Antígona, 2022. Tradução de Júlio Henriques
Edição sobre o filme homónimo de Guy Debord, é composta por uma introdução de Alice Becker-Ho, que aqui assina como Alice Debord, e seguida de uma nota crítica do autor, em Dezembro de 1977, que se debruça sobre as condições da sua época que despreza absolutamente. Para além da ficha técnica do filme de 1978, «in girum imus nocte et consumimur igni» (1) conta, igualmente, com instruções para a sonoplastia e montagem, assim como «Notas sobre a utilização dos filmes roubados» e uma «Lista das citações ou dos desvios no texto do filme ''in girum...''». Finaliza com um provocador e belíssimo texto de Debord e Gil Wolman «Modo de usar o desvio» publicado em «Les Lèvres nues», nº8, escrito em Maio de 1956.
Avesso a toda a interpretação do seu pensamento teórico, Guy Debord não deixou de exprimir a sua revolta pelo sistema capitalista e da burocracia estalinista. Para ele, é suficientemente claro o que deixou escrito, plasmado na circunstância do tempo vivido por uma população alienada num espectáculo em que a produção e consumo infinitas de mercadorias é parte integrante dessa mesma alienação. O início do filme é disso um exemplo.
Este livro, traduzido, com rigor, por Júlio Henriques, não é só um guião do filme com o mesmo nome que pode ser acompanhado gratuitamente no YouTube (
In Girum Imus Nocte Et Consumimur Igni (1978)) e sem qualquer anunciante a atrapalhar o seu visionamento, o que não deixa de ser irónico. É mais que um guião: são considerações importantes sobre o estado das coisas nos finais dos anos 70, já com a Internacional Situacionista, que ele fundou em 1956, dissolvida em 72. Aí, Guy Debord afirma:
«Mereci o ódio universal da sociedade do meu tempo, e ter-me-ia irritado possuir outros méritos aos olhos de uma tal sociedade. Mas, segundo observei, foi ainda no cinema que provoquei a mais perfeita e a mais unânime indignação. Essa aversão foi mesmo levada ao ponto de me pilharem no cinema com muito menos frequência do que no resto, pelo menos até agora. A minha própria existência no cinema continua a ser uma hipótese que em geral é refutada. Vejo-me, pois, colocado acima de todas as leis do género. Por isso, como dizia Swift, ''não é para mim parco contento apresentar uma obra em tudo superior a qualquer crítica''.» Eis uma boa razão para não perder o filme ou os outros que estão à nossa disposição, embora vistos numa sala escurecida seja bem diferente que a luz difusa das casas.
Não imagino um Debord nostálgico, muito longe disso, mas não deixa de ser motivo de atenção as observações que faz a uma Paris que foi destruída pelo urbanismo contemporâneo (palavra esta que chama todos os insultos a Debord) ou de uma Florença que ele amou, mas que o impediram de viver por supostas ligações às BV italianas, o que é, de todo, impossível no autor. Bastava para isso ler, mesmo em diagonal como é apanágio dos procuradores, as suas teses. Uma metáfora certeira para as cidades hoje destruídas pelo urbanismo oficial e pela gentrificação. Existe igualmente inscrita nesta obra a publicação referida atrás, de 1956, que vale a pena ler e que versa sobre um tema particularmente interessante nos situacionistas: a noção de «desvio», em francês «dètournement», em todos os campos da actividade humana e, principalmente, no que se chama de «cultura». Trata-se, simplificando, do que se pode chamar de «colagens» de obras ou frases que descontextualizando-as, serão utilizadas em novos contextos criados por quem faz, propositadamente, esse desvio. Para isso, já em 1956, Debord e Wolman, criam uma classificação e um «modo de usar o desvio» precocemente utilizado por Lautrèamont em «Cantos de Maldoror»:
«(...) Tudo pode servir. É óbvio que podemos não só corrigir uma obra ou integrar diversos fragmentos de obras caducas numa obra nova, mas também mudar o sentido destes fragmentos e alterar, de todas as formas que se julguem adequadas, aquilo que os imbecis se obstinam a chamar citações.» (pág.73)
«Uma palavra de ordem como ''o plágio é necessário, o progresso implica-o'' é ainda tão mal compreendida, e pelas mesmas razões, como a frase famosa sobre a poesia que ''deve ser feita por todos''.» (pág.74)
«A barateza [do desvio] dos seus produtos é a artilharia pesada com a qual se abatem todas as muralhas da China da inteligência. Estamos perante um meio efectivo de ensino artístico proletário, o primeiro esboço de um comunismo literário.» (pág.77)
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(1). Se repararem trata-se de um palíndromo, ou seja, pode ler-se da normalmente da esquerda para a direita, como da direita para a esquerda. Traduz-se por «Movemo-nos na noite sem saída e somos devorados pelo fogo».
alc