segunda-feira, maio 27, 2024

"Um Terrível Verdor", Benjamin Labatut

Elsinore, Penguin Random House, 2024. Trad. Guilherme Pires
«- Deus não brinca aos dados com o Universo!»
«- Não seremos nós a dizer-Lhe o que deve fazer com ele!»
Este diálogo entre Einstein (a primeira afirmação) e Niels Bohr, após cinco dias exaustivos entre os melhores físicos do mundo, em Copenhaga, fixou uma das maiores polémicas entre - e desculpem o facilitismo de apôr rótulos em gente que não o merece de todo - os «deterministas» onde se encontrava Eisntein que viam o Universo a ser regido por leis únicas e os do «mecanicismo quântico» personalizado por Bohr, que defendiam um aparente caos de expansão e contracção contínua entre espaço e tempo. Pelo que se sabe ambos teriam razão, embora Eisntein tivesse pressentido que os cálculos quânticos estavam certos. Não deixa de ser sintomático que estes últimos o tivessem consultado sempre que apreentavam novos cálculos. Isto é, do que fiquei ciente ao ler este livro tão notável, quanto estranho é que se queremos conhecer as leis universais que nos regem devemos estudar o microcosmos, do átomo e dentro dele as suas partículas elementares. Este não é um livro só de física e de química, é a vida de toda uma panóplia de indivíduos cuja capacidade de abstracção ou de obsessão por uma ideia, seja ela intuitiva ou conclusiva sob os auspícios da matemática pura foi uma constante. Muitos foram levados à loucura, aos descrédito (embora cedo demais), à ostracização ou à autoreclusão. Ou à glória. No fundo é o espelho mais ou menos deformado da nossa vivência como seres humanos.

Este livro traça-nos percursos incríveis de vida de pessoas como Diesbach e Scheele que inventaram a fórmula do cianeto, ou o «ácido prússico» que serviu para o uso de pesticida nas laranjas da Califórnia, o Zicklon A, cujos vagões de comboio ficavam com um azul esplendoroso - o azul da Prússia, com que Van Gogh, por exemplo, deu basto uso nos seus quadros estrelados! Outro uso foi o de ter ajudado ao suicídio de milhares de nazis que, em 1945 e em ampolas escondidas, se fizeram cadáveres, não sem antes darem seguimento ao maior gaseamento da História sobre seres humanos depois da I Guerra Mundial, nos campos da morte, com o mais eficaz Zicklon B. Schwarzschild, morto em combate em 1915, que se correspondeu com Einstein a partir das trincheiras da frente oriental e que no meio do turbilhão das explosões resolveu equações complexas da «Teoria da Relatividade Geral». A uma certa altura, calou-se com a afirmação para um colega: «Chegámos ao ponto mais alto da Civilização. Só nos resta cair!». Pediu a esse matemático amigo para lhe destruir tudo e morreu na tarde seguinte. Histórias exemplares e extremamente inquietantes sobre autênticos génios que preferiram rasgar o que tinham feito durante largos anos, «...porque era bom que a Humanidade não soubesse.» Houve outros que cabe aqui referir pela sua singularidade (atenção que isto é um termo físico bem definido da Teoria Quântica) como Mochizuki que diz ter encontrado a resolução «impossível» da fórmula a+b=c e que rasgou tudo o que tinha feito até então e a descoberta do «coração do coração» da Matemática pura e que proibiu a publicação global dos seus trabalhos, como Grothendieck. Esse fugiu, autorecolheu-se nos Pirinéus e acabou com os seus brilhantes trabalhos. Preferiu isso a que a Humanidade soubesse onde tinha chegado. «Para bem dela, preferia assim!» Heinsenberg que contestou Schölinger e que acompanhou Bohr, porque aquele defendia que as partículas elementares do átomo tinham comportamenos semelhantes ao das ondas e não como as vemos em órbitas fixas em volta do núcleo. De Broglie que editou «Investigação sobre a Toeria Quântica» e cuja vida foi um poço de contradições e de fuga. Acabou igualmente por se recolher definitivamente  É  lógico que a destruição dos estudos e fuga ou reclusão não foi um conselho que Oppenheimer seguisse. Preferiu mostrar ao mundo as maravilhas da fissão sobre os humanos! 

