segunda-feira, dezembro 27, 2010

DIÁRIO À NOITE SUPOSTA , Filipa Leal



DIÁRIO À NOITE SUPOSTA



(Primeiro dia)

Lembro- me bem: este poema começava a falar de uma estrela.
Era uma estrela no início da imagem. Uma estrela a fugir-me da possibilidade
do verso, a fugir- me do íntimo conforto em que a tinha. Estrela a ferir-se nas mãos,
a ferir-me nos olhos, estrela.

(Primeiro dia)

Disseste: Vou escrever um livro para te esquecer.
Para te encerrar como um assunto.
Para te matar.

Lembro-me bem: disseste exactamente o contrário
mas hoje custa- me acreditar nisso.

Disseste que nele contarias o nosso amor
porque a literatura tem esta presunção de eternidade
e depois deixaste-me e eujá não me lembro bem por quê.

(Primeiro dia)

Eu não tinha estrutura, não tinha claridade.
Eu não tinha holofotes que chegassem, braços que chegassem.

Eu não tinha luz.

Uma estrela,já se sabe, precisa de luz. Alimenta-se da sua circunferência,
do seu tom periférico. Uma estrela precisa de iluminar.
Foi isso. Foi a minha noite. Foi a minha falta de jeito.

(Primeiro dia)

Disseste: Vou escrever um livro para continuar.
Para continuar sem ti.
Foi isso que disseste?

(Primeiro dia)

O que eu queria mesmo era escrever para me salvar.
Para não ter medo.
Para te perder melhor.


Filipa Leal, O Problema de Ser Norte