sexta-feira, novembro 28, 2025

«A Morte é um Acto Solitário», Ray Bradbury

 

Cavalo de Ferro, 2019. Tradução de Maria João Freire de Andrade

Se a morte é um acto solitário, neste livro ela é acompanhada por uma multidão de cadáveres. Um autor que escreveu os interessantíssimos «Fahreneit 451» e «Crónicas Marcianas», vê-se agora enredado numa escrita pouco escorreita, num ambiente sufocante de uma Venice em decadência, num policial pouco conseguido. Talvez, até, presunçoso pela quantidade de referências a escritores, realizadores e actores e actrizes que calcorrearam os plateaux cinematográficos. O mistério que envolve esta história é saber quando ou se encontramos o seu fim, mais se assemelhando a um guião de um filme de Hollywood, tudo a bem de construir algo de verossimilhante e com interesse para o leitor. Recomendo-o pouco, mesmo aos que gostam da modalidade.

alc

«Umbria: por fim, o Sul.», António Alves Martins

 

Artes Breves Edições, 2025. António Alves Martins

A beleza de «Umbria: por fim, o Sul» leva-nos numa viagem imaginária rumo ao Sul, proposto por António Alves Martins e que acompanhamos com gosto imenso. Sendo o sexto livro das Artes Breves Edições, de uma série cuja presença marcante do autor não deixa ninguém indiferente, quer pela qualidade da sua obra fotográfica, quer pelo seu grafismo, juntamente com outras formas de arte que se interligam e cruzam, como o desenho e a escrita.

Com a sua nota introdutória poderemos já adivinhar o que se seguirá ou o que contamos nesta viagem e, paradoxalmente, a surpresa que nos acompanha em cada página que voltamos. Surpreende-nos o rigor colocado nas suas fotografias e no grafismo que se observa na consistência formal de todo o livro, enquanto que nos deixamos maravilhar pela poética das imagens que nos são oferecidas. O conceito de Sul é aqui muito abrangente. O Sul, em «Umbria», é a Ideia, como nos diz Mallarmé: «A omnipresente Linha espaçada de qualquer ponto a qualquer ponto para instituir a Ideia (1)», mas é também uma viagem pelas formas, pelas texturas, por imagens que se nos apresentam com as suas nuances e sombras, pelos brancos que nos ofuscam, ou por névoas que nos envolvem. Ou, nos antípodas, pelos negros baços em que adivinhamos movimentos escusos. 

As linhas que assomam nestas múltiplas formas constituem essa liberdade que António Alves Martins nos propõe. Os dois espaços em branco que esmagam a linha  constituem, através do traço, uma afirmação  pessoal de um pensamento que aponta para um destino em que a partida se confunde com a meta. Aqui, em «Umbria» não há fixação, existe uma proposta de uma itinerância contínua, um nomadismo desassombrado, criativo.

O surpreendente em «Umbria» é a necessidade de uma comunicação sufocada com o espectador, o que vê as fotografias e as colagens apresentadas. Surgem pictogramas, signos, letras, linhas que se cruzam em redes, nos muros, em janelas e em fechaduras de portas. Na própria paisagem, as árvores que tentam falar através do rendilhado das folhas, nos arbustos e nas planícies que adivinhamos ondulantes do sul. Nestas imagens sentimos a comunicação da ruína, as «espirais de oiro e azul» que Alves Martins cria num sentido heraclitiano em que nada se repete, nada se toca, mas tudo rasa num movimento de uma mola helicoidal, onde os acontecimentos fluem em utopias marcadas pelo tempo já descritas em «Cidades Materiais». 

Há, em «Umbria», uma necessidade de sobreposição, de intersecção de linhas, de justaposição de formas que assume o objectivo de nos envolver em situação de questionamento constante por parte de quem se reconhece nas imagens oferecidas neste livro. Nesse jogo, que aceitamos em cada página que folheamos, transparece a dúvida, a suspeita, o cepticismo perante o que não compreendemos desde logo, mas compensado pelo maravilhoso, pela luz e contraluz que emanam de cada ideia ou metáfora da imagem. Nesse sentido, em «Umbria» há uma subversão clara baseada no traço, na linha, nas formas, como forma de atingir um imaginário plenamente livre.


ps: «Umbria» é um livro conseguido no que esta palavra tem de totalidade, de um todo coerente, consistente. A sua tiragem foi apenas de 47 livros, 5 são extra-série, o que equivale a afirmar que rapidamente será colocado fora da possibilidade de aquisição directa. No entanto, aconselho a quem queira ficar com ele, a contactarem o autor ou a editora Artes Breves.

alc
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(1) «La Musique et les Lettres». apud em Jean-Luc Nancy, «O Prazer no Desenho»

segunda-feira, novembro 24, 2025

25

 

Do 25 de Novembro é esta uma das imagens que resta. O fim de todas as utopias possíveis, o lastro de "normalidade" de uma democracia cinzenta, afastada das vontades populares de uma outra vida que valesse a pena ser vivida em conjunto. O 25 de Abril continua a ser aquele dia inteiro e limpo.

