sábado, fevereiro 22, 2025

«Kallocaína», Karin Boye

Penguin Clássicos, 2025. Introdução de David McDuff. Tradução de Ivan Figueiras
Ainda estou por perceber qual a razão que levou a editora, depois de declarar a protecção da propriedade intelectual e dos direitos de autor, a colocar-lhe um sub-título completamente abusivo, até melhor explicação, de «Romance do século XXI»! 

Trata-se de uma distopia, de um livro inquietante, escrito em 1940, portanto antes dos conhecidos «1984», de Orwell e de «Fahrenheit 451» de Bradbury, mas após os incontornáveis «Admirável Mundo Novo», de Huxley, «Nós», de Zamiatine ou as obras futuristas de H.G.Wells, entre muitos outros que viveram o período entre as duas guerras mundiais, o que se deverá compreender facilmente com a ascensão do nazismo, do fascismo e dos processos de Moscovo liderados por Estaline que desvirtuaram a tentativa libertária da revolução russa. Todas as razões para perspectivar um futuro sombrio.

É um livro notável que nos remete para a construção de um totalitarismo que poderia ter saído da II Guerra Mundial. Mesmo com o nazi-fascismo derrotado (repete-se que «Kallocaína», foi escrito em 1940, ano de todas as vitórias alemãs sobre os aliados e o início da invasão da URSS) no final da guerra a tentativa de controlo do indivíduo pelos governos e pelos serviços secretos democráticos era uma realidade próxima e que a Guerra Fria veio acentuar e tornando-se quer numa realidade «democrática» ocidental, quer «burocrática» de leste.

A kallocaína seria um soro da verdade que quando injectado num inimigo capturado, preso, suspeito de resistência contra o Estado, ou o que quer que seja, - Kall, o inventor, usa-o na mulher para se certificar que não tem uma relação sexual com um seu colega resistente e que é condenado à morte, denunciado por ele - os fazem dizer toda a verdade contra a sua vontade e denunciar todos os seus companheiros, organismos oponentes e todos os que moral e eticamente se separam das directrizes do Estado. Uma tortura limpa, portanto; sem sangue ou violências escusadas, primitivas e cansativas. Talvez o que Elon Musk nos reserve com o seu programa Neuralink que adivinha através da computação e IA o pensamento dos simples mortais como nós que têm veleidades a, imaginem, pensar criticamente! Não que não houvesse tentativas anteriores como a administração lesiva de LSD e outras drogas químicas pela CIA, ditaduras sul-americanas e serviços secretos do leste a prisioneiros, mas a questão era e foi sempre jurídica: não se aceitavam confissões sob o efeito comprovado dessas drogas, anulando ou minorando as penas aplicadas. Agora pergunto-vos: haverá algum travão a que esse tipo de tortura se torne juridicamente aceite nos EUA de Trump e após Guantanamo? Bem me parecia que a vossa resposta não foi tão imediata quanto se pretendia, se me permitem a ousadia de tentar adivinhá-la. 

Karin Boye previu tudo isto, tal como o Estado todo-poderoso totalitário, a alienação total das massas, a credulidade em fés messiânicas, a violência da denúncia de colegas de trabalho ou de membros da família, de comportamentos considerados desviantes, o estado de guerra permanente contra inimigos imaginários ou como forma de fortalecer os Estados, como aliás se passa hoje. Bem o sabemos e não será necessário procurar muitos exemplos. «Kallocaína» também prevê a Resistência. Ela durará enquanto o Estado totalitário existir com todas as suas violências. Isso será a única certeza que Karin Boye teve e que aqueles que conhecem a luta contra a discricionaridade o sabem igualmente em todo o mundo. A autora assistiu, em Berlim e em 1938, a um comício em que o orador era Göering. A alienação e o ethos de morte era de tal ordem que, no fim, levantou o braço em saudação nazi, sabendo que correria o risco de ser linchada pela multidão se não o fizesse. Suicidou-se na Suécia em 1941, o que me leva a pensar que a maioria dos autores distópicos acabam na sua maioria assim. Ou por suicídio, ou por doenças evitáveis devido a abusos de toda a ordem. 

«(...) Nestas situações, vai ser bom ter a minha Kallocaína à disposição. Com ela, poder-se-á prever e prevenir muitas atrocidades que agora acontecem de um momento para o outro sem que as tenhamos visto chegar...
 - Desde que apanhemos as pessoas certas. O que também não é assim tão fácil. Não está a insinuar que toda a gente deva ser examinada, pois não?
 - Porque não? Porque não toda a gente? Eu sei que é um sonho futurista, mas ainda assim! Prevejo um tempo em que ninguém será colocado num posto sem primeiro ser submetido a um teste de Kallocaína, de forma tão natural como agora se é submetido aos testes psicotécnicos. Assim, serão do conhecimento público não só a competência profissional da pessoa em questão, como também o seu valor como camarada soldado. Eu imaginaria até um exame anual de Kallocaína obrigatório para cada camarada soldado...
 - Os seus planos para o futuro não são nada modestos. - Mas seria necessário um dispositivo demasiado grande.
 - Tem toda a razão, chefe, seria necessário um dispositivo demasiado grande. Exigiria uma grande entidade inteiramente nova com uma multidão de funcionários, todos eles retirados da presente organização militar e de produção. (...)» (págs.114,115, ee)

segunda-feira, fevereiro 17, 2025

«Um Circo que Passa», Patrick Modiano

 

D. Quixote, 1994. Tradução de Ana Cristina Costa
Há escritores assim, que nunca os abandonamos e temos razões de sobra para o fazer. «Um Circo que Passa», de Patrick Modiano é um livro em suspensão, daqueles em que assoma um mistério em cada página, obrigando-nos a um diálogo constante com as situações e com as personagens que as criam na esperança, por vezes desconcertante, de as adivinharmos ou aproximarmo-nos da lógica interior de dois jovens que deambulam por uma Paris dos finais dos 50, início dos 60. Ela, de 21 anos, ele um adolescente considerado ainda menor. Não se sabe por que razão, logo no início, são interrogados pela polícia, nem como, mais tarde, se deixam envolver no que parece ser um crime. É uma cidade que nada terá de parecido com a Paris de hoje, também ela invadida por turistas, por preços impraticáveis e por vigilância electrónica, mas que nos provoca uma nostalgia, talvez contraditória, onde encontrávamos quer o perigo, quer a surpresa do encontro inesperado, ou os cafés a abarrotar de gente, o cheiro a café torrado, a profusão de bebidas alcoólicas e fumo de tabaco a rodos. A deriva destes jovens é feita aleatoriamente, com o objectivo último de chegar a Roma, embora nunca saindo de Paris. E, sim, apaixonam-se em quatro dias intensos (quem nunca?), descritos por Modiano com palavras de filigrana. O fim poderá não ser o esperado pelo leitor, mas acreditem que as pessoas nesta época eram muito menos perigosas do que as de hoje, mesmo perpetrando os acostumados crimes de uma grande cidade. Pelo menos os seus habitantes não estavam cercados por uma polícia cada vez mais brutal e máfias de crime organizado em que tudo vale. Tanto uns como outros não lhes conhecemos nem a cara e nem os nomes. Acossados, para lembrar o filme de Godard, Gisèle e Jean viveram a sua vida, deambulando e seguindo os seus instintos, tendo à sua mercê um destino que ainda lhes permitem seguir como uma segunda possibilidade. 

Não pertenço e creio que nunca pertencerei a movimentos como «Mais vida, menos écrans». Por mim, trata-se de uma guerra perdida. Mas uma parte da nostalgia provocada pela leitura deste livro chegou-me através da ausência de qualquer tipo de comunicação que não fosse o telefone público e o jornal. Também o automóvel, claro. A esplanada e o café onde a conversa poderia aparecer e fluir com desconhecidos. Hoje o mundo é muito mais perigoso, porque previsível, demasiado previsível pela impossibilidade de comunicação, de saber do outro que está ao nosso lado colado a um écran, teclando, sorrindo ou chorando para um avatar, falando para si próprio na rua com uns phones pendurados. A deriva é sempre feita entre locais predestinados, contando-se os passos medidos em gps. Durante a leitura de «Um Circo que Passa» não deixei de achar estranho lembrar-me que a abertura e ignição de um automóvel só poderia ser efectuada simplesmente com uma chave de aço. Uma pessoa, termina a leitura de um livro de Patrick Modiano e sente que alguma coisa se perdeu nas interrelações humanas trocando-as pela fraude tecnológica das «comunicações digitais». 

domingo, fevereiro 16, 2025

«Baumgartner», Paul Auster

 

Asa, 2023. Tradução de Francisco Agarez
Este foi o último livro de Paul Auster, o que não quer dizer que seja uma afirmação taxativa. Com Auster nunca se sabe e tendo falecido em 2024, com um cancro, pode ter tido tempo de nos apanhar com mais surpresas tenham elas a forma que tiverem. Imaginem mesmo a existência póstuma de um nova obra. Até porque «Baumgartner» é propositadamente um livro algo incompleto como toda a nossa vida o é. E trata-se mesmo de uma existência, a dele, Paul Auster, cujo alter ego é o de Baumgartner, um professor universitário que sente a finitude física e mental, o fim próximo, desnovelando todas as memórias que possa ainda ter de uma mulher ausente por um desastre estúpido e que teima em estar sempre presente. A rotina vai salvando-o e as expectativas são ainda construídas tendo quase a certeza de que não passarão disso mesmo. Os entusiasmos têm tanto de efémeros como de inverosímeis, mas mesmo assim constrói-os como se fossem as únicas tábuas de salvação a existirem. 

