A pouco e pouco, a editora Deriva tem vindo a edificar um catálogo na área das ciências sociais e humanas que importa sublinhar. Livros como O Espírito Nómada, de Kenneth White, A Formação da Mentalidade Submissa e A Intoxicação Linguística, de Vicente Romano, e este Utopias Piratas, de Peter Lamborn Wilson (n. 1945) são exemplos de uma atitude editorial concentrada em algo mais do que a vulgaridade pululante nos escaparates das livrarias portuguesas. Poucos saberão que Peter Lamborn Wilson é o verdadeiro nome de Hakim Bey, «anarquista ontológico» com um percurso nómada e errante, autor de uma obra que se esforça por encontrar pontos de encontro entre a doutrina sufista e o anarquismo. Viveu em países tais como a Índia, o Paquistão, o Irão e o Afeganistão. Em 2000 a editora Frenesi publicou-lhe em Portugal uma breve recolha de textos intitulada Zona Autónoma Temporária, chamando a atenção para uma das suas teses centrais: a fundamentação das TAZ enquanto zonas governadas unicamente pela liberdade e pela autonomia, independentes das regras e das normas de Estado que submetem os indivíduos a ditames contrários à sua natureza livre. Alguns exemplos históricos: a Ordem dos Assassinos, fundada no século XI por Hassan ibn Sabbah (o velho da montanha), assim como os piratas e corsários do século XVIII.
Nas Utopias Piratas (Fevereiro de 2009) Peter Lamborn Wilson ocupa-se precisamente dessas experiências remotas de resistência à ditadura da normalidade, transportando o leitor para uma época que não pode senão ser visitada com um certo romantismo fantasioso e exótico. Os dados históricos são muito escassos. Mais do que uma reconstituição histórica, o que se pretende é uma interrogação, uma reflexão, acerca de uma rede de vivências concentradas em pequenas zonas, micro-sociedades, que escapavam, resistiam e, de algum modo, combatiam as pragas morais colonizadoras com origem na Europa. O especial interesse dedicado aos renegados, ou seja, os «traidores» da Europa cristã convertidos ao islão, explica-se por quase todos eles se terem tornado corsários dedicando-se ao «ataque e ao saque dos navios europeus». «A história dos corsários não é um “affaire de estrangeiros” mas parte da história do Magrebe, o FarWest do islão, e da então emergente nação marroquina» (p. 13), daí que este ensaio se situe geograficamente na região da Berbéria, o actual Magrebe, entre Marrocos e a Argélia. O autor tenta reconstituir o modus operandi e vivendi dos piratas, fornece exemplos, explorando alguns casos, nunca perdendo de vista que «a pirataria deverá ser estudada como uma forma de resistência social» (p. 21).
Argel e Salé são regiões revisitadas com especial entusiasmo, em confronto permanente com as ideias feitas de historiadores que, segundo Lamborn Wilson, estão mais empenhados em justificar a barbárie colonialista e imperialista europeia do que em compreender as reais motivações de homens geralmente caracterizados como terríveis vilões, mercenários, «apóstatas à deriva», unicamente interessados no lucro material das suas acções. Neste ensaio a história da Berbéria constrói-se antes a partir de uma tentativa de investigação das políticas de resistência levadas a cabo por comunidades não letradas. Falar de uma «ideologia pirata» — «algo como uma atitude anarquista proto-individualista, não filosófica» (p. 43) — talvez seja demasiado forçado, mas a verdade é que há exemplos que não podem ser esquecidos. Em dez capítulos somos lembrados de homens cujos nomes ganham um novo lugar na história da resistência, é-nos traçado um mapa de costumes e vivências libertárias geralmente remetidos para a obscuridade das utopias, são-nos oferecidos exemplos de «consciência política e de fervor revolucionário» (p. 79) que transcendem a caricatura de um imaginário da pirataria construído pela História oficial. As «práticas clandestinas» encontram neste livro uma legitimação que faz todo o sentido.
O que são ou foram, então, as utopias piratas? «A república do Bou Regreg não era uma utopia pirata pura, mas um Estado fundado sobre os princípios da pirataria» (p. 112), «Salé não era nem tão anarquista nem tão comunista quanto “Libertália” ou outras utopias piratas reais ou irreais» (p. 114), «no século XVII e princípios do século XVIII, numerosas “utopias piratas” independentes vêem a luz do dia em várias partes do globo. A mais famosa entre estas foi Hispaniola, onde os bucaneiros criaram a sua própria sociedade anárquica de curta duração; a Libertália, em Madagáscar; a Baía dos Ranters, também em Madagáscar; e Nassau, nas Bahamas» (p. 148). Eis o mapa das zonas autónomas temporárias que ficaram para a história enquanto focos de resistência à autoridade colonialista, autênticas colónias anarquistas afastadas dos «poderes europeus» e concentradas na liberdade individual dos seus habitantes, numa poética da insubordinação, mesmo quando essa liberdade implicava o exercício da violência. Se o olhar que hoje é lançado sobre estes exemplos está contaminado pela subjectividade romântica de uma ambição, de um desejo, enfim de uma utopia, não podem os factos ser negligenciados e o sonho cerceado à partida. Os exemplos servem de exemplo, sejam eles fruto da imaginação ou da ciência dos factos. Talvez resultem sempre um pouco de ambas as forças. Afinal, nenhuma História se faz sem imaginação.
Henrique Fialho