"Spartakus, Simbologia da Revolta", Furio Jesi

 

VS. Editor. 2022. Tradução de João Coles

Furio Jesi faleceu em 1980, precocemente aos 39 anos deixando-nos, contudo, uma obra ensaística significativa principalmente na questão do conceito de mito. «Spartakus, Simbologia da Revolta» debruça-se sobre os mitos da esquerda, os que sempre acompanharam a construção utópica de sociedades livres em que a esquerda se viu envolvida, mesmo com erros inerentes à aplicação prática numa dada realidade social em ebulição. Furio Jesi parte da revolução espartaquista, entre Dezembro de 1918 e Janeiro de 1919, para notar que o mito já existe no próprio nome da Liga Espartaquista que vai ser o gérmen do KPD e que lembra a revolta dos escravos liderada por Espártaco contra o Império Romano. Reside aqui o mito que guiou Rosa Luxemburgo e Karl Liebneckt a participar numa revolta que, paradoxalmente, não acreditavam poder ganhar mas que serviu de estímulo para a construção de uma sociedade livre. Para além do sacrifício, talvez desnecessário (por uma análise incorrecta da correlação de forças em campo)  dos revoltosos alemães, perpetrado pela social-democracia de Ebert, Furio Jesi expande as suas considerações sobre o que distingue uma revolta de uma revolução. Enquanto que, na primeira, existe uma suspensão do tempo histórico, na revolução há uma apropriação desse mesmo tempo. Uma destrói, a outra constrói e é nessa destruição que existe a suspensão, pela violência e pela identificação próxima com o  outro, de uma realidade que se quer outra. A revolução retoma o tempo normal, sob outras formas, é certo, mas a construção de um tempo é um dos objectivos não escondidos de qualquer revolução. Assim foi em 1789 e em 1917. 

A esquerda actual vive igualmente de mitos. O mito da comuna de 1871, dos conselhos de 1918/19, da Guerra Civil de Espanha de 36/39, do Maio de 68, da guerrilha de Che, mas não deixa de ser sintomático que essa identificação do mito persista nos derrotados e não nas revoluções vitoriosas, como a de 1917. Compreende-se que o sangue derramado dos heróis, construa uma identificação psicológica forte quando a derrota foi o culminar das suas utopias. 

A esquerda, não por acaso, deixou de ser subversiva, dispensando a propaganda como coisa de nazis e fascistas, não compreendendo que ela foi uma das razões que uniu (e ganhou) camadas de gerações revolucionárias em torno de uma ideia comum. Hoje acantonou-se no parlamentarismo deixando para outros a construção de uma sociedade mais livre. A subversão deixou de fazer sentido para largos estratos da esquerda, receosa de perder votos afirmando-se como uma espécie de corpo bem-comportado em debates que julga fracturantes, mas que não são mais do que o caminho óbvio da evolução das liberdades. O tempo aqui não será suspenso, porque não há revolta que lhe valha com estes pressupostos. 

De Furio Jesi:
«Podemos amar uma cidade, podemos reconhecer as suas casas e ruas nas nossas mais remotas ou mais caras memórias, mas só na hora da revolta sentimos verdadeiramente a cidade como nossa: nossa, por ser do eu e aos mesmo tempo dos ''outros''; nossa, por ser campo de uma batalha que se escolheu e que a colectividade escolheu; nossa, por ser espaço circunscrito no qual o tempo histórico está suspenso e no qual cada acto vale por si só, nas suas consequências absolutamente imediatas. Apropriamo-nos de uma cidade fugindo ou avançando na alternância das investidas, muito mais do que brincando, quando crianças, nas suas ruas, ou passeando por elas mais tarde com uma rapariga. Na hora da revolta já não estamos sozinhos na cidade.» (pág.77)

