sexta-feira, setembro 11, 2009

Que têm os fueguinos de mal?

Alguns fueguinos
Tenho pensado muito nisto. Não há ninguém que simpatize com eles? Os fueguinos, ao que me dizem, foram extintos, dizimados. Hoje, não existe nenhum, mas isso não impede o comum dos mortais, e mesmo de alguns dos imortais que foram eleitos pela ciência, de os escalpelizar com impropérios e maledicências que a antropologia já desconsiderou há muito. Além disso é feio dizer-se mal de quem já cá não está para se defender, não é? Outra das razões que me incomoda neste caso.

Tive ocasião, desde Junho deste ano, de ler os seguintes livros seguidos: Magalhães de Stephan Zweig, A Viagem do Beagle de Charles Darwin, As Aventura de Gordon Pym de Nantucket de Edgar Allan Poe e, por fim, reli Navegador Solitário de Joshua Slocum. Pois o que os une? O ódio visceral ao fueguinos, os antigos habitantes da Terra do Fogo! Não vou falar sequer de Slocum cuja arte de boa navegação à vela é inversamente proporcional ao seu carácter cívico: o tipo é um racista do piorio, tendo inclusive matado dois deles a tiro (isto em 1885!) e não ter mostrado o mínimo arrependimento! Eram fueguinos, pois... Allan Poe deveria estar com febre quando escreve sobre eles na parte final do livro em que Arthur sobrevive na Terra do Fogo e os seus habitantes (iguaizinhos aos fueguinos, pois então) são portadores de um carácter cobarde, vil e dissimulado que os faz resistir a... tiro, claro, para poderem sair da ilha incólumes e não serem comidos por estes. Por acaso, no mesmo romance, para quem está lembrado, Arthur sobrevive por que come literalmente um seu companheiro (tirado à sorte) num naufrágio, mas não era fueguino... pelo que estará desculpado!

Magalhães é o mais antigo de todos, reconheçamo-lo, mas mesmo assim por causa de um erro de navegação e de cálculo básico sobre o período invernoso naquelas paragens do sul, teve de ancorar na Terra do Fogo durante uns dois ou três meses, chamando-lhe Puerto de la Hambre e dando instruções claras à sua tripulação (isto sempre segundo Zweig) de não maltratar os seus habitantes que não largavam as naus. Claro que tiveram de matar alguns porque se estavam a aproximar demais dos barcos. Chatices... que não o impediram de abandonar à sua sorte dois nobres que conspiravam contra ele naquelas agradáveis paragens e junto a uma população assumidamente canibal. Claro que nunca mais se teve notícias dos dois desgraçados, mas era para ter? Poderíamos dizer que o canibalismo não colhe muita simpatia aqui pelo ocidente, mas os maoris também o eram e nem por isso deixámos de gostar deles, das suas tatuagens e imitarmo-los nas suas danças guerreiras nos desafios de raguebi. Aos fueguinos ninguém imita nada!

Todos este livros citam os fueguinos
Vou deixar para o fim Darwin, cuja simpatia por ele não escondo. Cinco anos esteve aquele cientista por todas as paragens que se pode imaginar contando histórias incríveis do Beagle (cuja vida a bordo não descreve muito), tendo embirrado abundantemente com duas regiões: o Brasil, mais os seus habitantes que chamava de brutos e esclavagistas, e isto no século XIX não esqueçamos, e quem mais?, com A Terra do Fogo!
Fala dos seus habitantes de um modo que custa a ouvir a um cientista daquela craveira, mas ele não se inibe: diz que são sujos, de feições monstruosas, lábios carnudos, cabelos desgrenhados, unhas sujas e compridas, parcamente vestidos, sem moral, cobardes, violentos para com as suas mulheres e crianças, canibais... ainda por cima das mais idosas que eles sufocavam no fumo das fogueiras e que se refastelavam com partes do seu corpo nas ocasiões de fome. Parece-me que foi o que mais agradável que Darwin disse deles - que comiam os seus anciãos, mas em ocasiões de penúria alimentar, estilo «pá, desculpa lá qualquer coisinha..mas tenho uma larica do caraças.. 'tás a ver aquela fogueira? Olha vem daí comigo...»
Pelos vistos Darwin só gostou dos bicos dos tentilhões, dos gaúchos argentinos (mais do que dos guachos chilenos, diga-se) dos lacraus da Tasmânia e dos dragões de Comodo. O que têm os fueguinos de tão mau? Fora isso, o que me traz ensimesmado com a sorte dos habitantes da Terra do Fogo, os livros são de ler e reler (Relógio de Água e Assírio & Alvim). Quanto a Slocum, se não gostar de vela não perde nada... (este é da Europa-América). O tipo diz mal de tudo e todos, menos dos anglo-saxónicos, só fala de si, e não lhe perdoo ter inventado uma tentativa de corrupção nos Açores que nunca aconteceu e não saber fazer contas: Então, ò Slocum, o Vasco da Gama partiu para a Índia no ano seguinte à viagem de Bartolomeu Dias? Bastava ir a uma enciclopédia americana...mediana.