Pessoalmente, acredito que a astrofísica acabará por matar a poesia desde que se descobriu que somos feitos com o pó das estrelas e para lá voltamos. A Inteligência Artificial também o poderá fazer, mas adiante. Creio que em Portugal, Jorge de Sousa Braga já o pressentiu, dedicando os seus mais belos e últimos poemas ao universo. Mas gostava de me despedir deste livro com uma citação sobre Poesia e Física:

«(...) Foi exactamente isso que fez com Heisenberg [em conversa com Bohr]: durante os passeios nas montanhas, convenceu o jovem físico  de que, quando se conversava sobre átomos, a linguagem utilizada tinha sempre de ser poética. Caminhando com Bohr, Heisenberg teve a sua primeira intuição da extrema alteridade do mundo sub-atómico: ''Se uma única partícula de pó contém biliões de átomos'', disse-lhe Bohr enquanto subiam pelos maciços da cordilheira Harz, ''como é possível que alguém se refira com propriedade a algo tão pequeno?'' O físico - como o poeta - não deveria descrever os factos do mundo, mas sim criar metáforas e relações mentais sobre a realidade. A partir desse Verão, Heisenberg compreendeu que aplicar conceitos de Física Clássica - como a posição, a velocidade e o momento - a uma partícula subatómica era um absoluto disparate. esse aspecto da natureza exigia um novo idioma.»
(pág. 160)
 

Um post de Diogo Vaz Pinto sobre a biografia de Manuel de Castro

Às vezes, entre as centenas de livros que se editam, o mais estranho é que, do meio da indiferença que nos gela e que é o maior dos abismos desta época, surge um leitor, um abelhão todo coberto do pólen que se reservou nalgumas páginas, nalgum desses livros feitos quase secretamente e só em nome dessa hipótese de haver mais alguém vivo nesta língua que quase se deixou de falar, e que está, para os efeitos de perturbação profunda e de mudança, praticamente morta. Daí o espanto quando afinal ainda nos surge um leitor pela frente, alguém vindo do outro lado, abrindo uma esperança de não sentirmos o desconhecido como um vazio, mas ainda como um território que nos desafie. Curiosamente, este leitor calha ser um antigo editor, desses que deu tudo e acabou atirado para a berma, muitas vezes também por esse género de autores tomados pela sanha de saltar para algo com um ascendente publicitário maior. Porque a chamada cultura literária entre nós ainda não fez mais que um punhado de escritores com verdadeira vontade de criar tudo outra vez, e por isso vão perfumando os cadáveres de ontem enquanto se queixam por não haver margem para fundar uma razão que diga respeito ao amanhã.

Diogo Vaz Pinto, sobre um artigo referente à edição da biografia de Manuel de Castro, no perfil da editora Língua Morta. Maio de 2024. 

sexta-feira, maio 24, 2024

«Corpo Cru», João Damasceno


Tipografia Damasceno, 2024, Carimbo de desenho e assinatura do autor.
Ilustrações de João Fonte e João Damasceno (capa). Prefácio de João Maria André
Composição em tipos de Odete Paixão (mãe do João)
Ontem foi um dia estranho como são todos que nos levam a recordar um amigo que já não está entre nós há muito. Estive no Centro Cultural Penedo da Saudade, onde se fez a apresentação de mais uma edição de Corpo Cru, do João Damasceno. A 1ª edição foi pela Fenda em 1983. E é o irmão, o Rui Damasceno e a família próxima (ao contrário de muitos exemplos que conhecemos) que tratam do espólio que (nos) deixou quando da sua morte em 2010. Ainda lhe preservam em casa os poemas soltos. Em vida publicou, principalmente na Fenda de Vasco Santos, cinco livros: Corpo Cru, 1983; Cinco Suicídios, 1986; Alma Fria - Scketches Policiários, 1986; Retrato do Artista Quando Jovem aos Pés da Rainha Santa Isabel, 1989 e fora da Fenda, na Tipografia da família, editou-se Carta de Probabilidades de Erosão Celeste, 2015, este já póstumo, evidentemente.

Revi a biografia de João Damasceno pelas redes sociais e pelos blogues literários e, sinceramente, não vi nada que se aproximasse ao que ele foi realmente para quem o conheceu e que muitos (agora críticos) vociferavam contra as suas atitudes provocatórias de quem nunca se reviu numa cidade que iniciava então o seu percurso cultural mesquinho, de grupos de amizade e afinidades várias. Salvam-se alguns registos filmados por Rui Damasceno e outros, que lhe são fiéis, pela dicção, cadência e leituras impecáveis que estão à vossa disposição na net. O deserto que se aproximava era sentido por João Damasceno que contra ele, e por sua vez, utilizava não só a ironia, mas também o insulto, a provocação, a atitude diletante. Conheci-o a avançar para a sua fase mais autodestrutiva, como muitos de nós. Alguns pararam, outros foram-se embora daqui, muitos morreram, outros enlouqueceram, outros casaram e arranjaram emprego público ou privado, que para o caso tanto faz. O João, não. Ele era já incontrolável, optou pela comunicação com os outros através da poesia e será talvez caso único, em Coimbra, dos que levaram a poesia para dentro de si próprios. E isso paga-se caro em sítios assim. Ele vivia as palavras com poesia, eventualmente também no teatro. Assumiu a atitude poética no seu corpo e na sua totalidade crua. 

