Jorge Silva Melo não é Luís Miguel Cintra, nem Luís Miguel Cintra é Jorge Silva Melo. O facto de os dois serem, a partir de 18 de Maio deste ano, doutores honoris causa pela Faculdade de Letras de Lisboa é justíssimo, embora não entenda muito bem por que razão foi este prémio atribuído em simultâneo. Na minha opinião devia ser dado separadamente, mesmo que os seus caminhos se entrelaçassem e tivessem trabalhado juntos, além de serem amigos e ao que suponho admiradores da carreira um do outro. Mas são diferentes quer no repertório, quer na personalidade, ao que julgo. Ambos escolheram o clássico e devo-lhes dos melhores momentos de teatro da minha vida. Não é de somenos, o trabalho de ambos entranhou-se na minha pele em momentos únicos. O Teatro tem esse condão em mim e em amigos meus.
Dou-vos vários exemplos: o meu contacto com o teatro militante ainda antes de 25 de Abril, em 1973 e puto do liceu, em plenas «eleições» marcelistas assistimos ao «Asno» pelo TEUC o que deu proibição pela polícia e censura e porrada de criar bicho fora do Teatro Avenida, em Coimbra. Foi o meu primeiro contacto físico (e de que maneira!) com o teatro «a sério». Nervoso, visto que eu e João Pinto Ângelo atirávamos do 1º Balcão comunicados da CDE cá para baixo, tremia como varas verdes e nem dei pelo enredo que gozava com Américo Tomás. Ah e lembro-me do literalmente grande João Vilar! Portanto coisa física e militante.
O teatro clássico e de combate veio com Jorge Silva Melo, após o 25 de Abril com Brecht e a assistir às peças que nos levava quase a sentirmo-nos no palco e a partilhar com ele a forte comunicação que sentíamos e que Jorge Silva Melo imprimia com os seus actores. Mas não me esqueço igualmente da seriedade e das entrevistas a um grande Álvaro Lapa e a Joaquim Bravo, este último meu colega em Lagos e que assistia, caladinho no seu atelier cheio de gatos, às provas em papel manteiga que depois transpunha para a pintura. Foi por ele que conheci, numa célebre tarde, Palolo e um jovem Cabrita Reis que pintava os seus quadros ao estilo de Pollock e a que Bravo afirmava ser «puro barroco». Tempos inesquecíveis em que o nome de Jorge Silva Melo vinha variadíssimas vezes à baila. Tornou-se para mim «o» teatro. E avanço a hipótese: não fossem estes documentários (onde a linguagem teatral estava sempre presente) falar-se-ia da mesma maneira destes pintores? Ou não ficaria qualquer registo que fosse? Obrigado, Jorge Silva Melo e também pela excelente colecção de livrinhos de teatro que ainda nos liga a ele pela leitura (e como faz falta essa leitura de teatro!)
Falei há pouco de um amigo que comigo partilhou a estreia do meu primeiro teatro a sério, se bem que não chegasse ao fim pelas circunstâncias que referi. Mas há um outro que testemunhou a comoção que senti ao ver duas peças de Luís Miguel Cintra encenadas pela Cornucópia e que até hoje não esqueci: foi o António Alves Martins que me acompanhou em «A Missão» de Heiner Müller e, em 1992, em «O Público» de Lorca. Neste último, o choque físico como espectador foi tão grande que só consegui falar, literalmente, umas boas horas depois e com ajuda de algumas cervejas. E que actor Luís Miguel Cintra é! Ou seja, o teatro cumpriu, tal como alguns poemas de Herberto Helder que não nos permitem continuar sequer a leitura de outros, durante largo tempo. A poesia, aqui, também cumpriu.
Aos dois, vai um abraço sentido e um muito obrigado por eu continuar a ver teatro de qualidade de gente mais nova, cuja marca da Cornucópia (entretanto desaparecida) e dos Artistas Unidos é e será sempre indelével.
António Luís Catarino