comunidades primitivas dos tupi-guarani, dos ianomani, dos nómadas do Chaco argentino ou dos ameríndios do norte. É portanto um observador privilegiado, crítico e rigoroso destes povos.

Livro notável este que releio com o gosto igual à primeira vez que abri as suas páginas há dezenas de anos. Nessa ocasião, acreditava num Estado do Bem, por assim dizer, a utopia de jovens onde cabia toda a felicidade da Terra. Hoje, sendo eu mais aberto a soluções sociais libertárias e radicalmente comuns, quer pela crise ambiental e capitalista, quer pela especulação do sistema económico e político actual, e não só do seu sub-sistema capitalista como querem alguns que, envergonhadamente, o querem salvar, leio este livro com outros olhos. Vejo-o literalmente como uma saída social baseada na economia de «subsistência» e na recusa de excedentes, recusando igualmente o poder político sendo ele despótico ou afirmando-se na sua falsa negativa. É uma lição que nos dão as comunidades índias e que devemos seguir com muita atenção com as edições verdadeiramente alternativas de uma antropologia livre de preconceitos etnocênticos.

Pierre Clastres não nos mostra sociedades primitivas baseadas no bom selvagem de Rousseau, ou num eventual paraíso perdido, cujo desaparecimento é a causa da infelicidade actual e dos séculos que a antecederam. Prefere analisar as sociedades selvagens (em Clastres o termo «selvagens» nada tem de pejorativo) como comunidades sem poder coercivo, não isentas de política existente em conselhos, com uma economia de subsistência rica e abundante, sejam as comunidades nómadas ou sedentárias, baseadas na recolecção e recusando o excedente que obrigasse a mais horas de trabalho; estas comunidades bem estruturadas e com uma unidade espiritual forte, recusa a chefia a todo o custo, isto é, havendo um chefe nominal, ele não representa mais do que a representação da comunidade, abafando conflitos latentes, organizando a guerra e a defesa, mas que a todo o momento pode ser substituído se os seus interesses ultrapassarem os da comunidade, geralmente não muito grande em termos demográficos. 

Ou seja, Pierre Clastres apresenta-nos um ponto de vista crítico relativamente à antropologia etnocêntrica, à sociedade capitalista baseada no trabalho alienante, à História que pretende absolver os crimes perpetrados pelos colonizadores (diminuindo por exemplo os números astronómicos do massacre dos ameríndios, falseando uma densidade populacional impossível de existir no século XV, e que se traduzem pelo desaparecimento de dezenas, se não centenas, de milhões de indivíduos e da destruição massiva de grande parte da sua cultura), mas igualmente às próprias sociedades primitivas dividindo-as naquelas que aceitaram o Estado transformado em poder coercivo, como os Incas e os Astecas, e os que o desprezavam como os Tupi, os Guarani, os Ianomani ou os Apaches. Também se afasta, por anacrónica, das teses benévolas e até certo ponto ingénuas, dos trabalhos de Morgan, Engels e até de Lévi-Strauss. Aproxima-se mais de um Shallins ou de uma nova antropologia. Mas Pierre Clastres é só ele e isso tem de ser sublinhado. Não sendo um seguidor acrítico criou um método de estudo entretanto seguido por muitos.

O livro não é evidentemente só isto. Mas deixo-vos um pequeno trecho da «Sociedade contra o Estado» de Pierre Clastres: «...as sociedades primitivas não são o embrião retardatário das sociedades ulteriores, dos corpos sociais com desenvolvimento «normal» interrompido por qualquer doença bizarra, elas não se encontram no ponto de partida de uma lógica histórica que conduz directamente ao termo previamente escrito, mas conhecido apenas a posteriori, o nosso próprio sistema social. (Se a história fosse esta lógica, como poderiam existir ainda sociedades primitivas?) Tudo isto se traduz, no plano da vida económica, pela recusa das sociedades primitivas em deixarem que o trabalho e a produção as devorem, pela decisão de limitar as provisões às necessidades sociopolíticas, pela impossibilidade intrínseca da concorrência - de que serviria, numa sociedade primitiva, ser rico entre pobres? -, numa palavra,pela proibição, não formulada mas dita, da desigualdade.

»O que faz a economia, numa sociedade primitiva, não ser política? Isso deve-se, de modo evidente, ao facto de a economia não funcionar aí de maneira autónoma. Pode-se dizer que, nesse sentido as sociedades primitivas são sociedades sem economia por recusa da economia. Devemos então determinar também como ausente o ser do político nessas sociedades? Teremos de admitir que, visto tratar-se de sociedades «sem lei nem rei» [como afirmavam os primeiros europeus], o campo do político está ausente delas? E não recairíamos nós assim no trilho clássico de um etnocentrismo para o qual a falta caracteriza, a todos os níveis, as sociedades diferentes?»

Tentando responder a uma questão extremamente complexa na análise das sociedades primitivas sem Estado, nada impede que a falta dele e da economia excedentária, possa igualmente impedir a existência de política, como forma de auto-organização ou de controlo dos chefes e dos xamãs. 

Edição da Antígona, 2018.

António Luís Catarino


sábado, dezembro 04, 2021

Um engano de autor é recepcionado por uma Andrea em pose surrealista 2

 

«Obrigada, Luís! Mas não era preciso seres fixe a dobrar. 🙂»

Abjectos Surreais metidos em trabalhos...surreais 1

 

Foto de António Carvalhal

A história do cordel à volta do envelope que o António Carvalhal nos mostra aqui é verdadeiramente surrealista.

Nos CTT:

«- Boa tarde, tenho aqui encomendas de livros para entregar.
- Vai então por correio normal.
- Ah, desculpe, está escrito aí que 'contém livro' portanto só pago 50 cêntimos em vez de 1,5€.
- Sim, mas colou o envelope, portanto é correio normal, não tem desconto.
- Mas...
- A menos que descole tudo e coloque, se for esse o caso, no envelope 'livro expedido pelo autor' porque se tem dedicatória já não é só o livro.. É o livro e a dedicatória. E falta o fio. Portanto, são 1,5€, por favor!
- Ouça, eu faço tudo isso, mas eu não tenho cordel comigo! E vou para a fila? É mais uma hora!
- Não se trata só de um cordel normal tem de ser fio podre!
- Desculpe, está a gozar comigo? Essa do fio podre...Podre?
- Pode encontrá-lo em qualquer loja de ferragens ou no Leroy-Merlin. Mas eu tenho aqui um bocado. Talvez lhe sirva.
- Mas, porquê fio podre?
- Não somos nós da agência que decidimos. O fio podre é porque se parte com facilidade e permite, no circuito de distribuição, que se veja se faltou ou não à verdade para ter o abatimento de 1€. Detectámos várias fraudes, sabe?»