Hoje cantam-no, dramatizam-no, dizem-lhe os poemas. Alguns deles, bem. Mas sugere-se o início de uma biografia necessária de um antiautoritário, de um espírito livre, de um homem incontrolável que sabia amar. Ou seja, de um poeta inimitável. 

«Porque quisemos perguntar aos rostos os segredos:
fomos punidos, vagueámos...»

Corpo Cru, pág.54

quinta-feira, maio 23, 2024

«O Poeta passeia-se pelo seu túmulo», uma biografia de Manuel de Castro, Nuno dos Santos Sousa

Língua Morta, Novembro de 2023
É muito possível que quem não se emocionar com esta biografia de Manuel de Castro em jeito de cumplicidade e diálogo com o autor, desaparecido em 1971, guiada por Nuno dos Santos Sousa, tenha, nas suas veias, Água das Pedras, caldeadas por Frizes de morango para as colorir, ao menos.

Ninguém pode ficar indiferente a esta biografia, o que é simplista de se dizer. Aliás, o sub-título já explica por si: «Subsídios, Esmolas, Aforismos e umas Rodadas para a Biografia Teratológica de Manuel de Castro». Portanto, é mais que isso. Nuno dos Santos Sousa não é meigo com a linguagem utilizada, pelos que convoca para aqui, pelo que é escolhido das cartas do poeta ou pelos poemas que sabemos de «Zona», «Estrela Rutilante», «Paralelo W» e «Escorpião» (este desapareceu ou está em mãos desconhecidas, como se pode aventar) e «Bonsoir Madame». Esta biografia não é como as outras, não é um tijolo pessoano ou camoniano, de vastas posses, é uma obra bonita, que respeita o biografado literário e o homem, o que em Manuel de Castro é uma e a mesma coisa. O editor da Língua Morta soube-lhe dar casa e isto não se esquece. Não me retenho sequer a fazer qualquer consideração sobre a sua poesia. Não posso, não tenho estofo e vai daí também a emoção de o ter lido e de o ter desenhado em ex-voto (ver em baixo) não me deixa escrever porque adivinho o desprezo de quem é «interpretado», ou o caraças! Só direi que Manuel de Castro é inesquecível pela raiva, pelo amor, pela ruptura surrealista e abjeccionista, embora não se fique só por estes ismos. Morreu com 37 anos, depois de uma doença prolongada de que não quis tratar-se completamente. Morreu devagar, num suicídio lento num país que está longe de o merecer, sequer. Ele di-lo com clareza, não quer ficar por cá e parte para Paris e Alemanha, estacionando por lá 5 anos. E os seus amigos, Herberto Helder, Helder Macedo, João Rodrigues, Carlos Loures, José Manuel Simões, Pedro Oom, António Barahona (o único que está vivo desse grupo do Gelo, que não era bem um grupo, antes pelo contrário), Fernando Madureira, António José Forte, Virgílio Martinho, Ernesto Sampaio, Luiz Pacheco e mais, muitos mais... Cesariny e Mário-Henrique constam aqui e ali. 

Nuno dos Santos Sousa dialoga com Manuel de Castro. Com um carinho límpido, que um leitor atento sabe atentar, sim senhor. «Menos na política, Manel», menos na política, que dá merda! Chama igualmente por quem o convocou como «poeta sonegado» no dizer de Luiz Pacheco. Não fosse a «A Ideia» e António Cândido Franco ou António Barahona, e editoras que o vão lembrando e ainda estaríamos em maré de nada. E até hoje foram alguns, se bem que persista o esquecimento que já nada tem de involuntário. É voluntaríssimo e infame, porque é impossível imitar Manuel de Castro sem se dar conta. É único. E os poetíssimos e poetíssimas contemporâneos não o querem perto, porque pode haver desmascaramento e o Herberto Helder ainda dá para se arrevesarem e dar uns ares da sua graça, treslendo-o ou coincidindo, sem se saber, claro. Escreveu para revistas, para jornais, para editoras. Bebeu demasiado, e dava-se à noite lisboeta e aos bordéis. Estava pronto para a porrada, sempre que fosse necessário e também com os amigos, porque era uma nobre prova de amor (chamava aos amigos de «rosas brancas»). Era um incontrolável, o que lhe daria combustível para as melhores páginas escritas no Gelo, no Royal, ou nos cafés que já não existem hoje.

