quinta-feira, maio 27, 2021

«Pensar a Utopia, Transformar a Realidade», de João Carlos Louçã

 

Pensar a Utopia, Transformar a Realidade, publicado pelas Edições Parsifal em maio de 2021, levam o seu autor, João Carlos Louçã ao assalto dos céus. Literalmente, se encararmos este belíssimo trabalho antropológico como um estudo aturado de enormes possibilidades de criar esperança para utopias concretas, nos Pirenéus e no Porto. Aliás do subtítulo consta o aviso de «Práticas concretas».

Trata-se de um trabalho de leitura entusiasmante, muito por estarmos a «ver» e a sentir as personagens que nos apresenta em depoimentos cuidados, portanto esclarecedores, ao longo do livro. João Carlos Louçã, não é daqueles antropólogos que fingem distância ou neutralidade o que se tornaria um trabalho sensaborão, sem sentido. Informa-nos ao que vem e agradecemos-lhe por isso. Ao colocar-se no campo anticapitalista e na consequente desumanização e predação que lhe é subjacente, coloca-nos também ao seu lado, criando uma verdadeira empatia com este livro e com as personagens que o povoam. Mas igualmente nos força, de bom grado, a conquistar utopias, mesmo através das algumas impossibilidades e derrotas, porque o «possível faz-se através da conquista dos impossíveis». Portanto, a velha questão, sempre um quebra-cabeças para a esquerda, de saber se há reforma ou revolução, se se pode construir a alternativa dentro do capitalismo ou assaltando o Estado para o transformar através de uma revolução tem todo o sentido aqui pelos exemplos concretos que João Carlos Louçã nos dá a conhecer. Mas cuidado com esta minha ficha de leitura: o autor, tendo o cuidado de se colocar no campo revolucionário, transformador e ao lado das «classes subalternas», não descuida um milímetro os métodos antropológicos de conhecimento como, aliás, é sublinhado por Paula Godinho (no prefácio) e por Raúl Román (no posfácio). Paula Godinho cita inclusive, de um modo certeiro, o poeta Eduardo Guerra Carneiro para o método utilizado por João Carlos, para nos afirmar «isto anda tudo ligado»; é que, quando aparentemente sentimos a narrativa a «fugir» para uma longínqua análise política, social ou económica, passados umas linhas encontramos todo o sentido dessa fuga, repito, aparente. São meadas, cujos fios se entrelaçam e deslaçam e cujo fim encontramos numa textura completa. Dito isto, ir sacar o passado, num exercício claro de retrotopia baumaniana (desculpem-me os puristas), para nos lembrar as revoluções de 1848, 1871, a guerra civil espanhola de 36/39 ou o Poder Popular do Prec português de 74/75 e com estas experiências dar corpo às alternativas activas da cidade do Porto ou as aldeias comunais do Alto Aragão, nos Pirenéus, não é para todos e só o faz quem tem sólida cultura política e científica de base. João Carlos Louçã fá-lo com toda a mestria e com grande fulgor. Adivinhamos o seu entusiasmo sentado numa mesa colectiva de uma comuna aldeã ou a conversar demoradamente com activistas da Rosa Imunda, dos Passeios do Piorio, na Gato Vadio debatendo a moeda solidária, com elementos do jornal Mapa, ou com as feministas radicais que só o Porto conhece, ou com pessoas LGBTI e muitos outros espaços alternativos do Porto. As experiências, nem sempre com sucesso, estão lá e são de ler e conhecer. Como o inesquecível processo da Escola da Fontinha e da luta que surgiu por toda a cidade, mesmo com o apoio de pessoas insuspeitas.

Mas, para mim, o mais interessante exercício de João Carlos neste «Pensar a Utopia, Transformar a Realidade» é, para além da retrotopia de que falei atrás e que conta com a dimensão utópica e científica que o marxismo foi apodado por gente preguiçosa (digo eu), também existe uma negação da dicotomia entre anarquismo e socialismo ou comunismo. É que esse exercício de reinventar o passado é tão importante como projectar o futuro e em plena década de 20 do século XXI terá sentido colocarmo-nos em barricadas de confronto, quando ambas as correntes têm razão de coexistir? Ou vamos continuar com o Grande Chefe Águia Negra contra o Grande Chefe Águia Vermelha, da I Internacional, a digladiarmo-nos uns aos outros? Rosa Luxemburgo ou Daniel Bansaïd não colocaram as coisas como devem ser colocadas e não estarão essas obras plenas de actualidade? Para além da retrotopia utilizada legitimamente pelo autor, também não se furta à ucronia que nós todos já tivemos oportunidade de o fazer: se bem que não haja «ses» na História, e é João Carlos que nos avisa disso mesmo no seu trabalho de campo, também não poderemos deixar de perguntar o que seria da História se Estaline não decapitasse a direção do POUM e da CNT/FAI durante a Guerra Civil de Espanha? E se a aviação nazi e fascista que bombardearam Guernica tivessem uma derrota arrasadora em Espanha, teria havido II Guerra Mundial com o seu cortejo de horror? E se a revolução alemã de 1918 não tivesse sido boicotada pelos sociais-democratas chegando ao assassínio de Rosa Luxemburgo e Karl Liebneckt e que se colocaram literalmente ao lado do viveiro nazi? Quem não fez já este exercício de ucronia? Valerá alguma coisa para as utopias concretas que estamos a construir por todo o mundo? Creio que é um exercício tão legítimo como a retropia e a projecção de utopias. São todas válidas.

Palavras do autor: 
«(...) Nessa capacidade de resistência, as causas perdidas encontram formas de subsistir através de outros em outros lugares, as ideias podem sobreviver às realidades opressoras e os seres humanos voltar a encontrá-las, mesmo se por breves momentos e mesmo se estes foram já caladas à baioneta. Apesar de presente, o desencantamento não faz esmorecer a esperança. Pelo contrário, alimenta-a na lucidez das alternativas que se procuram e na busca incessante de justiça (...).» (pág. 215). E mais à frente: «(...) Nos Pirenéus, o terreno explorado foi contraponto ao do Porto, ambos associados à esperança como capacidade para construir as condições do próprio futuro. O ambiente rural de montanha destacava-se perante a malha urbana da cidade do Norte de Portugal, onde a própria ideia de cidade se implica nos projetos e nas ações das pessoas que ali querem continuar a viver. Pelo contrário, nos Pirenéus a cidade foi quase sempre o local que se escolheu abandonar, sendo esta a opção inicial para procurar um futuro melhor(...)». (pág. 223).

Muito mais teria de dizer - e o livro é muito mais que isto! - , na proporção exacta do gosto que tive em ler este livro de João Carlos Louçã, cujo trabalho já conhecia desde «Call Centers» e cuja publicação pela Deriva e consequente apresentação no Porto foi num dos locais referidos em «Pensar a Utopia, Transformar a Realidade». Será exagero afirmar que este livro, este trabalho excepcional, é um antídoto para o pensamento derrotista, desesperançado que povoa as mentes de muita gente boa?

António Luís Catarino
27 de Maio de 2021


                                                                      João Carlos Louçã