Eu, o António Alves Martins e Jorge Gouveia Monteiro no Liquidâmbar em 20 de Maio de 2021.
«Suspensão – Ecos de silêncio na cidade exposta» de
António Alves Martins não é só um livro de fotografias. É, antes de mais, poesia
tal como eu a vejo. O autor apresenta-nos uma série de momentos que eu
denominaria de estranhos no sentido literal de estranhamento, de estrangeiro,
de tudo o que vem de fora e que resta imóvel perante nós em simultâneo com uma
estranha viagem pelo tempo, contudo movendo-se sempre olhando e fitando-nos nos
olhos. Através da fotografia, mas igualmente pelo texto.
Neste livrinho extremamente cuidado, como aliás o autor já
nos habituou, tudo é pensado ao pormenor. A capa azul-escura (numa edição
especial de somente 25 exemplares) que o envolve, protegendo-o. Nela, um borrão
de tinta preta que adquire um sinal de aviso para o leitor de um mundo
desenhado a preto, branco e a zonas cinzentas que contrastam e jogam entre si.
O aviso da suspensão do tempo enquanto o folheamos. O negro da capa tem um
possível entendimento. Ele avisa-nos logo no início: «(…) o negro fragmentou-se
em milhares de ínfimas partículas abrindo a inconsciência da matéria em branco.»
«O negro do grito queima o branco» e todo um mundo muito particular pode surgir
daqui. Ou, como escreveu Lawrence Ferlinghetti, em «A Poesia como arte
insurgente»: «A poesia é escrita branca sobre o preto, escrita preta sobre o
branco» ou ainda «Os poemas escondem-se em céus nocturnos, em prédios
degradados, nas folhas varridas pelo vento de Outono, em caixas perdidas e
encontradas (…)» e remeto-me para a misteriosa «caixa que Ernst me confiara»
que António Alves Martins refere na página 5 com os registos fotográficos de
viagens com que procurava «calar o insuportável silêncio do mundo».
E aqui exponho o que se sente ao entrar neste livro. Falo do
tempo. O tempo em suspenso, que paira sobre nós e que nos interpela. Num
pequeno folheto que acompanha o livro onde sobressai em título uma frase de
Jorge Luis Borges, retirada das suas Ficções, afirma-se que os
metafísicos de Tlön «não procuram a verdade nem sequer a verosimilhança:
procuram o assombro». É esse assombro que tento entender neste livro. Para isso,
António Alves Martins, abandona a metafísica ele que, formado em Filosofia,
sabe como ninguém o que leva o processo dessa recusa. Inicia-se então nas memórias
e na viagem derivativa - aqui em pleonasmo, porque uma viagem verdadeira é
sempre uma deriva – buscando a ajuda de Ulisses e um retorno à Grécia e a esse sul que, desconfio, o António nunca abandonou desde que o conheço. Refugia-se
na memória branca de Lisboa, dos velhos bairros e da esquecida Baixa de Coimbra.
Invoca a liberdade frente à totalitária verdade metafísica e parte em busca do
concreto que ele encontra na oficina e no jogo efémero da amizade. Eleva o
livro à força da memória que o assalta por vezes e que regista em palavras e
imagens. Suspende o tempo, a que chama epochè.
Portanto, o tempo em suspensão. Posso encontrar sinais desse
tempo num livro de Constantin Cavafy editado pelo Tó Martins, pela Centelha em
1986, num extracto de um poema de 1918, «Ao pé da casa» cujo ambiente nos pode
levar a algumas fotografias inscritas em «Suspensão – Ecos de silêncio na
cidade exposta»:
Ontem, divagando por um bairro
Mais distante, passei pela casa
Onde eu às vezes ia, ao tempo de
ser jovem.
Do meu corpo o Amor se apoderou
ali
Com sua força incrível. Ontem,
Quando passava pela velha rua,
Lojas, calçada, pedras,
Paredes e varandas e janelas,
Tudo se transformou por magia do
amor.
Nada restou que fosse pobre e vil.
(…)
Numa análise forçosamente ligeira ou apaixonada que faça das belíssimas fotografias que compõem o livro, socorro-me (tenho sempre de socorrer-me neste campo) da pintura e do desenho. O branco, o espaço, o intervalo ou se quiserem o limiar são, segundo Byung Chul-Han, zonas de esquecimento, de perda, de medo ou de angústia, mas igualmente de anseio, de esperança, de aventura (daí o tema da viagem em «Suspensão»), de promessa, de espera. Não será necessário ir de novo a esta filósofo para entender que o intervalo também nos impele para o movimento ou para a paragem, para a adivinhação. Estas fotografias são momentos que nos remetem para um acontecimento, para um caminho constituído por uma desaceleração do tempo, mas também para a monocromia, em negro mas também em branco que pode indiciar uma representação do invisível, do que está para lá, do intangível, se quisermos (dou o exemplo da fotografia quase negra em tríptico no final do livro).
Para finalizar, e apoiando-me novamente na pintura, creio que o autor deste livro nunca poderia entrar no mundo futurista de um Giacomo Balla, de um Marinetti ou de um Almada Negreiros, mas sem grandes dúvidas da minha parte (e peço desculpa se errar) as pinturas monocromáticas de um Fernando Calhau, de um Julião Sarmento ou de um Ernesto de Sousa caberiam - quem sabe? e recusando qualquer compartimentação absurda - na «filosofia» coerente que o Tó tem apresentado nos seus livros e nas suas fotografias.
António Luís Catarino
Maio de 2021