Companheiros do programa biográfico de Manuel de Castro, Nuno dos Santos Sousa chamou à obra, Cioran, Jünger, Raúl Brandão, Drieu La Rochelle, Ingeborg Bachmann com um belíssimo texto e, além de outros, Jean Cocteau. 

Não porei aqui nenhum poema de Manuel de Castro. Pela simples razão que toda a poesia (como afirmou, «nem todo o poema é poesia!») é nele, um continuum, é muito difícil separá-la em extractos. Compre-se os livros e manuseie-se devagar ou com raiva, cheios de pressa. É convosco. Mas leiam este livro que é igualmente poesia.

António Luís Catarino, Abjectos Surreais, Manuel de Castro, 2022

segunda-feira, maio 20, 2024

«Camões», Ezra Pound

Fenda Edições, 2ª edição, 2005. (1ª, 1980). Tradução de Isabel Pedro dos Santos, Posfácio Stephen Wilson, Design de João Bicker
Ah, Camões! Se soubesses o interesse público e aeronáutico que há por ti nos teus 500 jovens aninhos! Antes de ir ao Jorge de Sena, aguentemos a desertificação com Ezra Pound.

Fui procurar esta edição de Ezra Pound, creio que sobre a responsabilidade de Stephen Wilson e de Vasco Santos, ambos habituais do Tropical e da noite da Clepsidra dos anos 80, que ainda por cima editaram um Ezra Pound que tinha alguns engulhos para com o estilo épico de «Os Lusíadas», isto bem exposto no seu «The Spirit of Romance» de 1910, imagine-se, ainda o fascismo era larvar e ainda não teria rebentado a I Guerra Mundial, sequer. Por aqui vivia-se na liberdade republicana, acabadinha de ser inaugurada. Ezra Pound preparava-se em palestras universitárias londrinas para ganhar a vida e fermentava-se nas ideias fascistas. Se não gostava do épico camoniano, menos, ao que diz, do Canto III relativo à senhora dona Inês de Castro, suficientemente lírico para ele gostar, encarava-o como um dos grandes. Segundo ele, era aí, no lírico, que residia toda a gloriosa poesia de Camões. 

De qualquer modo, Pound, pela interpretação que se pode retirar de «Camões» não lhe é completamente hostil como o é para com Virgílio, Tasso, Spencer, Milton ou mesmo Homero da Ilíada (não da Odisseia, evidentemente), mas antes usa «Os Lusíadas» nas palestras, que editou depois em livro, para ressalvar as características do épico. Aliás, chega a dizer que Camões inaugura a forma épica da Antiguidade na era tardia do Renascimento, aproximando-o de Dante de quem era um devoto assumido. Para além disso, chama a atenção para a falta de musicalidade da nossa língua que Camões consegue ultrapassar, quer com a métrica quer por recursos vocabulares o que não deixa de ser uma contradição de Pound. E da efemeridade da nossa gloriosa pátria, bem exposta nas suas palavras por uma decadência já antiga e que os portugueses adoptaram como felicidade colectiva, até hoje, digo eu. Já a estafada diatribe da falta de filosofia de Camões é remetida para uma «retórica colorida». Pound engana-se: Camões não é um filósofo, é certo, mas podemos considerá-lo um grande, enorme, pensador. Comparando-o com Dante, Pound comete um erro (a que Wilson chama no posfácio de pouco científico) e cai na sua própria ratoeira: o seu «The Cantos» não conseguiu ser épico, muito menos lírico. E longe de qualquer preocupação filosófica, diga-se. 

Diz Pound em «Camões»:

«''Os Lusíadas'' é melhor do que um romance histórico; dá-nos o tom do pensamento da época. (...) Camões sentiu a glória de Portugal como nenhum outro, mas esta glória foi efémera.»

«Camões escreve num estilo resplandecente e bombástico - que por vezes é poesia. A língua portuguesa, pouco musical, é subjugada, e os seus acordes dissonantes harmonizados. Como retórica colorida, ''Os Lusíadas'' dificilmente será ultrapassado, em minha opinião. O encanto deve-se ao vigor do autor, à sua unanimidade, à firme convicção da glória das coisas do mundo exterior - é há igualmente um certo prazer no contacto com o tipo de espírito de Camões, o espírito de um homem com suficiente entusiasmo para escrever um poema épico de dez Cantos sem nunca se deter em qualquer tipo de reflexão filosófica. Ele é o Rubens da poesia.»