Escritos sobre a finitude lembro-me logo, sem procurar muito, de Séneca, de Schopenhauer, de Saramago, de Levi, de Günter Grass e, mesmo que só de memória, ainda bem que não encontramos um denominador comum sobre a decadência e a morte. Que ela vem é algo que soa como única verdade e nas linhas escritas por Paul Auster encontramos, confortavelmente, o sublime e, por paradoxal que possa parecer, a alegria de viver. De ter estado aqui connosco, mesmo com os dissabores e contrariedades que obriga a qualquer vida. E não é só a vida despida dos outros. É a que é igualmente preenchida pela vertente social e política, aquela que vale a pena ser vivida. Não deixamos de sublinhar o novaiorquino desiludido com o movimento MAGA que vai levar Trump ao poder e que, talvez felizmente, a morte o poupou de ver. Paul Auster, chama-o de «Ubu», analisando o seu primeiro mandato. Travei a minha leitura quando ele o designou assim: gostei demasiado do Ubu de Jarry, o único rei que me obrigaria a ser monárquico, para aceitar a comparação a Trump, mas acabei por concordar porque esta veio de Paul Auster e creio mesmo que os primeiros decretos de Trump se assemelham aos ubuescos decretos do seu primeiro reinado. O maior problema é que não nos rimos. Mas afastamo-nos (ou não) do cerne deste livro notável. Fixei-me em notas de rodapé. Não tendo sido os únicos, longe disso, deixo-vos com dois trechos de Baumgartner dos que mais me impressionaram:

«Para começar, conclui que chegou o momento de se reformar. Retirar-se-á das funções docentes ativas e assumirá a posição venerável, ainda que insignificante, de professor emérito, deixando o seu lugar no departamento para sangue novo na geração seguinte. Entregar-se-á ao descanso, mas não ao exílio permanente, uma vez que lhe será dada a possibilidade de manter a ligação à universidade, com todos os privilégios de acesso à biblioteca e o direito de continuar a usar o seu endereço de email de Princeton. As suas muitas amizades com colegas de vários departamentos manter-se-ão como dantes, e continuará a assistir a conferências, debates e reuniões informais se e quando o espírito lho pedir, mas todos os aspectos penosos da sua profissão desaparecerão repentina e felizmente: acabam-se as insuportáveis reuniões de comité, as barganhas com alunos insatisfeitos com as notas, as tretas burocráticas. Por outras palavras, uma vida independente, livre - com um rendimento mensal da reforma que será praticamente igual, se não ligeiramente superior, ao do ordenado que ganhava quando estava no ativo. Um novo livro vem tomando forma dentro da sua cabeça nos últimos meses, um projeto estranho, excêntrico, que é diferente de tudo quanto experimentou até agora, um discurso sério-cómico, quase ficcional, sobre o eu em relação com os outros eus, chamo Os Mistérios do Volante, e quer dedicar-lhe o máximo de tempo possível, porque agora o tempo é essencial, e não faz ideia de quanto lhe resta. (...)» (pág.114). 

O acesso a uma biblioteca, o fim das reuniões insuportáveis, o tempo livre, o que lhe resta. E este:

«Não há nada a fazer, pensa, absolutamente nada. A perda de memória de curto prazo é uma parte inevitável do envelhecimento, e, se não for esquecermo-nos de correr o fecho das calças é percorrermos a casa à procura dos óculos com os óculos na mão, ou descermos o rés do chão para cumprir duas pequenas tarefas, ir à sala de estar buscar um livro e à cozinha encher um copo de sumo, e regressar ao primeiro andar com o livro mas sem o sumo, ou com o sumo mas sem o livro, ou sem um nem o outro porque houve alguma coisa no rés do chão que nos distraiu e voltámos para cima de mãos a abanar, esquecidos da razão que nos havia levado ao andar de baixo. (...)» (pág.184)

A isto, antes, chamava-se senilidade, agora chama-se demência. Para qualquer dos efeitos ainda estaremos todos longe, até porque quando vier não daremos por isso. 
Um livro notável, que termina de uma forma abrupta, desconcertante, inesperada. 
Este, é para ter na estante.

quarta-feira, fevereiro 12, 2025

«A Flor Cadáver e Outros Poemas», Jorge Sousa Braga

 

Assírio & Alvim, 2024
O último livro de poemas de Jorge Sousa Braga. Ao abri-lo, as epígrafes esclarecedoras de Samuel Beckett,
«When you're in the shit up to your neck,
there's nothing left to do but sing.»
e de Artaud,
«Là où ça sent la merde ça sent l'être.»

O jogo da poesia está aberto e o tema aponta-nos à leitura e ao pensamento absorto nos excrementos de que somos feitos e que reconhecemos a toda (toda, sem excepção) a actividade humana. Queira ou não se queira a merda acompanha-nos, omnipresente, e tenho dúvidas se igualmente omnisciente. Porque omnipotente já o é, embora eu não explique aqui o porquê. Basta olhar em volta. De resto, os profetas são chamados para aqui: desde um profeta que pedia para não utilizar a mão direita quando se fizessem as necessidades, ou outro, o inenarrável S. Paulo que, em epístola, clamava que o caminho até às estrelas está pejado de merda ou, o mais provável, o facto comprovado que Jesus Cristo comia e bebia e não defecava. Porque defecar menoriza quem o pratica. Ou transformar coprólitos humanos em alimentação como prática de mortificação por Santa Maria de Alacoque, beatificada por Bento XVI!
Lembro-me, em 1969, miúdo, no café onde acompanhava o meu pai, toda a gente se rir de um professor do Técnico (não direi o nome, mas o caso foi conhecido e comentado em anedotário) que duvidava da alunagem dos americanos, em Julho, porque a nave era pequena demais para suportar os excrementos dos astronautas; tal como na semana que passou li, num diário de referência, que um professor canadiano de uma empresa suíça (seriíssimos, portanto) informava o excelso público da descoberta de pílulas de excrementos humanos saudáveis, para combater as infecções intestinais. O excremento salva-nos tal como o que é transformado em objecto poético. Jorge Sousa Braga escreve, logo a abrir o livro, um texto lindíssimo sobre as propriedades da Flor Cadáver, Titan Arum, e avisa-nos, num dos seus Haikus, cauto e conhecedor do que é capaz a humanidade que:
«Nem todos
são capazes de ler
a merda» 
(pág.22)

De resto, deixo-vos não sem alguma comoção de quem já pouco espera da única certeza (pouco cartesiana) que temos, com um poema brilhante, De(composição), de Jorge Sousa Braga difícil de esquecer por quem leu este livro notável:

«Quando o sangue deixa de circular sobrevém o frio. Depois instala-se o rigor mortis primeiro nas pálpebras no queixo e no pescoço. Os músculos ficam rígidos e as articulações presas. Posteriormente as bactérias intestinais entram em acção e a pele destaca-se dos tecidos subjacentes. O corpo começa a libertar gases e os tecidos a liquefazerem-se. É a vez das moscas e das suas larvas e de outros predadores intervirem. Até que restam apenas os ossos...

Algures durante este processo uma borboleta abandona o cadáver, sacode as asas brancas e desaparece entre as folhas das árvores.»
(pág.44)

Será esta a razão pela qual ainda mantenho dúvidas sobre a incineração?

segunda-feira, fevereiro 10, 2025

«Sonechka», Ludmila Ulitskaya

Cavalo de Ferro, 2022. (Não segue o AO90). Tradução de Larissa Shotropa
Capacidade de síntese notável, mas pouco entusiasmante como leitura. Anos a fio da vida de uma família russa durante o regime soviético e principalmente de uma mulher, Sonechka, bibliotecária que amava os livros mas que as circunstâncias fizeram dela apenas uma submissa dona de casa. Culpados? Subentende-se que a URSS. 

