«Deus criou o Mundo em Vila Nova de Gaia, numa tarde quente de Maio em 1930». Assim começa Ernestina um livro de J. Rentes de Carvalho, editado em 1998 pela Quetzal e que devemos ler com urgência. Conhecia-o, ao autor, mal e sabia-o a viver em Amesterdão tendo lido algumas entrevistas dele. O seu discurso aberto e franco deixou-me de sobreaviso e agora consegui iniciar a leitura da sua obra. Francamente entusiasmou-me e as longas descrições do Porto dos anos 30 e 40, em vez de poderem ser cansativas, são de uma grande beleza. Sentimos o cheiro da Ribeira, do peixe e do carvão, vemos os miúdos ao banho, o Douro com pouca água no verão, o pôr do sol e as calçadas de Gaia que desciam até Afurada. A própria descrição da escola e do liceu levam-nos a um universo de hipocrisia e também das primeiras resistências após 1945, quando Salazar prometeu uma eleiçõs «tão livres quanto à livre Inglaterra». Mas o autor diz-nos francamente que não é de resistências e embora sempre optando pela liberdade, nem que não fosse pela memória de seu avô José Maria republicano e avesso ao padres «quando republicano queria dizer socialista», cedo viu que o portugalinho dos velhos e bons costumes lá continuaria com Salazar. Opta, antes, pelo cinema e pelas leituras de Balzac e Zola, seus companheiros das noites. Pensa-se no Porto do cinema Batalha, do café Palladium, dos bilhares e dos alfarrabistas. Goza-se a descrição da aldeia de Trás-os-Montes para onde ia nos agostos quentes e nos afetos das avós e do Ti Serafim seu avô adotivo. E a descoberta de Ernestina que, com o nome da mãe, o leva a descobrir o amor. Acho importante ser dado nas escolas, mas isso seria outra conversa.