Clarifica Stephen Wilson, no seu posfácio o seguinte:

«(...) Embora a definição desta tradição [Wilson refere-se à ''tradição épica''] seja drasticamente redutora, algo periférica e de certo modo bizarra, é importante, contudo, entendê-la bem como a atitude de Pound em relação a Camões, como sendo mais do que mera excentricidade , idiossincracia ou ignorância. Em termos simples e de algum modo grosseiros, as objecções de Pound a ''Os Lusíadas'' provêm do facto de ele considerar a obra como um poema que ''fala de História'' e nada mais; faltar-lhe-ia o ''carácter mágico da poesia'' e só teria ''o interesse da prosa''; seria, para utilizar a terminologia caracteristicamente pouco científica de Pound,''sem vida'', ''seco'' e ''aborrecido''. (...)» (pág.44)

Nota: sendo uma 2ª edição a Fenda poderia ter reparado nalgumas gralhas arreliadoras que persistiram desde a 1ª e corrigi-las. Não dava grande trabalho. Tiveram 25 anos para o fazer!

II Feira de Livros de Arte. Centro de Artes Visuais, Coimbra

 


Na II Feira do Livro de Arte, no CAV de Coimbra, um fartote de aquisições de livros bonitos. Poesia de Heiner Müller, traduzida por Adolfo Luxúria Canibal e ilustrações de José Pereira, Jornal Punkto sobre a Palestina, "Existenzgrunder" de Anna Klos, um fabuloso "In the End, it was the economy" da Ghost Editions, "O livro da Patrícia" da mesma editora e "RIP", colagens de Pedro Teixeira Neves da Paper View Books. Claro que me escusei de adquirir os 5 livros de António Alves Martins das Artes Breves edições, porque já os tinha! Nada como realmente.

sábado, maio 18, 2024

«Menez | Pomar, Cartas»

 

Documenta, Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar, 1ª ed. Outubro de 2022

A edição e apresentação desta publicação coube a Sara Antónia Matos e Pedro Faro. Não são cartas de amor ou de confissões mais ou menos privadas. Melhor dito: são também cartas de amor e privadas. É que este livrinho, em boa hora editado, circunspecto, em nada pedante, trata o processo de criação entre dois pintores consagrados como deve ser tratado: em jeito de confidência, vamos tomando nota das suas dificuldades e crises não só materiais, mas igualmente o terror da tela em branco, as interrupções nas séries temáticas, as impossibilidades várias que de tempos a tempos assolam a criação ou mesmo a destruição de telas, diria, por desespero. Que ninguém se iluda: se houvesse dúvidas que todo o acto criativo é também dor e isolamento, estas cartas, escritas entre 1979 e 1982, provam-no sem  qualquer apelo ou agravo. Mas, mostra, igualmente, a alegria e o contentamento de verem os seus quadros expostos, a tarefa terminada, ou já em vias de ser ultrapassada ou revista pelos próprios autores, muitas vezes em interrelação com os amigos.

Nestas cartas e postais (de Paris, Londres, do Báltico até ao Algarve e Lisboa) em que se revela um carinho e amizade profunda entre Menez e Pomar, lemos algumas confidências sobre galeristas, marchands, editores de catálogos, entrevistas, críticos. E aqui se vê, não sem algum incómodo como é difícil escrever sobre arte, ou sobre a obra criada (coloco a poesia neste saco). É até constrangedor ver como algumas figuras da nossa praça são tratadas pelas críticas que elaboram depois de se deslocarem a exposições «como se fossem a passar pelo Chiado», diz Menez. Mas mais do que isso: parece-me uma recusa, assumida quer por Menez, quer por Pomar, de ser interpretado por quem quer que seja. A tela está ali, o quadro chegou ao fim (processo que confessam ser um dos mais difíceis na criação da obra de arte), qualquer «apreciação» é votada a algum desprezo mais implícito do que explícito, excluindo um outro caso comentado ironicamente pelos dois.