«Durante vinte anos, dos sete aos vinte e sete, Sonechka leu sem parar. Quando lia, entrava num estado de transe, que terminava com a última página do livro.
Tinha um talento excepcional para a leitura e, talvez, até uma espécie de génio. A sua sensibilidade para a palavra escrita era tão grande que as personagens inventadas estavam em pé de igualdade com as pessoas de carne e osso, que lhe eram próximas. Para ela, o sofrimento sereno de Natasha Rostova à cabeceira do moribundo conde Andrei era tão autêntico como a dor lancinante da sua irmã mais velha, que perdera a filha de quatro anos por um descuido estúpido: tendo ficado na tagarelice com a vizinha, não reparou que a filha, de olhos lentos, gorducha e desajeitada, se deixara cair para dentro do poço.» 
Esta comparação entre a morte do Conde Andrei e da dor de Natasha no «Guerra e Paz», de Tolstoi, com a infeliz queda num poço de uma criança é, sem dúvida, uma das muitas comparações completamente forçadas que vemos em Sonechka, talvez igual à profusão de adjectivos, metáforas e alegorias. A síntese, também ela forçada, assim o obriga.

Hoje é fácil, muito fácil, dizer-se anticomunista. Nascida em 1943, bióloga de formação, Ludmila Ulitskaya, mostra-se claramente hostil ao regime nascido da situação revolucionária de 1917 e que desembocou em Estaline e Krutchev, o que até lhe poderá ter dado benefícios e, pelos vistos, apareceram subitamente com traduções em 40 línguas e vários prémios internacionais. Mas ser-se anticomunista obriga igualmente a um rigor e seriedade que Ulitskaya não exibe, por muito que chame a Lenine «careca do pensamento» (sic). Não faço a mínima ideia do que fala a autora quando assim o nomeia, mas aceita-se o facto de Lenine ser careca (!?). Partindo do facto que o comunismo nunca existiu como regime instituído, antes como experiências muitas vezes afogadas em sangue, ser-se anticomunista é o mesmo que dizer-se anti-utópico, anti-distópico ou anti-mudanças climáticas, ou ainda anti-carros elétricos ou a gasolina, por exemplo. Terá sentido? Para alguns terá, que sei eu...

De qualquer modo, há questões da tradução directa do russo que me fazem interrogar do seu sentido: dizer-se «pomo-de-adão» será o mesmo de «maçã-de-adão»? Nunca ouvi «pomo-de-adão», tal como «arte depravada» que deverá ser a «arte degenerada» aplicada à que foi perseguida por Hitler e não pelo regime soviético, que optou pelo «formalismo jadnovista» contra o expressionismo, surrealismo ou dadaísmo e que não pode ser aplicado para a URSS. «Arte depravada» é a do Cabrita Reis e da Joana Vasconcelos, cá no Ocidente... mas estamos, sem dúvida, na presença de uma «carreira fulgurante», desde 1995. Este foi o primeiro livro de Ludmila.

sexta-feira, fevereiro 07, 2025

«Elfriede Jelinek - Une Biographie», Yasmin Hoffmann

 

Éditions Jacqueline Chambon, 2005
Não procuro biografias de autores que leio. Principalmente dos que sigo com interesse e que lhes conheço as obras. Sei por que o digo: há diferenças abissais entre o que se escreve e o que se faz e não vem mal ao mundo por isso. Da minha experiência como editor fiquei amigo de muito poucos autores que publiquei. Também não vem mal ao mundo. Muitos deles sabem que eu sei dos seus medos, das suas fraquezas, das contradições e do que seriam capazes para o bem e para o mal, maniqueísmos à parte, visto que não sou adepto desse tal Mani. Mas com Elfriede Jelinek é outra coisa. Esta biografia, feita por quem a conhece bem e sua tradutora de francês, prova que a coerência paga-se cara e que a escolha literária em defesa dos mais fracos, dos excluídos, dos marginalizados tem custos. A sua luta contra o nazismo e o fascismo actuais na Europa e principalmente na «sua» Áustria e na Alemanha moldaram a sua vida. Até quando lhe deram o Nobel em 2004, ela não cedeu e não quis que o governo conservador-liberal austríaco aproveitasse a cerimónia para que se esquecesse a sua ligação com a extrema-direita da FPÖ do malogrado Haider. Não foi a Estocolmo. Serviram-lhe a medalha friamente, por ligação online e ela não o foi menos para com a Academia. Mas essa não é estória nenhuma. Adiante.

Contraditória, ambivalente, punk antes do seu tempo (estamos a falar do início dos anos 70), bonita, nunca conheceu outra casa que não fosse a da mãe com quem se dava bastante mal. Essa relação, aliás, vem bem descrita no livro «A Pianista» e no filme homónimo de Michael Haneke, embora Jelinek negasse qualquer traço autobiográfico, antes pretendendo afirmar as relações de domínio entre uma relação de homem e mulher. A crítica nunca lhe perdoou o seu afastamento das elites literárias e a sua sobranceria face aos meios culturais vienenses que ela denunciou como hipócrita e vendida a interesses materiais. Jelinek não era judia, mas, na sua família, 49 membros da parte do pai passaram por campos de trabalho e de concentração alemães. Adere ao PC austríaco nos anos 80 e abandona-o em 91 juntamente com o seu comité central. Antes, nos finais dos anos 60, tinha aderido por muito pouco tempo às comunas de jovens vienenses de extrema-esquerda. A mãe recebe-a em casa e inicia um período de escrita e de leitura em doses industriais e iconoclastas, não sem antes entrar em conflito contínuo com a mãe que exigia dela uma carreira ligada ao piano no Conservatório de Viena. Escrevia sempre, mantendo uma rotina com poucas mudanças no seu quotidiano. Escrevendo de manhã, lendo vários jornais (sabe-se que grande parte dos seus romances partiram de pequenas notícias criminais e de fait-divers), lendo livros que iam dos clássicos, até BD, passando por policiais e ficção científica, encontrando-se com os amigos nos cafés do bairro. Recusava-se a andar de avião ou a conduzir. Acompanhava particularmente a obra de Ingeborg Bachmann (o seu «Malina» está publicado pela Antígona), de Hölderlin, de Robert Walser, de Broch ou de Kleist. Tinha uma relação tensa com a obra quer de Arendt, quer do seu «mestre» Heidegger, que o acusava de ser o mal em pessoa, sob a capa de uma pretensa neutralidade da filosofia e do cargo de reitor da universidade de Berlim. Também acusava Hanna Arendt de ter sabido o que pensava e do modo como pensava Heidegger, não lhe perdoando o facto de nunca o ter atacado devido ao «valor» da sua obra filosófica. 

Denunciou igualmente o facto do seu país ter escondido até hoje um passado entranhadamente nazi, proporcionalmente maior do que na Alemanha. O facto de em 1943, na Declaração de Moscovo, os Aliados terem escrito que a Áustria foi «a primeira vítima do nazismo» permitiu que o país nunca tivesse assistido a uma desnazificação, após 1945, digna desse nome ou sentido a necessidade de qualquer processo de interiorização de culpa perante as vítimas que provocou. Não é de estranhar, portanto, o particular ódio que lhe nutre a extrema-direita que chegou a colar cartazes contra Elfriede Jelinek nas ruas de Viena. Também não é de estranhar que eu próprio, em Viena, depois de procurar os seus livros em livrarias de referência, uma delas a Shakespeare and C.º que nem sabia existir na cidade, nenhuma delas tinha sequer um único livro dela. Resta-me o facto incontornável de a ter editado com o seu «Manual de Sabotagem - Escritos sobre Política, Memória e Capitalismo», hoje esgotado. 

alc

terça-feira, fevereiro 04, 2025

A Esquerda e o woke

Ainda sobre «O Contrário de Nada» de Tess Gunty e o pensamento woke: é necessário alguma cautela na esquerda antes de criticarem a expressão, que aliás não me entusiasma por aí além. Prefiro «liberdade» ou, se quiserem «direitos», «novas subjectividades», «superação do Iluminismo», porque é disso mesmo que se trata. Arranjar, à pressa, desculpas para a condição mais que recuada da esquerda, principalmente na sua frente eleitoral, devido à adopção do chamado «wokismo» é dar à direita e à extrema-direita (estranhamente ou talvez não, aqui também estão juntas) a legitimidade para continuarem a sua demanda para o pior da Idade Média. Experimentem focar-se no «pensamento» anti-woke e deparar-se-ão com um cortejo de horrores que nem a Margaret Atwood era capaz de imaginar. Está lá tudo: a mulher como reprodutora sem quaisquer direitos, a proibição do aborto, o fim da igualdade de género e proibição dos movimentos LGBTI+, a culpabilização das revoluções passadas, a prisão para quem não segue o pensamento único e o aumento exponencial do tempo de prisão de penas por crimes até agora considerados menores, a proibição da divulgação de qualquer ideia comunista ou anarquista, a regulação de uma só moral social, a publicação e divulgação mediática das teses revisionistas da História, o liberalismo puro e duro à Milei e à Trump, a culpabilização da pobreza, o desrespeito total pelos mais elementares direitos das pessoas, o fim da natureza tal como a vemos hoje, o retorno ao extractivismo selvagem...querem que eu continue?

