Isabela Figueiredo. Foto: Revista Sábado
Acabamos de ler «A Gorda» de Isabela Figueiredo e instala-se o incómodo que o título já sugere. Uma narrativa baseada na relação da autora com o corpo, mas não só. Igualmente com uma sexualidade vivida na orla da «normalidade» imposta por convenções quer da família, quer do meio onde cresceu. Aliás, pesquisando em entrevistas que Isabela Figueiredo deu quando da publicação da sua última obra, reconhece que se sentiu sempre «anormal, imprópria, desadequada». Essa impressão foi explanada no obra de uma maneira muito veemente, revoltada até, mas sem auto-comiseração ou sequer complacência para com a própria. Com uma vontade muito acentuada ela vai dando à sua vida uma linha coerente, violenta, quase frenética não fossem os anos decorridos, embora Maria Luísa, a personagem, procure uma paz desejada. A autora, nascida em Lourenço Marques em 1963, conhece desde pequena o colonialismo e transmite-nos o seu diferendo com o pai, ligado à máquina colonial para quem trabalhou e lhe incutiu os valores racistas e xenófobos de um império que soçobrava em guerra, que a autora mal conheceu, pois terá vindo estudar para Portugal ainda antes de 1974. E é no ambiente de um colégio interno feminino que desponta para as realidades metropolitanas de um país pobre, atrasado e ferreamente católico. Diz este que escreve, também ele conhecedor de internatos em colégios, que o feminino em internato era incomparavelmente mais infernal que os masculinos, já de si insuportáveis. A obra descreve este ambiente. Depois, a descoberta do amor e da vida nos subúrbios lisboetas da margem sul (que por acaso também conheci) como docente de Filosofia e o trabalho insano dos professores funcionalizados, quase robotizados, embora a crítica se aponte genericamente ao trabalho assalariado. A relação exposta com os pais, baseada numa admiração pela mãe e uma tensão sempre presente com o pai, para além do autêntico abanão que levamos ao ler a sua tentativa de ser mãe e engravidar com um amigo homossexual que a acompanha nesse desejo não conseguido após abortos espontâneos. Depois, a gastrectomia que lhe esvazia o corpo e que aparentemente afasta a incomodidade sentida; no entanto, a sua invisibilidade, o seu mal-estar continua, como uma tatuagem interior que não se apaga do corpo e que permanece. Maria Luísa, procura permanentemente e a ferros a felicidade. No entanto, no final, cresce a espera, a dúvida, enquanto se instala um paciente monólogo numa casa grande.
Provavelmente, não vou esperar tanto tempo para ler o próximo livro de Isabela Figueiredo.
António Luís Catarino