Sobre o processo criativo, deixo um trecho de uma carta de Pomar a Menez que achei interessante de relevar aqui: 
«Porque falar não é mais que buscar companheiros - mesmo quando falas só por falar, por passatempo, buscas um eco de companhia nos que te cercam. E se exteriorizas meditações, se dás formas a pensamentos, ideias, sensações, é com o íntimo fito de ligar a ti os que, sentindo ou pensando do mesmo modo, não tiveram, ou não têm possibilidades de o fazer ainda. Falas, porque desejas que estejam contigo. Fazes um trabalho de ordem colectiva. Comunicas. E só do livre intercâmbio dessas comunicações poderá nascer caminho para qualquer real avanço.» (págs. 14 e 15)

Esta epistolografia também me obriga a levantar algumas questões que se colocam nos dias de hoje se entendermos a importância destas publicações. Hoje, já quase ninguém escreve cartas. O email é o mais usado, já para não falar nos SMS, ou WhatsApp. Valha-nos ainda algumas publicações digitais públicas ou os já antiquados Blogues, que ainda podem reter algumas indicações entre autores e criadores, ou mesmo trocas de opiniões entre eles. Espero que um dia se faça a história epistolográfica, principalmente através de emails, e que seja baseada na pesquisa digital, com a necessária autorização familiar, bem-entendido, como aliás aconteceu neste livrinho. Que muita coisa destas não se perca na nuvem.

segunda-feira, maio 13, 2024

«Planeta» e «De Humani Corporis Fabrica», José Ricardo Nunes

«De Humani Corporis Fabrica» e 
«Planeta», Fotos de Pedro Bernardo, Não Edições, Abril de 2024
«Talvez a poesia se assemelhe às prateleiras
dos supermercados e somente me caiba repor
quando as vejo vazias, por reflexo,
não porque tenha algo de importante a dizer,
imprescindível mesmo, tão implausível
que não possa deixar de ser dito.»

Para se gostar de poesia não é necessário gostar-se de toda a poesia. Não tem sentido. Como também não o terá se nos acantonarmos à impossibilidade da ditadura do gosto ou se não nos ativermos às emoções que a sua leitura produz. Emociono-me ao ler José Ricardo Nunes e com atrevimento posso declarar que é um poeta «meu». Não o perco. Volto a ele quando me encontro face às estantes de casa. Folheio os vários livros publicados com um critério e rigor que adivinhamos no início da leitura e que nos certificamos quando fechamos o seu livro que irá descansar uns tempos, porque parecem vivos. 

Não falarei sobre «De Humani Corporis Fabrica». A última Colóquio/Letras, número 216 de Maio a Agosto de 2024, cujo artigo de Miguel Martins está no site da não editores) analisou-o com detalhe o que me impede de o fazer aqui por manifesto reconhecimento das minhas dificuldades.

Já «Planeta» é um caso que me atrevo a dizer que é dos melhores livros de poesia portuguesa que li. José Ricardo Nunes não se amedronta com o universo, com o macrocosmos e «desce» rapidamente para o jornal, o café, os seixos dos rios, os corpos em ebulição ou na dor indizível atacado pela doença e a própria noção da poesia. 

«Dantes havia mais clareiras
mas então o teu corpo era apenas o teu corpo, não
também memória dele. E mesmo eu
desapareço agora quase por inteiro,
já nem sei onde meter ali o rosto.
Se der com ele é porque chegou ao fim
o tempo que nunca há-de chegar?»

Isto não é para qualquer um, principalmente quendo este exercício é realizado com inegável mestria que nos remete para uma fragilidade tão humana, quanto natural, mesmo que esta ideia se transforme num oxímoro.  Lá está o recurso a uma androginia (será uma página em branco?) e metamorfose magnífica chamando Bowie que surpreendentemente o liga ao poema deste modo ímpar.
Não vou colocar aqui poemas completos, mas sim versos, os tais que me emocionaram. Se quiserem os livros, encomendem-nos à Não Editores ou mandem vir pelas plataformas habituais. Ora vejam este extracto:

«Mas o meu Bowie não o das canções,
Rebel, Rebel, Life on Mars e por aí fora
até chegar a uma falésia e voltar
a não ver a escuridão do mar,
não é o camaleão do show business
que acreditava a cada passo ser diferente
e tanto acreditava nas sucessivas mutações
que todas haveriam de reter um pouco de verdade
que há numa página em branco.»

José Ricardo Nunes termina «Planeta» de uma forma magistral:

«Continuo a viver um dia único.
Já não acredito em nada.
Posso agora realmente acreditar 
que sou mesmo feliz. E não
escalei, não contornei
montanha nenhuma, não mudei
nenhuma montanha de lugar, nunca
dinamitei uma montanha, não
sei para que serve este rastilho.»