Porque falei no início em Tess Gunty? Porque ela seria considerada woke. Provavelmente, junto com milhões de jovens americanos que ainda se consideram livres (na Europa, o sentimento de perda ainda vai demorar um pouco mais). E escritoras e escritores, músicas e músicos, actores e actrizes, que pensam como ela e que viver a liberdade é como respirar. Se lermos esta gente jovem, percebem que ser woke não é forçado, é naturalmente o seu pensamento quotidiano, de todos os dias, a todas horas e minutos.
Se a esquerda não percebe isto, se tiver medo dos «extremismos», se se sentir mal ou envergonhada com alguns epítetos que a direita lhe dirige (sempre lhe dirigiu o pior dos nomes desde 1789!) e principalmente se tentar apagar o seu passado, então merece nada.

In Facebook, 3 de Fevereiro de 2025

quinta-feira, janeiro 30, 2025

«O Contrário de Nada», de Tess Gunty

 

Alfaguara, 2024. Tradução de Eugénia Antunes
Uma millennial a escrever sobre a América. É o primeiro livro de Tess Gunty e asseguro-vos que vale a pena lê-lo por alguns motivos. Em primeiro lugar, porque é bem estruturado, embora algo solto onde se cruzam episódios que só mais tarde reparamos terem algo em comum o que cria um jogo interessante com o leitor. A autora sabe do que escreve, sabendo-o fazer bem. Depois, porque é a América que necessitamos urgentemente de compreendê-la nos tempos que correm e finalmente porque teremos sempre de ler quem escreve assim e porquê, principalmente quem ainda vive os seus vinte anos tardios, algo entre a maravilha despreocupada e a depressão permanente. É uma verdadeira odisseia esta viagem por vidas aparentemente vazias, plenas de consumo, onde se interliga a necessidade contraditória desse mergulho e o seu inconformismo e desconforto pelas mercadorias e desejos hedonistas. Mas o que sobressai mais é, sem dúvida, a recusa. A recusa de viver em solidão e o não saber ou poder viver acompanhado/a, a necessidade de amar e fugir do amor, a vontade de seguir uma carreira e odiar quem se assenta numa. É interessante ler esta jovem que viu ser recusado inúmeros manuscritos durante cinco anos e que, prestes a desistir, ganhou o National Book Award de 2022 e que foi traduzida em quinze países. 

«Ninguém tem uma vida fácil no sistema Vacca Vale, mas a Blandine teve uma vida ainda pior, sendo tão inteligente e mulher, ainda por cima. As pessoas querem coisas das Blandines do sistema, e por certo que o cérebro dela não ajudava. Pensar demais pode ser a nossa morte, e a Blandine... bem, ela fecha-se em divisões e pensa. Pensa e pensa e pensa em toda a sorte de desgraças, e chegado o anoitecer tem medo da maçaneta da porta. Foi a única de nós que não terminou o liceu, mas também a única de nós que teria entrado numa universidade. Certa vez, encontrei uma carta no quarto dela de uma orientadora vocacional - era um email que ela terá imprimido - a incentivá-la a candidatar-se às universidades da Ivy League. A orientadora dizia que ela tinha fortes possibilidades de ser aceite. Não fazemos ideia do motivo por que a Blandine desistiu do liceu. Era aluna bolseira de um dos liceus finórios da cidade. Só lhe faltava um ano para acabar. Nunca aborda o assunto. Se alguém lhe falar de alguma escola, ela lança-se num sermão sobre a merda que é o sistema educativo americano ou então dá de frosques..»

De resto, a tortura e a vida animal, as alterações climáticas, o veganismo, as inundações e vagas de calor, a saúde e as drogas, a desconstrução social, tudo isto transparece na escrita de Tess Gunty. Ler para conhecê-la, para conhecê-los.

alc

sábado, janeiro 25, 2025

«Elon Musk», Darryl Cunningham

 

Editora Jean Vacquet, 2024
Este homem é uma fraude. Uma fraude cara e perigosa, mas ele anda aí com a certeza que o dinheiro quer dos americanos, quer dos múltiplos contratos da administração pública num mundo que deseja em ruínas e em permanente guerra, aumentará ainda mais a sua enorme conta bancária. O mais impressionante, nesta biografia de uma banda desenhada extremamente sóbria e plenamente informada, pela mão de Darryl Cunningham, é assistir a um percurso de vida em que o oportunismo, a inexistência de qualquer valor humano, a indecência e a falta de escrúpulos em doses industriais, foram a pedra de toque da vida deste senhor, cuja saudação nazi na tomada de posse de Trump, só surpreendeu os mais distraídos.

Nascido em Pretória, na África do Sul do apartheid, foi vítima de bullying em várias escolas por onde passou e assistiu a um pai escabroso que violentava a mãe física e psicologicamente, sendo obrigado a afastar-se da mulher por ordem judicial sem que antes lhe tivesse prometido uma morte a tiro. O avô, de quem Elon Musk se sentia próximo, era a sua referência máxima. Este, ironia das ironias, emigrava constantemente entre a África do Sul, Austrália, Canadá e EUA até se estabelecer neste último país como quiropata. No meio disto, funda um partido, antes da II Guerra Mundial, o «Partido Tecnocrata» que pretendia unir, sobre um liberalismo selvagem, sem políticos, o Canadá, os EUA, o México, toda a América Central e parte da América do Sul. A grande referência do jovem Musk assistiu à erradicação federal do partido por simpatias nazis em 1946! Depois da violenta separação dos pais, dir-se-ia que Elon e Kimbal, seu irmão, escolheriam viver com a sua mãe. Nada disso: optaram pelo pai violento, mas cheio de dinheiro que comercializava pedras preciosas da África do Sul. Ele e o irmão, na primeira viagem que fazem a Nova Iorque e depois de se terem apropriado de esmeraldas do pai, vendem-nas à Tiffany. Começou a Era Musk! 

Então na Universidade, o seu percurso estudantil não é isento de problemas de concentração e do sucesso que se propala, ainda hoje, como um génio então em formação. Depois, não vos canso mais: sabemos ao que veio e em que empresas ele esteve ligado e, até certa medida, fundado. Hesito na expressão porque não há uma só empresa dele que não tenha afastado quem com ele trabalhou, ou através da ameaça, da chantagem ou da justiça que lhe foi relativamente favorável. Esta Banda Desenhada é pródiga em demonstrar a fraude que é Elon Musk, não só como «empreendedor», mas igualmente como um «génio da tecnologia». Desde a Tesla até à SpaceX e agora no X, ex-Twitter, o homem soma contas astronómicas de fracassos e de mega prejuízos que só não deram em estrepitosas falências com a mão atenta e solidária de George W. Bush, Biden e Trump. Como? Com contratos multimilionários da NASA com a SpaceX através de somas de dinheiros públicos astronómicas, e com o apoio à Tesla de programas de especiais de descarbonização (por acaso, na sua maior parte, de estados democratas!). 

Sobre a SpaceX e a privatização do espaço estamos mais que conversados e assiste-se às explosões dos Falcon 9 a todo o vapor, tal como as mortes rodoviárias no modelo Tesla com o sistema de navegação autónoma Autosteer e que Musk teve de abandonar não sem antes culpar os engenheiros que o tinham avisado do risco. Mais preocupante, contudo, é o seu projecto Neuralink que quer ligar o cérebro humano a computadores, adivinhando antecipadamente o pensamento humano e respondendo aos seus desejos ou solicitações. Não que a internet não o faça já, mas (ainda) sem intervenção directa no cérebro, esse órgão ainda livre do capitalismo liberal (digo eu!). Todos os protestos de inúmeros cientistas caíram em saco roto, tal como o silêncio da CIA e do FBI, evidentemente. Outra: o Starlink, ligado à SpaceX, vai colocar 42 mil satélites em órbita terrestre. Problema: deixarmos de ver as estrelas com a enorme luminosidade no céu que obrigaria a um projecto destes. Solução de Musk: uns painéis de carbono negros que, no espaço, absorveriam, essa mesma luz! Comboios rápidos ou TGV's? Não, nem pensar. Ele propõe um Hiperloop: um tubo transatlântico, ou transoceânico (como os cabos submarinos), onde se metiam as pessoas em fila indiana atingindo a velocidade de 1200km/h. Ao ultrapassar a velocidade do som, azarito para os ouvidos. Fossem a pé! Nesta equação não se fala da possível compra da OpenAI e da colonização de Marte. Os impostos públicos pagarão tudo isso. 