alc

"Jacob's Room", Virginia Woolf

Oxford University Press, 1992

A edição inglesa é de bolso, muito cuidada, capa bonita e já com páginas amareladas. Fiquei com ele numa feira de trocas de livros promovida pela biblioteca municipal junto com outros em inglês. De 58 livros que levei trouxe 7, com o fim de arranjar mais espaço nas estantes já de si a pedirem renovação urgente. Quando me despeço de livros fico sempre com aquela sensação de perda que me leva alguns dias a desaparecer. Esta aquisição completamente gratuita compensou o facto de ter ficado sem alguns e, por ser na língua inglesa, reforçou a possibilidade de a entender melhor em narrativa. Se tenho alguma facilidade de ler em inglês nos trabalhos de ensaio e técnicos, já no romance, e logo em Virgina Woolf, sinto grandes dificuldades. A descrição pormenorizada da natureza, do tempo e das coisas e as frases idiomáticas esbarram numa ignorância consolidada no tempo em que me escusei a ler, com alguma continuidade, romances na língua inglesa, na obra original de autor. Fiquei-me pelas quatro páginas diárias sabendo que o dicionário está ali ao meu lado, amigo. Uma trabalheira que compensar-me-á na procura do original, do genuíno.

alc

domingo, novembro 16, 2025

«In girum imus nocte et consumimur igni», Guy Debord

 

Antígona, 2022. Tradução de Júlio Henriques

Edição sobre o filme homónimo de Guy Debord, é composta por uma introdução de Alice Becker-Ho, que aqui assina como Alice Debord, e seguida de uma nota crítica do autor, em Dezembro de 1977, que se debruça sobre as condições da sua época que despreza absolutamente. Para além da ficha técnica do filme de 1978, «in girum imus nocte et consumimur igni» (1) conta, igualmente, com instruções para a sonoplastia e montagem, assim como «Notas sobre a utilização dos filmes roubados» e uma «Lista das citações ou dos desvios no texto do filme ''in girum...''». Finaliza com um provocador e belíssimo texto de Debord e Gil Wolman «Modo de usar o desvio» publicado em  «Les Lèvres nues», nº8, escrito em Maio de 1956.

Avesso a toda a interpretação do seu pensamento teórico, Guy Debord não deixou de exprimir a sua revolta pelo sistema capitalista e da burocracia estalinista. Para ele, é suficientemente claro o que deixou escrito, plasmado na circunstância do tempo vivido por uma população alienada num espectáculo em que a produção e consumo infinitas de mercadorias é parte integrante dessa mesma alienação. O início do filme é disso um exemplo.

Este livro, traduzido, com rigor, por Júlio Henriques, não é só um guião do filme com o mesmo nome que pode ser acompanhado gratuitamente no YouTube (In Girum Imus Nocte Et Consumimur Igni (1978)) e sem qualquer anunciante a atrapalhar o seu visionamento, o que não deixa de ser irónico. É mais que um guião: são considerações importantes sobre o estado das coisas nos finais dos anos 70, já com a Internacional Situacionista, que ele fundou em 1956, dissolvida em 72. Aí, Guy Debord afirma:

«Mereci o ódio universal da sociedade do meu tempo, e ter-me-ia irritado possuir outros méritos aos olhos de uma tal sociedade. Mas, segundo observei, foi ainda no cinema que provoquei a mais perfeita e a mais unânime indignação. Essa aversão foi mesmo levada ao ponto de me pilharem no cinema com muito menos frequência do que no resto, pelo menos até agora. A minha própria existência no cinema continua a ser uma hipótese que em geral é refutada. Vejo-me, pois, colocado acima de todas as leis do género. Por isso, como dizia Swift, ''não é para mim parco contento apresentar uma obra em tudo superior a qualquer crítica''.» Eis uma boa razão para não perder o filme ou os outros que estão à nossa disposição, embora vistos numa sala escurecida seja bem diferente que a luz difusa das casas. 

Não imagino um Debord nostálgico, muito longe disso, mas não deixa de ser motivo de atenção as observações que faz a uma Paris que foi destruída pelo urbanismo contemporâneo (palavra esta que chama todos os insultos a Debord) ou de uma Florença que ele amou, mas que o impediram de viver por supostas ligações às BV italianas, o que é, de todo, impossível no autor. Bastava para isso ler, mesmo em diagonal como é apanágio dos procuradores, as suas teses. Uma metáfora certeira para as cidades hoje destruídas pelo urbanismo oficial e pela gentrificação. Existe igualmente inscrita nesta obra a publicação referida atrás, de 1956, que vale a pena ler e que versa sobre um tema particularmente interessante nos situacionistas: a noção de «desvio», em francês «dètournement», em todos os campos da actividade humana e, principalmente, no que se chama de «cultura». Trata-se, simplificando, do que se pode chamar de «colagens» de obras ou frases que descontextualizando-as, serão utilizadas em novos contextos criados por quem faz, propositadamente, esse desvio. Para isso, já em 1956, Debord e Wolman, criam uma classificação e um «modo de usar o desvio» precocemente utilizado por Lautrèamont em «Cantos de Maldoror»: 