É o fogo que arde nestas páginas de «Planeta».

sábado, maio 11, 2024

«A Porta», Magda Szabó

 

Cavalo de Ferro, Março de 2024 (original de 1959). Tradução do húngaro de Ernesto Rodrigues
Magda Szabó é daquelas escritoras que foram estupidamente perseguidas pelo regime húngaro no pós II Guerra e cuja razão principal era o afastamento  das prioridades literárias do realismo socialista. Em 1949, deixa de escrever poesia e perdeu igualmente o emprego, retomando-o mais tarde quando os húngaros ficaram rendidos aos seus romances, entre os quais o belíssimo «A Porta», editado em 1959, e reconhecido em inúmeras línguas a partir de 1989. A Cavalo de Ferro tem mais títulos dela e a tradução foi efectuada directamente do húngaro por Ernesto Rodrigues. A linguagem de Szabó é límpida, aberta, magra de demasiados recursos literários. Ou seja, é extraordinária.

A narrativa surpreende-nos quer com as personagens, quer pelas situações por elas entrelaçadas. Emerence não é só a empregada de um casal de intelectuais húngaros, ambos relativamente bem na vida, é igualmente uma metáfora do inesperado, do que pode acontecer sem que demos por isso, numa sociedade aparentemente ordeira e em que as pessoas, também ordeiramente, como se fosse um processo burocrático, se suicidam sem razão aparente. E, não, isto deu para as sociedades do leste como também é metáfora para as ocidentais. O que releva deste romance são as relações sociais algo manietadas, duras, embora com a capa de uma suposta decência, seja ela protestante, católica ou das normas impostas por um estado social.

Há, portanto, várias perspectivas de nos encontrarmos com a narrativa de Magda Szabó neste «A Porta». É a inevitável decadência da pessoa, o esquecimento, o desmembramento gradual da personalidade, mas igualmente o sofrimento que causa quem ama e que está presente. Que quer estar presente, apesar das margens brancas da memória decadente. Emerence morreu com dignidade, porque, apesar do Estado Social burocratizado estar omnipresente na sua morte, quem a recolhe e a trata é a rede fina de vizinhos que se conjugam entre si. Uma rede a que o Estado nada pode fazer. Quanto à porta aludida no título só se descobre o que está para além dela, quando é aberta: velhos trapos e móveis que se desfazem ao toque humano. Entenda-se a metáfora do velho, do decadente, aqui também nas coisas materiais.

Não sei, como disseram alguns críticos por aqui, se é ou não um dos maiores romances do século XX, mas não me causa muitos problemas entendê-lo assim. Como também não concordo que a narrativa tenha como alvo o regime comunista húngaro só por si. Szabó tinha conhecimento claro do que se passava e passou depois da queda do Muro de Berlim, das contradições sociais do Ocidente. Morreu em 2007, com 90 anos, e nunca refutou, em entrevistas, e pelo que sei, o que aqui escrevo hoje.

terça-feira, maio 07, 2024

«Leviathan», Paul Auster

Asa, 2022. Tradução de José Vieira de Lima. Capa: Alex Gozblau
Paul Auster faleceu há muito pouco tempo. Eis um livro dele, de 1992, que nunca li. Penso que, mais do que qualquer homenagem completamente inútil, será uma forma boa de o lembrar como um grande escritor. Escreve como que para um filme e não se pense que isto é menorizá-lo. Há quem o faça muito bem, como é o caso dele. Provavelmente descobriu a pólvora e o sucesso, mas isso é outra conversa que não é para aqui chamada. Mas, mais do que isso, sabe bem do que fala e é um incomparável leitor de almas, atentíssimo às mensagens subliminares ou explícitas que as suas personagens transmitem neste romance. Acreditamos na verosimilhança de cada uma delas, mesmo que as situações sejam as mais inesperadas ou impossíveis. Com Paul Auster isso não acontece. Neste livro, neste romance de amor e morte, claramente novaiorquino, cremos, contudo, que ele tem medo da América, do que ela será capaz contra a democracia e liberdade que diz defender. Compromete-se e livra de qualquer recalcamento público todo aquele que se lhe opõe. Mesmo pela violência. Já devia ter lido «Leviathan» há uns tempos. Mas chegou a oportunidade que não recusei. Ainda bem. 

Unicórnios, Jornal Mapa 41

Ilustração para o Jornal Mapa 41
Artigo de L. Silva: «Startups: não é um ecossistema, é uma plantação»

 

quinta-feira, maio 02, 2024

«Tomás Nevinson», Javier Marías

Alfaguara, 2021. Tradução de Vasco Gato
«Tomás Nevinson» é uma personagem ambivalente. Não simpatizamos logo de início com ele, até pelo que faz. Trata-se de um agente secreto, um detective, por vezes mais espanhol, outras mais inglês, ex-estudante de Oxford, onde ainda se recrutam agentes do MI5, MI6 ou no caso de Espanha faz uns favores ao Cesid. 