Lindo, não é? Só lendo. Mas em banda desenhada que dá mais realismo, em comparação com o Flash Gordon, por exemplo. Esse, ao menos, era lido em papel, aos quadradinhos; este, tem um presidente do EUA por trás. Faz toda a diferença.

alc

quarta-feira, janeiro 22, 2025

«A Coisa mais Próxima da Vida», James Wood

 

Zigurate, 2024. Tradução de Joana Jacinto
Querem mesmo ler «A Coisa mais Próxima da Vida»? Diz o editor, desgraçadamente conhecido por todos nós e um verdadeiro cabotino, que James Wood é «...na actualidade o mais influente crítico literário de língua inglesa e porventura de todo o mundo.» Mundo esse que não conta ainda com a colonização de Marte, bem-entendido! Para isso, seria necessário a edição de «Na cabeça de Elon Musk» pago em bitcoins, coisa que Carlos Vaz Marques ainda não almejou, mas cuja colecção «Na Cabeça de...» conta com figuras proeminentes como André Ventura, Montenegro, Putin, Xi e Pedro Nuno Santos. Também analisou e editou um livro sobre a biblioteca de Estaline, em conjunto com obras, todas elas, que encheram o nosso imo, para além de livros de cozinha de ditadores. Voltando ao livro que falamos: ele não pára por aqui. Informa-nos igualmente na contracapa  que os trabalhos de James Wood, na New Yorker lhe valeram a alcunha de «elegante assassino» e de «estripador cortês.» Não faz o caso por menos. O problema é que abrimos o livro (sim, perdi uns euros nesta coisa!) e sai-nos um caldo de inutilidades várias, confissões pueris da sua vida e da de outros (nasceu com educação católica rígida e tornou-se ateu, que rebeldia extraordinária, ó estripador!), citações a esmo e uma chamada à colação da literatura do mundo, pós-colonial, que nem sim, nem não. E análise de prémios atribuídos, pois claro. Um longo bocejo para quem, desconfio, pretenderá criar um novo cânone literário num livro que não o deveria ter sido. Provavelmente, uma súmula de artigos da New Yorker, talvez com lugar no Expresso revista. Talvez editando «Na Cabeça de Balsemão» consiga que a saga continue. Fiquem com esta verdade insofismável de James Wood, o «elegante assassino»: «Graças ao estilo indirecto livre, vemos coisas através dos olhos e da linguagem do personagem, mas também através dos olhos e da linguagem do autor.» Lili Caneças tem um pensamento igual, mas para quem está morto.

alc

domingo, janeiro 19, 2025

Elfriede Jelinek

 

Desenho de Elfriede Jelinek
Tinta-da-china sobre papel 
Work in Progress

«O Fim do Império», Ribeiro Cardoso

 

Por vezes, estas leituras deviam ser-nos apresentadas como obrigatórias para necessária catarse individual, já que a colectiva tarda e cá para mim nunca será feita convenientemente por um povo (essa entidade de conceito trôpego) que acredita piamente numa coisa chamada luso-tropicalismo. Não se espere uma narrativa literária, mas antes uma peça jornalística bem fundamentada por um então alferes, Ribeiro Cardoso, que na ocasião estava em comissão em Moçambique. O autor era igualmente jornalista do malogrado Diário de Lisboa que eu comprava diariamente à tarde. Os factos são descritos, em depoimentos, pelos protagonistas do 7 de Setembro de 1974 na então Lourenço Marques, em que a extrema-direita tenta evitar os Acordos de Lusaka que deram à Frelimo o poder em Junho de 1975. O jornalista sabe distanciar-se convenientemente de algumas posições políticas tão alucinadas, quanto perigosas. E que o foram verdadeiramente, contando-se aos milhares as vítimas desse fim anunciado do Império que ainda incha o peito de tanta gente.

O desespero é tramado, mas antes de descrevermos muito brevemente o que aconteceu e se seguiu à data de 7 de Setembro de 74, vale a pena dizer que a curiosidade histórica me levou a ler um diário de um soldado que esteve em Mueda, no norte de Moçambique, nos anos de 1966 e 67, sob fogo cerrado dos independentistas moçambicanos da Frelimo. Publicado, em 2024, por uma Biblioteca Municipal, alguns episódios descritos são terríveis e perante a morte de camaradas seus, em que se incluía igualmente o seu alferes da Companhia de que fazia parte, ele chega a suspender a sua escrita diarístíca. Parecia que este soldado não queria viver mais uma realidade que o transcendia, que lhe levava os amigos, os camaradas, que o impedia de estar com a família, a namorada da terra lá longe, num país que o obrigou a matar a troco de um pré miserável e de uma eventual medalha por serviços prestados à Pátria. Pagaria também um caixão que o trouxesse para o país, dito metrópole. Provavelmente, ao suspender a escrita do seu diário seria uma forma de tentar salvar-se. O que conseguiu. Já na idade dos setentas e muitos lá acabou as páginas finais do tal diário que li e que contrasta visivelmente com a narrativa oficial das instituições militares. Daí ser importante ler estes testemunhos para se perceber a chamada «moral» das tropas e o que os soldados sentiam antes das chamadas «missões» no interior em que eram mortos inocentes, queimadas aldeias, feitos prisioneiros sujeitos à tortura e a «interrogatórios». Para ver a dimensão da violência que grassava, entre 1966 e 1974, morreram, na prisão de Machava, 857 prisioneiros independentistas, como nos conta Ribeiro Cardoso em «O Fim do Império». Não estão nestes números, as dezenas de milhares que morreram em combate de um lado e de outro.

Quando se culpa a descolonização de crimes «atrozes» para a população branca de Lourenço Marques, era bom que lêssemos esta peça jornalística de Ribeiro Cardoso que foi testemunha presente nos acontecimentos que levaram ao 7 de Setembro de 1974 com a ocupação do Rádio Clube de Moçambique, do aeroporto e de outros locais públicos que são essenciais na lógica de um golpe de estado civil e militar. Os brancos de Lourenço Marques não aceitavam os Acordos que davam à Frelimo a possibilidade de independência efectiva da ex-colónia. O tão propalado e propagandeado luso-tropicalismo «suave» de miscigenação feito, deu lugar, demasiado depressa, ao violento ódio racista que levou ao massacre de milhares de negros nos bairros do caniço que delimitavam a cidade de cimento onde a população branca estava habituada a viver com os seus privilégios intactos. A tal «suave miscigenação» deu lugar, dizia, ao apelo branco à Rodésia e à África do Sul, países do apartheid, que lhes virou as costas, abandonando pides (200 foram libertados da Machava nesses dias), gente ex-ANP do antigo regime, mercenários, organizações fascistas paramilitares de «defesa civil» que ainda operavam livremente, os comandos estacionados em Montepuez, a PSP, os «Dragões da Morte» e por aí fora. É evidente que a resposta africana não se fez esperar e agora os massacres foram de cariz contrário. Até dia 12 de Setembro, e por interferência de Machel, de Chissano e dos guerrilheiros da Frelimo, foi posto fim à retaliação massiva. A fuga da extrema-direita branca e negra para a Rodésia e África do Sul seguiu-se em revoadas. Foi esta gente que, vinda mais tarde para Portugal, anunciava os «crimes da descolonização» e do «comunismo» e que foi fértil em estar ao lado dos spinolistas do ELP e MDLP. Spínola, aliás, cuja posição política contra o programa do MFA e hesitação criminosa perante a independência total das colónias, preferindo uma solução governativa «branca» e federalista, foi um dos factores determinantes no eclodir da violência que se instalou na descolonização e posteriores guerras civis. O 28 de Setembro de 1974 em Portugal está profundamente ligado a estes factos. Mas isso é outra história. O que é contado neste livro é essencial para perceber a irrealidade de um Império com pés de barro, que provavelmente nunca o foi verdadeiramente, mas sim um arremedo de experiências baseadas em conceitos vazios. Infelizmente, as inúmeras vítimas que o Império provocou não se encontram entre nós. Salve-se a memória que este trabalho nos apresenta.

quarta-feira, janeiro 08, 2025

segunda-feira, janeiro 06, 2025

«Viva L' Anarchie!», Tomos 1 e 2. Bruno Loth e Corentin Loth

 

«Viva L'Anarchie!», Tomos 1 e 2. Bruno Loth (argumento e desenho) e Corentin Loth (côr)
Subtítulo: «O Encontro entre Makhno e Durruti. La Boîte à Bulles, 2020

Um regresso feliz à BD com este «Viva L'Anarchie!» pelo argumento e desenho de Bruno e Corentin Loth. Revivo, com esta forma popular que adquiriu o nome pomposo de «novela gráfica» nos dias de hoje, uma relação íntima com esta forma de arte. Claro que a BD pode ser lida em conjunto, mas não é de modo nenhum uma forma muito agradável de o fazer. Tal como a leitura de um livro, quando é feita a dois é já uma multidão, o que, como sabemos, não acontece com a pintura, o cinema, a música, a performance, ou o teatro. Daí, considerar a Banda Desenhada uma arte (a nona?) com um carácter muito particular. 