«(...) Tudo pode servir. É óbvio que podemos não só corrigir uma obra ou integrar diversos fragmentos de obras caducas numa obra nova, mas também mudar o sentido destes fragmentos e alterar, de todas as formas que se julguem adequadas, aquilo que os imbecis se obstinam a chamar citações.» (pág.73)

«Uma palavra de ordem como ''o plágio é necessário, o progresso implica-o'' é ainda tão mal compreendida, e pelas mesmas razões, como a frase famosa sobre a poesia que ''deve ser feita por todos''.» (pág.74)

«A barateza [do desvio] dos seus produtos é a artilharia pesada com a qual se abatem todas as muralhas da China da inteligência. Estamos perante um meio efectivo de ensino artístico proletário, o primeiro esboço de um comunismo literário.» (pág.77)
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(1). Se repararem trata-se de um palíndromo, ou seja, pode ler-se da normalmente da esquerda para a direita, como da direita para a esquerda. Traduz-se por «Movemo-nos na noite sem saída e somos devorados pelo fogo».

alc

sábado, novembro 15, 2025

«Peregrinação em Tinker Creek», Annie Dillard

 

Antígona, 2025. Tradução de Inês Dias

Escrito em 1972, quando Annie Dillard contava com 27 anos, «Peregrinação em Tinker Creek» é um livro singular que conta uma experiência pessoal de observação profunda da Natureza, na Pensilvânia e no Maine, EUA. Editado em 1974, é muito difícil classificá-lo. Pelo menos, sabemos que a autora recusa ser considerada ensaísta, o que nos ajuda a entendê-lo um pouco melhor. Sendo igualmente poeta, Annie Dillard convoca-nos para uma leitura encantadora em torno do Natural, uma experiência quase mística, recusando o antropocentrismo e abraçando os inúmeros actores que fazem do mundo aquilo que é, não o que desejaríamos que fosse. E essa experiência torna-se aterradora se virarmos as costas ao Humano e nos embrenharmos na selva de sobrevivência que é este livro e cujo título chama por uma montanha que reparte o nome com um rio: Tinker Creek. É nas suas margens, nas colinas, nas rochas e nas árvores que encontramos uma variedade infindável de fauna e flora e nos deparamos com a conclusão de que todos os seres vivem essencialmente para parasitar outros animais e vegetais e finalmente morrer. Essa profusão e descrição pormenorizada de plantas, de animais, de pequenos e grandes insectos, de fenómenos naturais extremos ou de simples evolução das estações do ano, obrigaram-me a uma demora na leitura que não me é habitual. Muitas vezes tinha de regressar ao parágrafo anterior e, pasme-se, investigar nomes que pela primeira vez li e que desconhecia totalmente o que eram, fossem eles árvores, insectos, plantas, animais ou células microscópicas.

O misticismo que antevemos em Annie Dillard, muito ilustrado por citações da Bíblia é enganador. Por muito paradoxal que seja, identifico a sua escrita e pensamento mais com Nietzsche e com um animismo moderno do que os editores que, na apresentação da autora, lembram Thoreau. A sobrevivência é uma maquinação deste planeta, sejamos presas ou predadores. E qual a sua mensagem essencial? Vivemos com as cicatrizes que temos, todos nós, e não será por acaso que Annie Dillard nos demonstra, com exemplos excruciantes da vida natural, lembrando-nos as marcas no corpo das baleias, tubarões, ursos, etc. ou a morte de uma rã pela sucção das suas entranhas por uma barata-de-água deixando a sua pele incólume; já as cicatrizes dos humanos são maioritariamente escondidas, ausência essa que é descrita como um planeta onde os seres passam a sua vida a praticarem isso mesmo: a esconderem-se uns dos outros. 

Por outro lado, Annie Dillard, ao contrário de Thoreau, não vive isolada. Tem vizinhos, também come carne, anda de automóvel, fuma cigarros, convive nas cidades, não é uma anacoreta ou uma pregadora do deserto, embora os refira em passos do livro. Não é uma moralista da vida natural, mesmo que adivinhemos um amor infinito pela Natureza que descreve como ninguém, pelo menos que eu conheça. Limita-se a observar, a ver, coisa que o capitalismo ainda não proibiu ou que exija pagamento. E é talvez aí que se encontra o segredo da adesão a este livro por parte dos leitores: a franqueza, a verosimilhança e a genuinidade. Acreditamos nela e seguimo-la nas suas experiências.

