sábado, maio 11, 2024

«A Porta», Magda Szabó

 

Cavalo de Ferro, Março de 2024 (original de 1959). Tradução do húngaro de Ernesto Rodrigues
Magda Szabó é daquelas escritoras que foram estupidamente perseguidas pelo regime húngaro no pós II Guerra e cuja razão principal era o afastamento  das prioridades literárias do realismo socialista. Em 1949, deixa de escrever poesia e perdeu igualmente o emprego, retomando-o mais tarde quando os húngaros ficaram rendidos aos seus romances, entre os quais o belíssimo «A Porta», editado em 1959, e reconhecido em inúmeras línguas a partir de 1989. A Cavalo de Ferro tem mais títulos dela e a tradução foi efectuada directamente do húngaro por Ernesto Rodrigues. A linguagem de Szabó é límpida, aberta, magra de demasiados recursos literários. Ou seja, é extraordinária.

A narrativa surpreende-nos quer com as personagens, quer pelas situações por elas entrelaçadas. Emerence não é só a empregada de um casal de intelectuais húngaros, ambos relativamente bem na vida, é igualmente uma metáfora do inesperado, do que pode acontecer sem que demos por isso, numa sociedade aparentemente ordeira e em que as pessoas, também ordeiramente, como se fosse um processo burocrático, se suicidam sem razão aparente. E, não, isto deu para as sociedades do leste como também é metáfora para as ocidentais. O que releva deste romance são as relações sociais algo manietadas, duras, embora com a capa de uma suposta decência, seja ela protestante, católica ou das normas impostas por um estado social.

Há, portanto, várias perspectivas de nos encontrarmos com a narrativa de Magda Szabó neste «A Porta». É a inevitável decadência da pessoa, o esquecimento, o desmembramento gradual da personalidade, mas igualmente o sofrimento que causa quem ama e que está presente. Que quer estar presente, apesar das margens brancas da memória decadente. Emerence morreu com dignidade, porque, apesar do Estado Social burocratizado estar omnipresente na sua morte, quem a recolhe e a trata é a rede fina de vizinhos que se conjugam entre si. Uma rede a que o Estado nada pode fazer. Quanto à porta aludida no título só se descobre o que está para além dela, quando é aberta: velhos trapos e móveis que se desfazem ao toque humano. Entenda-se a metáfora do velho, do decadente, aqui também nas coisas materiais.

Não sei, como disseram alguns críticos por aqui, se é ou não um dos maiores romances do século XX, mas não me causa muitos problemas entendê-lo assim. Como também não concordo que a narrativa tenha como alvo o regime comunista húngaro só por si. Szabó tinha conhecimento claro do que se passava e passou depois da queda do Muro de Berlim, das contradições sociais do Ocidente. Morreu em 2007, com 90 anos, e nunca refutou, em entrevistas, e pelo que sei, o que aqui escrevo hoje.