«Viva L' Anarchie!» é História. Os factos, documentados e cujas personagens são biografadas, relatam a luta travada por Nestor Makhno e Buenaventura Durruti, nos anos 20 e 30 do século passado, respectivamente na Ucrânia e na Catalunha para a construção de uma terra verdadeiramente livre e partilhada por todos. Mas as geografias utópicas não ficam só nessas regiões, não fosse o projecto anarquista ser assumidamente internacionalista. O mundo era um lugar sem fronteiras, tal como o dinheiro e o capitalismo não as têm, igualmente. A clarividência e a exigência do impossível foram sempre atributos anarquistas. Principalmente, quando acompanhados por milhões de camponeses e operários sem nada, explorados até ao tutano, morrendo de fome, reprimidos e humilhados em todos os continentes como foi presenciado também na América do Sul por Durruti e Ascaso. Esta história pode e deve ser contada, mas infelizmente não há editores portugueses que o façam. Na França, na Grã-Bretanha, na Bélgica, nos Países Baixos e em Espanha, não há receio de assumir uma história de luta que está entranhada no adn do país ou da região. Aqui em Portugal, que temos uma enorme história de construção do anarco-sindicalismo e no comunismo libertário, temos parece que uma amnésia, um véu, que desce sobre as lutas dos operários e camponeses por vidas mais dignas. 

Pouco antes da Guerra Civil de Espanha de 1936-39, Durruti encontra-se em Paris com Makhno (este já «derrotado» e a trabalhar, com várias doenças entre as quais a tuberculose que o vai matar, na Renault) e com a sua mulher Galina e Yelena, a filha. Durruti faz-se acompanhar por Ascaso, Louis Lecoin e Yakov, entre outros e outras companheiras. É essa conversa de recordações e de projecções de futuros que a história se desenvolve com um ritmo argumentativo de assinalar. Nessas recordações vimos a violência extraordinária de Guerra Civil de 1918 a 21 na Rússia e, principalmente, na Ucrânia, visto que foi lá que a força da Makhnovchtchina (expressão que Makhno não aceitava, aliás) se fez sentir derrotando os nacionalistas ucranianos aliados dos austro-húngaros e alemães ocupantes após Brest-Litovsk, esmagando igualmente os Brancos de Denikine e, depois, de Wangrel. Contudo, o mais importante, o que levou ao ao apoio entusiástico das populações ucranianas em torno de Makhno, foi o projecto igualitário e colectivista levado a cabo pelos comunistas libertários no campo e na cidade. Reconhecemos demasiado bem, hoje, diria que infelizmente, o mapa da Ucrânia e lá vem as zonas libertadas, o rio Dniepre, o Donbass, a Crimeia sempre fonte de conflito e de acesso ao Mar Negro. As vitórias de Makhno só se poderiam dar com o apoio da população, visto que o número e as forças em presença eram gritantes tal a sua diferença. De vitória em vitória, até à derrota da Makhnovchtchina pelos bolcheviques de Trotsky, já quando desgastados depois da campanha da Crimeia e este não considerando sequer a sua antiga inclusão no Exército vermelho. Quase todos foram presos, alguns desaparecidos e muitos eliminados, executados por ordem de Estaline, como aconteceu com Galina e Yelena, presas mais tarde em Berlim Oriental após a II Guerra Mundial. 

Quanto a Durruti, morreu, como sabemos, em plena Guerra de Espanha em circunstâncias estranhas em que não há certezas de onde vieram os tiros. Aliás, como Ascaso e tantos outros e outras da CNT-FAI que morreram, não só metaforicamente, com tiros nas costas. Uma história verdadeira onde se misturam traições, ódios, amores e principalmente a enorme vontade de edificar algo que ainda não temos. Talvez um dia. Para já, em plena regressão humana, é sempre bom ter estes livros bem perto.

alc

quinta-feira, dezembro 26, 2024

«Os Desarçonados», Pascal Quignard

 

Cutelo Edições, 2024. Tradução de Diogo Paiva

Que dizer de Pascal Quignard que não terá sido dito antes? Subjectivo, mas tenho-o de dizer de um modo claro: Quignard é, sem dúvida, um dos melhores escritores actuais. Para além do prazer da leitura que fruímos (e não é isto o que leva um leitor a ter um livro nas suas mãos?), estamos diante de um autor que nos leva ao pensamento crítico, por vezes incómodo, mas igualmente ao conhecimento de um passado que nos reaviva a memória de uma humanidade que hoje terá perdido o seu rumo, ou que, de um modo subterrâneo, acumula energias para a mudança, talvez a última hipótese milenarista de que nunca se apartou. Quignard apresenta-nos tanto as impossibilidades, como as conquistas que nos levarão à conquista dos céus. Daqueles que, desarçonados, foram retirados, por combate ou por acidente, do seu arção, da sela protectora e prostrados sobre a terra. Destes, sabemos que foram igualmente vitoriosos, mesmo que não o viessem a saber. De Gilgamesh à Bíblia, da conversão de Saulo de Tarso em Paulo (desarçonado do seu cavalo a caminho de Damasco) a Platão e Aristóteles, de Luciano de Samósata ao Duque de Bourbon e a La Palisse,  de Louise Michel a Blanqui, de Freud a Nietzsche e a Georges Sand, tudo em Quignard nos é novo, escrito contidamente, numa síntese notável de beleza formal e de sabedoria antiga, em pequenos trechos que nos convidam à sua guarda, ao registo para sempre, ao sublinhado como tentativa de eternizar aquilo que acabámos de absorver. Que escrita!

No capítulo XVIII, ''Rousseau em Ménilmontant'' a experiência de quase morte que o filósofo sentiu ao vir a si é descrita deste modo: «(...) A noite avançava. Observei o céu, algumas estrelas e um pouco de vegetação. Essa primeira sensação foi um momento delicioso. Era ainda apenas isso que sentia. Nascia nesse instante para a vida e parecia-me preencher com a minha existência todos os objectos de que me apercebia. Totalmente no momento presente, não me recordava de nada; não tinha qualquer noção distinta da minha individualidade, a menor ideia do que acabava de me acontecer; não sabia nem quem era nem donde estava; não sentia nem dores nem receio nem inquietação. Via escorrer o meu sangue como teria visto correr um riacho, sem pensar que esse sangue de alguma forma me pertencia. Sentia em todo o meu ser uma calma maravilhosa à qual, cada vez que me recordo dela, nada encontro de comparável em toda a actividade dos prazeres conhecidos.
    O fundo da alma arrebatada é desprovido de identidade.
    O fundo da autobiografia é desprovido de 'autós'.
    O fundo da leitura é esse mesmo sentimento de esquecimento de si. Esse júbilo de esquecimento de si. ''Não sentia aflição nem por mim nem por outrem'', escreve Montaigne. ''Não sabia nem quem eu era nem onde estava'', escreve Rousseau.
    O homem a morrer é aquele que já não experimenta o instante que o consuma, tal como o concebido não experimenta a origem da forma.
    Embora o homem não tenha nunca a possibilidade de 'experimentar' o seu fim, ele é o único dos animais no qual toda a vida é orientada pela 'imaginação' da sua morte. (...)» (pág.50,51)

E no capítulo XXXVIII, ''Política de Henri Michaux'': «A contribuição apaixonada para o esforço de guerra, o elogio do sacrifício de cada um para a sobrevivência do conjunto, o estímulo vigoroso das razões para combater, o narcótico do ódio, isto é, do sentido, isto é, da orientação, isto é, do futuro, é a tarefa que se incumbe aos magistrados, aos filósofos, aos padres, aos historiadores, aos políticos, a todos os homens ''de Estado''. Alistem-se! Sacrifiquem-se! Dêem-nos razões para ter esperança! Motivem a vossa morte, fundem o vosso sacrifício, argumentem a vossa eliminação!» (pág.101)