«Em tudo na vida há sempre a tentação de perder tempo, fazendo amigos, refeições e viagens comezinhas durante anos comezinhos a fio. É tão consciente, parece tão moral, afastarmo-nos simplesmente das brechas onde os rios e os ventos se precipitam, dizendo ''nunca mereci esta graça'', o que até é verdade, e depois amuarmos até ao fim da vida, sempre no limiar da raiva. Recuso-me. O mundo é mais feroz do que isso em todas as direcções, mais perigoso e amargo, mais extravagante e luminoso. Estamos a fazer a faina, quando devíamos erguer Caim ou Lázaro.» (pág.303)

alc

segunda-feira, novembro 03, 2025

«A Vegetariana», Han Kang

D. Quixote, 6ª ed. 2024 (1ªed. 2016). Tradução do inglês de Maria do Carmo Figueira

Tanto me falaram deste livro de Han Kang, esta coreana que foi nobelizada no ano passado, que tive de ler «A Vegetariana». Iniciei-o no Dia de Finados e acabei-o hoje não como dever cumprido, mas com agrado. Inquestionável que é uma boa escritora o que deixa em claro a pergunta irónica repetida de um amigo meu que vos transmito: «Um Nobel da literatura e, ainda por cima, bom escritor?».

Seja como for e não cedendo à tentação de vos contar a narrativa de «A Vegetariana» fiquei apreensivo ao terminá-la. Não por qualquer causa de índole literária ou da história em si, mas pelo tema quase constante das obras vindas da Ásia, mais abrangentemente, de quase todo o Oriente. A ligação íntima das palavras, dos temas literários e das personagens que as compõem com a  Natureza vegetal, com a flora. Desde sempre e com quase todos os autores japoneses, chineses, coreanos, vietnamitas... há florestas frondosas, folhas multicolores, charcos com vida, uma paleta autêntica da flora mitificada em cada palavra ou «florestas ondulantes que cobrem os continentes como um mar impiedoso» que lhe «envolvem o corpo e elevam-na», como escreve Han Kang. O Ocidente nada tem de parecido na literatura contemporânea: é feita de cimento e ladrilhos e quando existe a chamada Natureza ou está ser destruída, ou aboletada como utilitária para as actividades humanas. No Ocidente, o respeito pelo som do vento nas árvores, pelo silêncio, pela escuridão e mistério das florestas são humanizadas violentamente com o arborismo, pistas de bicicletas, casas para observação de pássaros, gravilhas, desbastes, cortes por instituições ditas «amigas do ambiente». 

Lembro-me de páginas inesquecíveis sobre a flora de Mishima, poemas de Bashô ou de Shiki, Kenzaburõ Õe, Murakami, Kawabata, Jung Chang, Can Chue, Yuo Hua, ou Rithy Panh. Isto para ficarmos somente pelos japoneses, chineses ou vietnamitas. No Ocidente, as flores não têm o carácter místico que adquirem no Oriente. As flores politizam-se facilmente como a papoila ligando-a aos mortos da I Guerra Mundial na Grã-Bretanha, a flor de lis para indicar o nacionalismo francês, o cravo para a Revolução portuguesa de 74, ou o cipreste para localizar cemitérios... seja como for a flor, no Ocidente, vulgarizou-se ao ponto de as não vermos e muito menos no parco ambiente selvagem que ainda existe pela Europa. Não pensem observar muitas «florestas ondulantes» por cá.

A história de «A Vegetariana» desenrola-se num ambiente sufocante de uma grande cidade, paradoxalmente. Mas o desejo dos grandes espaços, a esquizofrenia latente, cujas causas se encontram numa educação violenta ou numa vida submissa para além do suportável, na personagem principal, a tentativa de se «esconder» na terra, a quem ironicamente chamamos «mãe». 

«Teria ela confundido o chão, de cimento do hospital com a terra da floresta? Ter-se-ia o seu corpo metamorfoseado num tronco robusto, com raízes esbranquiçadas a nascerem-lhe das mãos e a agarrarem-se à terra escura? Seria possível que as suas pernas se esticassem no ar, ao mesmo tempo que os seus braços se enterravam em direcção ao centro da terra, com as costas rígidas e direitas de forma a permitirem que os seus membros crescessem? Enquanto os raios de sol inundavam o corpo de Yeong-hye, teria a água que saturava a terra sido absorvida pelas suas células, acabando por brotar flores da sua púbis? Seria possível que, quando Yeong-hye se equilibrara de pernas para o ar e alongara cada fibra do seu corpo, todas essas coisas tivessem despertado na sua alma?» (pág.177)

alc