quarta-feira, março 30, 2022

« A Amiga Genial », Elena Ferrante

 

Relógio D'Água, 1ª ed. 2014, 10ª ed. 2022

Escrevo estas notas sem ter lido nada sobre Elena Ferrante. Sei que é um pseudónimo de alguém que não se quis identificar e que escreve torrencialmente e bem. Para mim isso basta. Não acredito que ter escondido o seu nome e recusado a dar qualquer entrevista (creio que até hoje) tenha sido uma montagem publicitária. Da sua editora não digo nada, mas dela não acredito, visto que descobrir quem era num mundo de vigilância capitalista era uma questão de tempo, o que tornava o exercício de Elena Ferrante completamente pueril. O que me leva a dizer isto? Basta ler o que escreve e como escreve. O modo desprendido, autobiográfico, frontal, quase brutal, com que nos conta as suas memórias não se enquadra numa pessoa sôfrega de popularidade e de dinheiro. E foi o dinheiro dos direitos de autor que estavam publicados no relatório de contas da editora que se descobriu, paradoxalmente, quem ela era.

Estamos nos finais dos anos 50 em Nápoles, numa cidade com feridas abertas da guerra e do fascismo, e onde duas miúdas crescem num bairro pobre, onde se cruzam proletários, pequenos comerciantes em busca de algum lugar ao sol numa Itália a sair da miséria e camorristas. Pode-se contar pelos dedos das mãos as vezes que Elena Ferrante, em todo o seu livro, recorre ao nome de Camorra, mas ela está lá, exerce o seu poder real, nas relações que estabelece com todo o bairro napolitano. De um modo ou de outro, as duas jovens Elena e Lina (Lila) desenham uma amizade que perdura em todo o livro. O que é estranho é que não existe na narrativa uma vontade férrea de sair do bairro onde se confrontam todos os tipos de violências. A ténue possibilidade de mobilidade social vem com a escola, ler, escrever, contar, conhecer línguas que permitam não propriamente fugir dali para fora, mas controlar o que há de mais podre nas relações sociais sempre tensas e prontas a explodir. Um dos trechos mais significativos do que acabei de escrever vem pela voz de Lila, em dialecto napolitano a uma invectiva de Elena (Lenù) para voltar ao estudo:

«(...) Tu ainda perdes tempo com essas coisas Lenù? Nós andamos a voar sobre uma bola de fogo. A parte que arrefeceu flutua sobre a lava. Nessa parte construímos edifícios, as pontes e as estradas. De tempos a tempos a lava sai do Vesúvio, ou então provoca um terremoto que destrói tudo. Há micróbios por todo o lado, que nos fazem adoecer e morrer. Há guerras. Há por aí uma miséria que nos torna a todos cruéis. A cada segundo pode acontecer qualquer coisa que nos faz sofrer de tal modo, que não há lágrimas que cheguem. E tu o que fazes?  Um curso de Teologia em que te esforças por compreender o que é o Espírito Santo?» Mais tarde Elena vai escrever uma dura discussão com o professor de Teologia que a expulsa da aula e cujo resumo escrito do acontecimento irá ser publicado por uma revista comunista de Nino Sarratore.

Mas o livro é muito mais do que isso, como é evidente. O próprio crescimento de duas jovens que querem ser livres e encontram caminhos barrados pela tradição napolitana e por múltiplas barreiras de índole social, intelectual e sexista é descrito de uma forma pouco experimentada em literatura. Isto porque o leitor intui a verdade, a realidade, que está por detrás dessas experiências muitas delas traumáticas. No fundo, acabando o livro, fechando-o e pensando quando se atreve a continuar a saga aberta por este «A Amiga Genial» poderá rever a sua própria experiência; a Nápoles de 1959, liberta da guerra e do fascismo não é assim tão diferente do Portugal desses anos que se preparava para uma longa guerra de 13 anos e que continuava com o fascismo caseirinho e mesquinho. Mas quotidianamente violento, sem dúvida. Sem camorra, mas com bufos, a Pide, a Legião e um machismo quase sempre brutal que emergia a todas as horas, em todos os lugares. Basta que a memória não nos traia e nos conduza aos anos 60, éramos nós ainda miúdos. E há coisas que não se esquecem nunca. Acabo com uma exclamação significativa de Lenù em diálogo com a sua antiga professora Oliviero:

«''Sabes o que é a plebe?'' ''Sim, professora.'' Naquele momento eu soube o que era a plebe, com muito mais precisão do que quando, anos antes, ela mo perguntava. A plebe éramos nós. A plebe era aquela que luta por comida e vinho, aquela altercação sobre quem é que devia ser servido primeiro e melhor, aquele chão sujo que os criados de mesa pisavam para a frente e para trás, aqueles brindes cada vez mais ordinários. A plebe era a minha mãe, que tinha bebido e agora estava encostada ao ombro do meu pai, que estava sério, e ria-se, de boca escancarada, das alusões sexuais do comerciante de metais.»