Em XLV, ''O cavalo do tempo'': «No amplexo que une os corpos no instante do acto sexual, a alma da mulher e a do homem experimentam uma crise de identidade de cada um deles. Ambos sentem uma impressão pungente, extraordinária e sem remédio. É uma partilha animal não verdadeiramente partilhável no interior da partilha linguística que, essa, é um verdadeiro diálogo onde todas as singularidades anatómicas desaparecem. A partilha linguística opõe um eu e um tu inteiramente intercambiável com o sexo do outro no desejo que anima a reprodução.
    Ambos se agarram. Ambos querem que a sua excitação dure. Ambos querem o fim da excitação. Ambos querem unir-se na explosão de volúpia, enlaçam-se, envolvem-se, abraçam-se, apressam-se para a atingir. É claro, fazendo de tudo para acabar, não querem o fim enquanto 'tristitia', enquanto destensão, enquanto destumefacção, enquanto desgosto. Contudo, querem o fim enquanto volúpia, provocam essa incrível distensão, esse desdobramento, esse vazamento, esse vazio assimbólico, esse langor que abrem diante de si. (...)» (pág.118)

''Estação de Lyon'', capítulo XCIV sobre o que é ser estrangeiro: «No átrio da estação de Lyon, no cais de Chiffres, com destino a Sens, os pobres, os mendigos os 'Apolis', os Estrangeiros, os Sem-Abrigo, os Vagabundos sentados eram espancados à bastonada, eram arrastados por terra pelas axilas, eram levados para dentro de furgões por homens armados com bastões pretos e fardados de azul-eléctrico. Onde estão os contos em que os malditos penetravam nos palácios dizendo simplesmente aos guardas: ''Sou um estrangeiro''? Estrangeiro era então a palavra mais bela e abria portas. A hospitalidade era um dever, nem sequer uma virtude. O estrangeiro sentava-se no melhor lugar junto ao rei, à sua direita, semelhante a um sol que aparece no mundo, comia e bebia até se fartar. Depois, virava-se para o rei e perguntava:
    - Sire, quereis saber porque tenho o queixo rapado e um olho a menos?
E o rei prosternava-se diante dele e dizia:
    - Dizei-me! Dizei-me, meu amigo! Quais foram as vossas aventuras?» (pág.260)

E não deixava de mostrar-vos exemplos de uma escrita belíssima e de pensamentos aparentemente soltos de Pascal Quignard, registados neste livro inesquecível. Este autor é já um clássico por direito próprio. Impossível de contornar pela apresentação limpa do novo, mas igualmente do passado, do belo e do horror, das peças com que se faz o quotidiano e do que é acalentado na história, na filosofia ou na linguagem. Nem sempre o desarçonado é o que cai do cavalo. Muitos há cuja queda estrepitosa aconteceu com outras causas. para nós, portugueses, pode ser o cavalo de Afonso Henriques em Badajoz que o inutilizou até ao fim da sua vida, ou a cadeira de S. Julião da Barra que desarçonou, tarde demais, em 1969, Salazar. Pouco importa. O mais importante é pensar sempre em todas as hipóteses de futuro, mesmo com o pessimismo inerente ao mundo tal como ele é e como Pascal Quignard no-lo apresenta. 

A tradução, creio que extremamente difícil, é excelente pela mão de Diogo Paiva. 
O livro não segue, felizmente, o AO90.

alc

segunda-feira, dezembro 23, 2024

«Como numa História de William Irish», Ana Teresa Pereira

 

Relógio D'Água, Julho de 2024
Uma revisitação aos filmes policiais pelo texto literário muito particular de Ana Teresa Pereira que teimamos em ler. Comecemos pelo título: William Irish é um escritor americano de policiais «pulp» e que, segundo sei, tem só um livro publicado em Portugal pela Vampiro - «A Dama Fantasma». Foi também antologiado num livro de contos. Escusam de procurar nas livrarias porque só o encontrarão em alfarrabistas. Ana Teresa Pereira continua, como sabemos de outros livros anteriores de que já falámos aqui, no registo muito próximo do policial, mas igualmente no onírico, num mundo só dela, extremamente cinematográfico. Alfred Hitchcock, e os seus filmes mais emblemáticos, digamos que é o marco sempre presente no decorrer das cenas que compõem o livro, embora as personagens que são apresentadas sejam elas próprias o centro que faz desenvolver a história.

Narrativa essa que se divide em duas partes essenciais: a primeira, aquela que julgamos ser o decorrer de uma acção, ainda não policial mas psicologicamente densa, entre um homem e uma mulher. Durante a leitura, a habilidade literária de Ana Teresa Pereira, remete-nos para uma sensação de «dejá-vu», de cenas que nós já vimos em alguma parte, nalgum lugar. Sem termos a certeza, ou seja, na dúvida clara, lembramo-nos dos filmes entre os anos 30 a 50 do século passado. Todo o ambiente criado leva-nos a isso, a uma espécie de procura das razões que movem a mulher e o homem, e estamos ainda na primeira parte. E sabemos como Ana Teresa Pereira sabe impor-nos um ambiente de um parque, de uma casa, de cheiros particulares, de flores ou de vestuário. Na segunda parte do livro, virá a descoberta de que estamos dentro de um filme, que as personagens são actores e actrizes que embora não confundindo o seu papel com os seus próprios desejos ou objectivos têm de seguir o guião traçado por Hitchcok. É uma trama que se torna complexa, porque, segundo julgo, as características dos actores chocam, por vezes, na impressão psicológica das personagens vincada pelo realizador. É esta a tensão que percorre todo o livro.

«Vertigo», principalmente este filme, veio-me à memória (se lerem o livro, logo no início, perceberão porquê) durante a leitura e pelo seguimento do seu guião, mas «Rebeca», «Sabotagem», «Psycho» ou «Os Pássaros» também lá estão marcados, seja pelo decorrer do romance, seja pela referência múltipla a realizadores, filmes e a actores e actrizes que todos nós conhecemos e que se transformaram numa memória que a autora soube emergir para cada um de nós. 

alc

sábado, dezembro 21, 2024

«O Melhor Duplo», Paulo Bugalho

Língua Morta, Setembro de 2024
Um dos maiores enxertos de porrada velha que vi dar à Psicanálise e a Freud. A primeira que li, já lá vão anos muitos e à qual aderi completamente, foi a leitura ainda muito incipiente, porque quase adolescente, do «Anti-Édipo» de Deleuze e Guattari. Mas deixem a pancadaria em paz e desculpem o vernáculo; esta esfrega é feita com uma elegância e mestria raros num livro que se debruça sobre a matéria de que são feitos o sono e o sonho. É como se a poesia de Herberto Helder se aliasse a um monge japonês de artes marciais personificado num filme de Tarantino. Paulo Bugalho lê-se com agrado e entusiasmo crescentes, acreditem.

Do sono REM (Rapid Eye Movements) e ao NREM durante o sono, até aos variados tipos de sonhos que temos, lembrando-nos ou não deles (ai a culpa! ai o charuto!, ai o triângulo papá e a mamã, 'mais eu'!, como analisaria o doutor austríaco) até à literatura, ao cinema, à filosofia e à história clássica, entramos como convidados para um livro que educadamente nos demonstra a possibilidade de o sonho ser parte integrante e tangível de nós próprios, mesmo com a presença incontornável do onírico. E isto por quem sabe muito bem do que fala e que o leitor pressente, pois claro. Não é para todos, porque Paulo Bugalho sabe escrever bem, afastando-se da parafernália académica. Isso só o faz quem sabe, quem pode, quem se está para as tintas para o escudo protector universitário, comum nos dias de hoje e que muitas vezes é usado para esconder fragilidades várias. 

E sim, entre muitos outros vossos conhecidos e que vos acompanham, há Rilke, Allen, Zweig, Mann, Helder, Cesariny, Tsvietaieva (dela eu só conhecia «O Poeta e o Tempo», publicado pela Hiena), Tolstoi, Montaigne, Shakespeare, Proust (com uma referência privada às madalenas), Ariosto, Guimarães Rosa. Facto que vos trago aqui é a estória que é descrita sobre a relação que adivinharíamos entusiasmante entre Freud e os Surrealistas cujas artes segui com interesse e que se apoiaram nas teses do monstro da psicanálise: deram-se mal, como é mais que óbvio. A coisa acabou em divórcio entre Breton e mais tarde com Dali. Não deu a junção do automatismo da escrita poética com a análise doutoral. E aparecem todos juntos? É evidente que não, pelas razões que já apresentei atrás que, repito-o, são chamados por Paulo Bugalho com critério e em capítulos que demonstram uma síntese notável do autor. Deixo-vos, só para levantar o véu, com um pequeno trecho do capítulo «O Melhor Duplo» que deu o título ao livro:

«A verdade última, leitor, é que, para aquele que somos na vigília, o futuro do sonho é esquecimento. Ficamos alarmados com as imagens que nos chegam ao acordar, confusos com a certeira bizarria dessas histórias, fascinados com esse descarnar da ligação entre o mundo mental e a existência terrena, entre a vida que é vivida e a vida que é pensada. Colocamos o sonho no altar, adoramo-lo como a um deus que nós próprios fôssemos, imaginamos a nossa figura multiplicada por dimensões incalculáveis, expandida e nessa expansão tornada por completo, amavelmente, indecifrável. (...)» Queremos uma resposta? Pois é: o problema (se é que o chega a ser) é que temos de contar com a amnésia, diz Paulo Bugalho. E essa amnésia, frustrante porque impossível e óbvia de ser estudada, é que «das oito horas de sono que compõem uma noite, quase cinco contêm sonhos. Contudo, o total de que um bom sonhador se lembrará num ano será apenas de dezoito horas.» 