O seu trabalho leva-o, pelos olhos do leitor, a vê-lo como uma espécie de sacana (no mínimo), que não vê a família e os filhos durante anos, para se esconder no Ulster e ter uma outra mulher que abandona junto com a pequena filha. E aproxima-se novamente da primeira por conveniência dos serviços secretos. Devem reconhecer o nome da sua primeira mulher: Berta Isla, que deu o nome ao romance homónimo. Não direi mais, porque sei o risco que corro, numa página de leitura nas redes sociais, a contar tudo, mas, no final, não poderemos deixar de lhe dar alguma razão. Recusa-se a matar (mais uma vez) porque se sente velho e reconhece que um acto de ódio já não condiz com a sua idade. Envelheceu: «Desde que tenho memória, pensei ódio, deitei-me com ódio no coração, sonhei ódio e acordei com ódio.»

Ódio contra aqueles que matam deliberadamente com ódio. Em atentados cegos, para matar inocentes, tão culpados como as estruturas militares e serviços secretos que nem se importam que eles continuem a matar porque lhes justificam a permanência e a «roupa suja» que lavam. Ou eliminam. Tomás Nevinson já deixou de ter ódio. É um empecilho. Torna-se inútil e age por si. Acabamos por simpatizar com o homem.

Deixo-vos com um seu pensamento que se lhe soltou quando, embora ateu, se dirigiu a uma igreja: «Não acreditamos, mas podemos ter o hábito de rezar, ou de murmurar, tanto faz. A quem? Não a Deus nem a nenhum santo ou virgem, a ninguém em particular, não é preciso destinatário para isso. Limitamo-nos a sussurrar com o pensamento: 'Por favor, por favor.' Ou: 'Ainda não, ainda não.' Ou até: 'Desculpa, desculpa.'Costuma haver silêncio nas igrejas; ou cânticos bonitos, se se tiver muita sorte; ou música de órgão, se ainda se tiver mais. Está-se bem lá...» 

Pergunto a quantos de nós, principalmente a ateus e agnósticos, não se sentiram bem dentro de uma igreja, em busca de silêncio e paz sem que nos dirigíssemos a alguém em particular. Quantos de nós encontram num simples exercício de leitura, o silêncio e a paz cada vez mais difícil de encontrar. Um livro muito bom, que seguimos com verdadeiro prazer de leitura. 

quarta-feira, maio 01, 2024

Carta Aberta a todos os jovens delinquentes

 

Sem referência ao autor. in blogue de Amanda Ferraz
Caros Jovens Delinquentes:
Nunca em tempo algum, sem que tivésseis aberto a boca, agísseis com as vossas costumadas maldades, dito seja o que for que levantasse o repúdio generalizado das gentes honestas, levassem as vossas proezas às primeiras páginas da CMTV ou do JN, eis que estivestes a ser referidos durante horas intermináveis, por todos os media, por vos quererem enviar para a tropa!
Creio-vos atónitos e sem palavras, como sói dizer-se agora. Castigo maior do que estar numa cela limpa, institucionalizada, liofilizada e (céus!) electrocutada é mandarem-vos para a tropa, pelo simples facto de serem simples delinquentes. Pois sim, limpastes vós umas carteiras, acometestes ao porta-moedas da avó, chapastes uma cabeçada a um tipo de outro clube, praticastes, pois, malfeitorias. Perguntais vós, nessa sanha castigadora dos agora ministros, quem foi (ou foram) os responsáveis da ideia peregrina de vos fardarem e irem para as casamatas, munidos de G3 e ensinados à luta corpo a corpo, como se não já a soubessem de antemão! Foi um delinquente ressabiado? Não. Esses não são delinquentes. São pessoas sérias que já viram de tudo e que sabem o que dizem. Já viram muito por esse mundo fora: comissões de vendas de submarinos alemães, assaltos aos paióis de quartéis, atrasos nas obras de quartéis antigos para receberem o guito primeiro. Mas esses não são delinquentes. Isso sois vós, seus bandalhos!
Também, as associações sindicais não vos quereis porque, entre outras, vós tendes de obter registo criminal limpo! É a vossa sorte. Continuai assim mesmo no conforto dos vossos lares improvisados pois um tanque não se guia como um carro ligeiro a fugir às autoridades, muito menos à noite. Acreditai que um submarino alemão, armas de paióis e falcatruas na construção de velhos quartéis, são muito mais fáceis de esconder.