sexta-feira, maio 24, 2024

«Corpo Cru», João Damasceno


Tipografia Damasceno, 2024, Carimbo de desenho e assinatura do autor.
Ilustrações de João Fonte e João Damasceno (capa). Prefácio de João Maria André
Composição em tipos de Odete Paixão (mãe do João)
Ontem foi um dia estranho como são todos que nos levam a recordar um amigo que já não está entre nós há muito. Estive no Centro Cultural Penedo da Saudade, onde se fez a apresentação de mais uma edição de Corpo Cru, do João Damasceno. A 1ª edição foi pela Fenda em 1983. E é o irmão, o Rui Damasceno e a família próxima (ao contrário de muitos exemplos que conhecemos) que tratam do espólio que (nos) deixou quando da sua morte em 2010. Ainda lhe preservam em casa os poemas soltos. Em vida publicou, principalmente na Fenda de Vasco Santos, cinco livros: Corpo Cru, 1983; Cinco Suicídios, 1986; Alma Fria - Scketches Policiários, 1986; Retrato do Artista Quando Jovem aos Pés da Rainha Santa Isabel, 1989 e fora da Fenda, na Tipografia da família, editou-se Carta de Probabilidades de Erosão Celeste, 2015, este já póstumo, evidentemente.

Revi a biografia de João Damasceno pelas redes sociais e pelos blogues literários e, sinceramente, não vi nada que se aproximasse ao que ele foi realmente para quem o conheceu e que muitos (agora críticos) vociferavam contra as suas atitudes provocatórias de quem nunca se reviu numa cidade que iniciava então o seu percurso cultural mesquinho, de grupos de amizade e afinidades várias. Salvam-se alguns registos filmados por Rui Damasceno e outros, que lhe são fiéis, pela dicção, cadência e leituras impecáveis que estão à vossa disposição na net. O deserto que se aproximava era sentido por João Damasceno que contra ele, e por sua vez, utilizava não só a ironia, mas também o insulto, a provocação, a atitude diletante. Conheci-o a avançar para a sua fase mais autodestrutiva, como muitos de nós. Alguns pararam, outros foram-se embora daqui, muitos morreram, outros enlouqueceram, outros casaram e arranjaram emprego público ou privado, que para o caso tanto faz. O João, não. Ele era já incontrolável, optou pela comunicação com os outros através da poesia e será talvez caso único, em Coimbra, dos que levaram a poesia para dentro de si próprios. E isso paga-se caro em sítios assim. Ele vivia as palavras com poesia, eventualmente também no teatro. Assumiu a atitude poética no seu corpo e na sua totalidade crua. 

Hoje cantam-no, dramatizam-no, dizem-lhe os poemas. Alguns deles, bem. Mas sugere-se o início de uma biografia necessária de um antiautoritário, de um espírito livre, de um homem incontrolável que sabia amar. Ou seja, de um poeta inimitável. 

«Porque quisemos perguntar aos rostos os segredos:
fomos punidos, vagueámos...»

Corpo Cru, pág.54