Um dia, quando «Mulheres da Clandestinidade» deu à estampa, comentei-o com uma turma do 12º ano de uma Escola do Porto que por acaso era bastante interventiva e curiosa (mais elas) sobre a História contemporânea. Como estudavam para o exame e este se aproximava calculando que quase sempre sai uma questão sobre o Estado Novo o interesse era normal que acontecesse. No entanto, passados alguns dias e já com o sufoco da aproximação do exame em que a «matéria» se condensava, como sempre estupidamente, vi um grupo de alunas com este livro da Vanessa Almeida nas mãos e que me diziam que o gostariam de comentar na aula. Como tinha sido eu a emprestá-lo acedi não sem alguma preocupação ligada ao «cumprimento do currículo». Contudo, foi das aulas mais profícuas que tive e que me deu para pensar bastante sobre o papel de um professor no sistema de ensino que nos enforma e, porque não dizê-lo, nos deforma. Quantos manuais escolares que se debruçam sobre a ditadura salazarista e marcelista são insonsos, embasbacadamente neutros sem o conseguirem ser de todo e repetitivos (mesmo tendo eu participado em alguns deles e tentando sempre mudar isso, não sei se com algum sucesso).
A aula de duas horas, repetiu-se mais tarde sobre o mesmo tema. Estas alunas e alguns alunos tinham a ideia de uma ditadura morna, alguns confusos sobre os conceitos interiorizados por alguns professores entre «conservadorismo autoritário» versus «fascismo», não sabiam de todo as condições da clandestinidade e da luta das mulheres que Vanessa Almeida retratava ali. Comunistas, vindas de estatutos socioeconómicos variados, a maior parte pobres, camponesas, mas igualmente intelectuais que deram a sua vida a uma causa em torno da liberdade, de uma vida mais digna e pelo ideal comunista. O conjunto de alunas que leram os depoimentos de uma Maria Machado, de uma Margarida Tengarrinha, de uma Sofia Ferreira, de uma Teodósia Gregório ou de uma Fernanda Alves Rodrigues, entre outras, ficaram atónitas em relação a esta resistência à ditadura. O ser e estar clandestino era entrar numa outra dimensão, num outro mundo que julgavam acontecer só em filmes ou na literatura. O que me levou na ocasião a pensar, e hoje estou mais convicto disso, que o melhor manual escolar é o conjunto de livros como «Mulheres da Clandestinidade» será um exemplo em interligação com outros. Está lá tudo. Mesmo as circulares da PIDE foram escalpelizadas, o que deu pano para mangas sobre possíveis infiltrações e como seria isso possível. A tortura de Conceição Matos foi especialmente dolorosa para estas jovens alunas, assim como foi a separação dos filhos das clandestinas, muitos com destino a Ivanovo na URSS. Mas também mulheres que aprenderam a ler e a escrever através da imprensa do PCP, elas próprias clandestinas e que rodearam a impossibilidade de frequentar a escola «cá fora», ou seja, no ensino salazarista. Todo um manancial de depoimentos que ilustram bem a relação entre o amor, a luta, a firmeza no que se acredita, a utopia e a imaginação. O que os jovens de hoje dão importância, mesmo contando-lhes o passado próximo.
Se há alguma conclusão, ou conclusões, que se possam extrair desta descrição, e acredito que será mais comum do que se pensa, é que «Mulheres da Clandestinidade» devia fazer parte do Plano Nacional de Leitura. Não só porque se trata de um trabalho aturado, honesto, não sectário, sociologicamente sustentado com nomes e referências que reconhecemos, mas também por acreditar que o PNL deve ser multidisciplinar e não deve ficar refém da disciplina dedicada à prática de língua portuguesa. Em cada professor, deveria existir um pesquisador. Ou provavelmente adormeceremos a ler manuais escolares o que nos colocaria na prateleira dos preguiçosos.
Um livro a ler sempre. Cá ficará.
António Luís Catarino