Que este livro vos dê bons sonos, sonhos e, já agora, boas vigílias.

alc

quarta-feira, dezembro 18, 2024

Desenho a carvão sobre papel. Dezembro de 2024

 

Carvão sobre papel, a partir de uma fotografia de Andy Warhol
Dezembro de 2024
Na Galeria / Atelier Ícone

segunda-feira, dezembro 09, 2024

«Melancolia em Tempos de Perturbação», Joke J. Hermsen


Melancolia 1, Albrecht Dürer, 1514
Livro interessante que versa uma pequena história da melancolia a que hoje chamamos erradamente de depressão. Isto porque o estado melancólico passou por tantas fases e teve tantas interpretações que temos muita dificuldade em acertarmos o passo num conceito minimamente comum e geral. Talvez assim até seja melhor. Ainda hoje se pode entender a melancolia como um estado de felicidade interior que busca na arte, na música, na literatura, no teatro e na poesia uma referência e uma experiência intensa, sem que para isso seja imediatamente considerado um estado patológico grave. Lá chegaremos, mas agora ainda não. A holandesa Joke Hermsen consegue, com êxito, construir a história da melancolia desde Platão até aos nossos dias. E tem interesse saber, ou especular, como passámos de um dito estado melancólico desde os tempos medievais ao romantismo e ao spleen de Baudelaire até aos escuros tempos de hoje. Pois é, mais uma vez o capitalismo e a evecção do tempo que gera dinheiro, consumo exacerbado e despersonalização do indivíduo não sai daqui incólume. Como se sabe, o sistema capitalista apropriando-se do nosso corpo e  teleguiando os nossos desejos, não é de somenos a autora atirar-lhe com as culpas para cima devido ao aumento exponencial de estados depressivos no mundo actual. Da alegria e felicidade melancólicas até à depressão generalizada foi um pequeno passo de poucos séculos. A «melan chole» aristotélica que quer dizer, traduzido à letra, «bílis negra» e que fez nascer a palavra «melancolia» que era teorizada como «inspiradora de ideias geniais», embora fosse exigido que não estivesse «demasiado fria, nem demasiado quente». Deixo-vos com «Melancolia 1», de Albrecht Dürer e a análise interessantíssima que Joke Hermsen faz deste quadro de uma época, a Renascença, que talvez tenha sido a que maior importância deu, elevando-o aos píncaros, o feliz estado melancólico (talvez clicando na gravura vejam melhor):

«A ligação estabelecida, durante o Renascimento, entre a melancolia e a sabedoria está especialmente patente na gravura mais famosa daquela época, a alegoria de Albrecht Dürer intitulada Melancolia I, com data de 1514. Uma mulher alada, sentada numa atitude melancólica, aparece rodeada de atributos que remetem para o conhecimento e a sabedoria, como o compasso que tem na mão, as volumosas figuras geométricas que estão em seu redor e o tinteiro apoiado no chão, junto de um estojo para penas. No entanto, o que melhor define a gravura é que a figura protagonista não faz nada com nenhum desses atributos, limitando-se a contemplar o vazio, mergulhada nos seus pensamentos. Esta Melancolia afastou-se do mundo à espera de um momento de inspiração. Na parede, há um quadro mágico com números, cuja soma oferece o mesmo resultado na vertical, na horizontal e na diagonal, neste caso, trinta e quatro. (...) Por trás da angelical mulher alada, que leva na cabeça uma coroa de louros, há dois objectos que simbolizam duas vertentes distintas do tempo: a balança de Kairós, deus do momento oportuno, e a ampulheta Cronos, que marca a passagem do tempo, e, por meio disso, recorda-nos a transitoriedade da vida.
Por baixo da balança há um «putto», um anjinho, que simboliza o nascimento de uma ideia depois de se esperar pelo momento oportuno, examinar atentamente as circunstâncias e encontrar a justa medida.» (Pág. 31,32)

Importante é o destaque que a autora atribui ao trabalho determinante de Lou Andrea-Salomé sobre Nietzsche (e não só sobre ele), de Julia Kristeva e também de Hanna Arendt, principalmente no que respeita ao tempo, neste caso o Kairos e não Cronos, para o aparecimento da obra de arte, seja em que formas for. «Aqui, quero relacionar o tempo kairótico principalmente com a experiência estética e o possível efeito catártico da arte, numa tentativa de reflectir em mais profundidade sobre a importância da música, da literatura, do cinema, do teatro e das artes plásticas, para mantermos uma relação saudável com a nossa melancolia.» (pág.73)

Joke Hermsen não é poupada nos termos que dirige à extrema-direita europeia e americana, aos totalitarismos vários que se perfilam igualmente em todo o mundo, visto que são claramente responsáveis, tal como ao capitalismo, pela xenofobia e pela repressão dos sentidos, e são, ao fim ao cabo, inimigos do homem e mulheres biológicos (aqui entra o conceito de biopoder de Agamben, também referido no livro). A imposição do não conhecimento dos outros, impele ao pensamento único, à sociedade totalitária, à unicidade social e étnica; ou seja, à impossibilidade do 'momento único', oportuno, porque tudo é trabalhado para o seguimento do tempo, a linha do tempo do nascimento à morte, que é o controlo total da humanidade e o princípio primeiro do totalitário. Para sermos verdadeiramente humanos precisamos de contemplação e paragem do tempo. Um livro bastante interessante de ler.


«Melancolia em Tempos de Perturbação», de Joke. K. Hermsen
Quetzal, 2022
Tradução de Maria Antónia Vasconcelos

alc

sexta-feira, dezembro 06, 2024

Gaza, Palestina. Dezembro de 2024

 

Público, 5 de Dezembro de 2024 (pormenor)

Ontem, a abrir o Público, fiquei a olhar longamente a primeira página, cuja foto edito aqui um pormenor. No chão, jaz um cadáver que presumo ser de um familiar desta mulher. Este desespero terrível tenta ser consolado por uma sua companheira que não sei o que lhe poderá dizer. Em Gaza. Todos os dias estas imagens invadem a nossa sensibilidade, a nossa revolta, a impotência que sentimos perante um governo de genocidas, cuja prática hedionda, inumana, é de uma crueldade sem nome.
A Europa vai pagar caro estas lágrimas. Desta mulher e dos milhares de crianças e velhos que todos os dias, todos os dias, repito, são mortos às dezenas, às centenas em Gaza, no Líbano e na Cisjordânia. E a Europa, hoje rica e confortável, vai pagar mais cedo do que tarde. O Ocidente não quer ver, não percebe, finge, dissimula, apoia os fortes, calca os fracos. Humilha um povo, assinalando a sua vontade hipócrita de uma paz impossível, porque sabe bem que quem está no governo de Israel não a quer. Prefere a morte programada, a vingança bíblica. Os árabes de todo o mundo sentem-se assediados e humilhados perante os europeus. Imagina-se a sede que nos têm, tal como os africanos, tal como os chineses, tal como os indianos e os americanos do sul. Tal como os ameríndios. Escrevo, misturando as coisas? Não creio. Faço-o propositadamente. Não se perde o sentido, porque estas lágrimas, as desta mulher, juntam-se a muitas outras que a História nos atira à cara. Aos europeus que, desde sempre, utilizaram a violência e a discricionaridade contra os povos. Os americanos do norte? Fizemo-los igualmente nós. Se aqueles ainda não demonstraram totalmente a raiva, hoje ainda algo contida, estes últimos estão ciosos de nos deixarem sozinhos, resguardados por um chapéu nuclear que julgam protegê-los. Na onda de pagar as humilhações e violências perpetradas não existirá qualquer protecção que nos valha. Estas lágrimas doem a alguns de nós, mas eles, os que sofrem o horror, saberão disso?

alc