terça-feira, março 22, 2022

«Comboios rigorosamente vigiados», de Bohumil Hrabal, ou de como se hipnotiza um tanque em movimento

 

Antígona, 2022
«(...) O meu avô não degenerou, saiu ao bisavô Lukás, era hipnotizador e trabalhava em pequenos circos, e toda a cidade via no seu hipnotismo a prova de que ele queria era passar a vida a mandriar. Mas em Março, quando os alemães atravessaram a nossa fronteira para ocupar todo o país e avançavam em direcção a Praga, o meu avô foi o único a ir ao encontro deles, o único a enfrentar os alemães como hipnotizador, para impedir, com a força do pensamento, que os tanques prosseguissem. O meu avô foi andando estrada fora com os olhos fixos no primeiro tanque, que encabeçava a guarda avançada daquelas tropas motorizadas. (págs. 10/11)». É evidente que o avô foi de imediato morto pelo soldado SS que comandava a coluna e as lagartas do tanque estraçalharam-lhe tão completamente que o desgraçado do neto Milós lá teve de ir pedir a cabeça do avô separada do corpo e enterrá-lo como um bom cristão.

Este livro de Bohumil Hrabal é um libelo contra a brutalidade da guerra, do seu não sentido, do horror que se lhe cola à pele, ao mesmo tempo que nos mostra a humanidade dos que a rodeiam e que vão aparecendo num cais de uma estação ferroviária checoslovaca ocupada pelos alemães; estes lutam na frente russa e os seus comboios, «rigorosamente vigiados», levam munições para a frente que se aproxima de Berlim, recuando pelo avanço dos russos. A personagem principal, Milós, morre sabotando com êxito um destes comboios, em luta com um soldado alemão que também encontra a morte. Aí está todo o horror da guerra: dois indivíduos que «num qualquer bar, em qualquer sítio» poderiam simpatizar um com o outro e beber uns copos, ferem-se aos tiros para acelerar a vinda da morte e acabar com o sofrimento lento que se vai apoderando deles. Pode parecer uma história demasiado linear, mas o autor é um dos que, poupando nos adjectivos e sendo parco nas palavras, consegue dar-nos uma visão pormenorizada, também apelando subtilmente à nossa intuição, das personagens que se movem naquela estação. E isso faz toda a diferença. Bohumil Hrabal é um escritor excepcional.

As sátiras de Bohumil Hrabal (1914-1997) já não são novas para nós. Já aqui foi referido no seu livro «Uma Solidão demasiado ruidosa» e na peça de teatro a que assisti no Porto pela Seiva Trupe «Eu, que servi o Rei de Inglaterra». Delas fui registando as minhas impressões. Positivas.