domingo, dezembro 12, 2010

Um punhado de Terra, monólogo de Pedro Eiras


[...] Corri com meu filho mais pequeno nos braços

eu corria depressa
criador!
Olhei a praia
cheia de sangue ondas do mar misturadas com sangue
espuma das ondas com feridas de sangue
E homens secos levavam para batéis os nossos homens
Riam alto
Não socorriam homens mulheres velhos
morriam devagar na areia
sob o sol forte
e passavam por eles lhes batiam com pés nas bocas
Portugal!
São Jorge!
Santiago!
Corri com meu filho
coração queimado
encontrei minha mulher junto a nossas casas
homens secos tinham-nos perseguido
agarravam homens adultos
Se não encontravam homens adultos
agarravam mulheres
crianças
todos levavam a grande barco na praia
Uns se defendiam com coragem Eram mortos
unhas e dentes para se defenderem
mortos com espadas de ferro
Não tinham com que se defender nunca tinham feito mal a ninguém
Vi com meus olhos homens secos cortarem cabeça de rapaz
pegaram na cabeça do rapaz que tinha lutado
riam alto urravam dizeres em sua língua
atirando cabeça para o chão
e atirando cabeça do rapaz
com os pés
Mesmo que tivéssemos azagaias guardadas
não havia tempo de ir buscar
Homens secos agarravam quem queriam
Mulher defendeu-se tão feramente
não lhe conseguiam tocar
Mas encontraram filho pequeno levaram-no
mãe viu lhe levavam filho pequeno
baixou braços e cabeça
seguiu calada com homens secos ao grande barco de madeira
Encontrei minha mulher Minha mulher disse
foge
escondi nossos filhos sob os limos
corre depressa como leão
foge para a montanha
quando homens maus se forem
volta e encontra nossos filhos escondidos
Eu tinha nosso filho mais pequeno nas mãos Eu disse
foge comigo
mas ela empurrava-me gritava
foge
foge
Vi ela tinha perna desfeita em massa de sangue
Lembrei-me quando
minha mulher nadava entre flores das águas que passam
seus cabelos fogo sob o sol
Mulher tão negra
dançava e vinha a mim como rainha
Tinha perna desfeita em sangue
perna partida desfeita em sangue
Lembrava seus ombros montanhas negras de luz
ancas cobertas só de vento
Levei meu filho mais pequeno nos braços
corri às montanhas
havia outros homens outras mulheres Corriam
grande queimadura nos corações
Lembrava minha mulher
meus filhos escondidos sob os limos
Mas
os homens secos chegaram a nós
Ó criador
tu vês tudo!
Quis defender meu filho
agarrei
gritei
três homens me agarraram outro agarrou meu filho
levantou meu filho no ar
atirou meu filho contra rocha
meu filho flor de sangue
Mordi homens
outros bateram-me
caí no chão [...]

Pedro Eiras, Um Punhado de Terra