sexta-feira, março 18, 2022

«Memórias da Plantação - Episódios de Racismo Quotidiano», de Grada Kilomba

 

Memórias da Plantação é uma edição da Orfeu Negro, 3ª edição de 2022

A 1ª edição deste livro é de 2019 e já vai na 3ª. Não me quero referir ao episódio já tristemente célebre da votação de um membro de um júri que a impediu que um seu trabalho pudesse estar presente num festival de cinema europeu, ou da entrevista ao Expresso que não li e cuja fotografia de capa onde figurava a foto exposta aqui de Grada Kilomba tenha sido truncada. Quer o caso da votação de um júri, quer essa foto truncada do Expresso só vieram dar razão a Grada Kilomba e à sua tese de doutoramento da Universidade de Berlim, cidade onde vive, sobre o racismo quotidiano.

Todo o pensamento radical é um pensamento útil. A inutilidade do pensamento mainstream, do «nem sim, nem não», do metafórico ou do pensamento moderado tende a morrer por si, a desaparecer rapidamente na voragem das sociedades dinâmicas. Esta é uma razão das crises das sociedades actuais no Ocidente e também no arrastar da (in)consciência racista que predomina na branquitude europeia.

Grada Kilomba tem já uma carreira sólida: trabalhos expostos nas Bienais de S.Paulo e de Berlim, na Documenta 14, no MAAT e na Gulbenkian, é igualmente professora na Universidade de Berlim onde se doutorou cum laude e no Departamento de Género da Humboldt Universität. Este livro creio que é uma adaptação da sua tese de doutoramento e baseia-se muito nos trabalhos de Frantz Fanon, bell hooks, Freud ou May Ayim, entre outros/as, mas que não lhe retira minimamente a sua original radicalidade e rigor conceptual.

Depois de apresentar-nos exemplos da linguagem como instrumento de poder, quer no caso do racismo, quer do género que, aliás, não separa, recorda-nos que o racismo do século XXI é bem diferente do racismo brutal e mais visível do século XIX e XX. Hoje, o racismo liquefez-se, torna-se escondido em palavras e atitudes aparentemente neutras. A desmontagem do racismo quotidiano é feito não só por Grada Kilomba, mas igualmente por entrevistas a Katlheen e a Alicia (nomes fictícios) de mulheres racializadas na Alemanha, sendo que a primeira é natural dos EUA e a segunda filha adoptiva de uma família branca.

Na pág. 39, Grada Kilomba abre o difícil jogo oculto do racismo através da psicanálise e citando Frantz Fanon: «(...) Os psicanalistas dizem que não há nada mais traumatizante para a criança do que o contacto com o racional. Pessoalmente, direi que, para um homem que só tem como arma a razão, não há nada mais neurótico do que o contacto com o irracional.» A autora, mais à frente, recorre ao étimo grego da palavra trauma como sendo uma ferida, um corte profundo na pele, que chega a ser dor física que aliás uma das entrevistadas disse sentir num episódio de racismo «leve» que experimentou na família branca e que a adoptou. Daí, na pág.44, Grada Kilomba propor ao indivíduo branco/a o seguinte: «Em vez de formular a habitual pergunta moral ''sou racista?'' e ficar à espera de uma resposta confortável, o sujeito branco deve antes perguntar ''como posso desmontar os meus próprios racismos?'', pois é a interrogação em si mesma que dá início ao processo.»

Esse processo terá de ser interiorizado pelo homem branco como factor, por vezes inconsciente, outras mais que consciente, das atitudes racistas para com pessoas racializadas principalmente as africanas (e mais à frente Grada Kilomba explica o porquê este ódio pelo africano, em vez do indiano ou do ameríndio do norte, por exemplo). Em «Pode a subalterna falar?» baseada na questão colocada por Gayatri C. Spivak (num livro também editado pela Orfeu Negro), a autora responde, tal como Spivak, com um rotundo «Não!». E mais adiante conclui retirando do exemplo académico: «Não é que não tenhamos falado, mas antes que as nossas vozes - por intermédio de um sistema de racismo - têm sido sistematicamente desqualificadas como conhecimento inválido; ou então têm sido representadas por pessoas brancas que, ironicamente, se tornam ''peritas'' em nós mesmas. Seja como for, fomos aprisionadas a uma ordem colonial violenta. Nesse sentido, a academia não é um espaço neutro nem mero espaço de conhecimento e sabedoria, de ciência e saber, é também espaço de v-i-o-l-ê-n-c-i-a.» 

Onde está a radicalidade do livro de Grada Kilomba? Começa pela própria definição do racismo de hoje. Resumindo, a autora caracteriza o racismo em três vertentes: 1) vê-o na construção da diferença. O/a negro/a é diferente, estabelecendo essa norma o branco. 2) Essas diferenças são constituídas em valores hierárquicos sendo construída e articulada «pelo estigma, pelo opóbrio e pela inferioridade.» Assim, o/a racializado/a é visto como «problemático, difícil, perigoso, preguiçoso, exótico, colorido ou incomum.» Esta construção da diferença produz o preconceito que se afirma de várias maneiras na sociedade ocidental, na chamada «Europa Fortaleza»; e essa fortaleza não se construiu por acaso; trata-se de recompor um espaço colonial perdido, substituindo-o pela expulsão do sujeito negro. 3) Todos estes processos são acompanhados pelo poder histórico, político, social e económico que consolidam a supremacia branca sobre o negro. E também pelo poder linguístico.

Surge então o que Grada Kilomba chama de «racismo quotidiano» que se revela pelo vocabulário, discursos, imagens, gestos, acções e olhares que posicionam o sujeito negro e as «pessoas racializadas não apenas como ''outras/os'' - a diferença contra a qual se mede o sujeito branco -, mas também como alteridade, ou seja, a personificação dos aspectos reprimidos pela sociedade branca.» Neste aspecto, o sujeito negro está reflectido em itens claramente racistas como a infantilização, a primitivização, a descivilização, a animalização e, inclusive, a erotização.

Grada Kilomba estabelece um debate sobre o género algo polémico, mas a quem não me custa dar-lhe a razão, principalmente pela coerência com que aponta o feminismo negro diferente do feminismo branco, adiantando que uma mulher negra tem não só de lutar contra o racismo, como igualmente pela condição de mulher livre e contra os estigmas com que são atingidas diariamente.

Não deixa de ser sintomático que um país cujo império colonial com todas as suas arbitrariedades, violências e atrocidades e que foi o último a cair, em 1974, ainda se rogue no direito de dizer que não é racista. E não é só a extrema-direita portuguesa que o diz, o que não deixa de ser um contrassenso vindo de quem vem. É comum dizer-se o mesmo sabendo, conscientemente, que é mentira. A questão das estátuas colonizadoras que povoam as nossas ruas e que foram alvo de tentativas de destruição originando uma onda de repúdio caseirinho são disso exemplo, mas igualmente pelo racismo cultural que se apodera das escolas e universidades impondo um qualquer direito à diferença que não é mais do que a imposição de uma lógica colonial branca de que não conseguimos sair. Provavelmente, faremos a catarse do nosso colonialismo interior e quotidiano tarde demais. 

Um livro obrigatório.

António Luís Catarino