segunda-feira, setembro 29, 2025

«Como Ler um Poema», Terry Eagleton

 

Edições 70, 2024. Tradução de Ricardo Mangerona
Isto não é «Poesia para Tótós» até porque se trata de um autor que sigo com interesse o que, por si só, nada prova com a informação graciosamente prestada. Mas posso, contudo, jurar a pés juntos que é verdadeiramente entusiasmante lê-lo. Sendo um filósofo, crítico literário e professor da Universidade de Lancaster, versado em Marx (ao contrário de livros de Estudos Literários portugueses que avisam, logo na introdução e aos estudantes, que abandonam todas as teses de análise marxista e estruturalistas!) e traduzido em inúmeros países (mas não mais que 195, segundo a ONU, sendo que dois deles são só observadores, o que me faz pensar que, nos tempos que correm, fosse avisado a conquista de tal estatuto para Portugal!).

O livro é para estudantes e para tipos como eu. Quer dizer, tipos a quem a vacina da literatura foi eficaz e, não sendo negacionista, foi inoculada por bons professores de Português a quem lhes devo a referência aqui, como um Luís Nogueira ou um António Taborda. 

É evidente que a poesia não será para todos como pretendeu Novalis. Em vez disso, e talvez mais realisticamente, deveríamos ficar somente pela fórmula de Enzensberger sobre os números de leitores (duzentos e tal) e dar-nos por satisfeitos. Ler poesia é um acto de liberdade e uma escolha muito pessoal. Tanto, que só muito raramente escrevo aqui sobre poemas ou poetas. Quando o faço é com todos os cuidados e sem grandes conciliábulos, não vá dá para o torto. E dar para o torto, neste preciso caso, é não estar acompanhado pelo olhar do poeta que poderia dizer «não é nada disso!» ou ter de partilhar emoções coisa que não estou para aí virado. O que também corresponde a um dos capítulos deste livro de Eagleton: a partir do momento em que o livro é publicado, podemos entender qualquer metáfora, alegoria, hipérbole ou comparação como muito bem nos aprouver e nada teremos a explicar, a não ser o de sentir ou procurar na página em branco que envolve o poema, essa resposta, esse mistério a que deu forma e o entrelaçar das palavras escolhidas pelo/a poeta. É aquilo a que também se refere de «textura», «imagética», «sentido», «ritmo» ou o «timbre». É evidente, para Terry Eagleton, que há uma técnica poética baseada não já na rima, no verso ou na métrica (coisas passadas), mas por uma forma muito actual de encontrar a ironia, a fúria, o desdém, os sentidos, através de técnicas apuradas pelos poetas que não abandonaram de todo a forma em detrimento do conteúdo. Ou seja, o conteúdo pode ser, até certo ponto, descoberto pela forma e não o seu contrário. O verdadeiro entusiasmo de qualquer estudante de Literatura e de Poesia, deve ser ainda, suponho com todas as forças do meu ser, a de saber em que consiste um anapesto (di-di-dum), uma assonância (dapple-dawn-draw), um batos, um dáctilo (dum-di-di) uma falácia da encarnação ou, talvez o mais importante, uma falácia mimética, «uma crença de que, digamos, um poema sobre o tédio deve ser, ele próprio, entediante».

É evidente que os exemplos que abundam em «Como Ler um Poema», são essencialmente ingleses e com traduções que vão de Daniel Jonas (Milton, Wordsworth...), José Agostinho Baptista (Yeats), Fernando Guimarães (Shelley), Manuel Corrêa Barros (Elizabeth Barrett Browning), Jorge Vaz de Carvalho (Blake). De resto, o trabalho de Eagleton é ilustrado profusamente com exemplos de poemas de raízes anglo-saxónicas o que não deixa de ser interessante. Alvo de alguma curiosidade e mesmo de apreensão é compararmos as traduções com o original em inglês. Bem sei que uma tradução poética será sempre de uma grande liberdade para o tradutor, mas reparem neste verso de Edward Thomas:

«(...) That once were underwood of hazel and ash» é traduzido por «Que foram raminhos de aveleira e freixo». Bom, adiante Eagleton tem necessidade de ir a este verso e escreve «(...) e em breve serão consumidos até se tornarem outro tipo de ''ash'' - cinzas». Quais cinzas? A tradução engoliu-as.

e esta tradução de Wordsworth:

«Among Arabian sands:» é traduzido por «Por entre a Arábia plana:» em que ficamos perplexos quando o autor nos chama a atenção, mais à frente, com a frase «Ou que é mais bem-vinda do que o som do rouxinol cantando perante o rebuliço dos viajantes num abrigo esconso das areias da Arábia.» Areias?

Terry Eagleton termina deste modo este excelente livro com um pensamento com o qual me identifico completamente e que vos deixo aqui: «(...) Vale a pena notar que, de todos os géneros literários, a poesia parece ser o que mais tenazmente resiste à crítica política, o mais isolado dos ventos da história. Tem a sua própria espessura e densidade, que não podem ser sumariamente reduzidos a sintomas de outra coisa.» (pág.329)

alc

«A Vingança», John Grisham

 

Eis mais um período de nojo em que mergulho nos policiais. Neste, a vingança, passa-se nos finais de 40, após a II Guerra Mundial, com pelo menos metade das 400 páginas a descrever os horrores da Marcha da Morte nas Filipinas, cujas vítimas eram soldados americanos nas mãos dos terríveis japoneses. Não pretendendo brincar com isto, esta longa descrição de Grisham nada tinha a ver com a trama policial em si, a não ser ter sido dado como morto o que eventualmente servirá para apimentar a estória: um herói de guerra de uma pequena vila do estado segregacionista do Mississipi, um rico proprietário de algodão, mata um pastor evangélico que pensa estar enrolado com a mulher enquanto ele passava tempos terríveis num campo de prisioneiros japonês e na guerrilha da selva, tudo por culpa do incompetente e narcisista MacArthur. Chegou aos EUA e deu um tiro no tipo errado. Não era ele o culpado, mas sim um empregado negro que entretanto fugiu para o norte, zona libertada, segundo ele. Segundo nós, nem tanto assim, mas... Conclusão: é condenado à cadeira eléctrica, sendo branco e rico, contudo, não o salvam porque teimosamente não disse o motivo e estava-se em período de eleições e o governador precisava de votos (é sempre assim); perde a casa e os hectares com a brutal indemnização à família do pastor e os filhos do falecido que remédio têm senão estudar em busca de mérito. Pasmaceira de livro...

domingo, setembro 21, 2025

Pode ser sempre bem pior

The Worst is not / So long as we can say ''This is the worst''

Shakespeare, Rei Lear

Quando um lagostim, uma morcela e um vinho branco baratinho de 75 euros, se juntam na forma de Isaltino para borregar um fascista que diz que o vai meter na prisão, como se algemar e confinar na prisão as pessoas fosse a única verdade que lhe sai da boca e a previsível forma de cumprir verdadeiramente o seu programa político, conseguimos antever o que aí vem e ao que chegámos. Quando vejo a esquerda a glorificar a morcela de Oeiras, então batemos no fundo, cujo alçapão escondido se abriu para bater ainda mais fundo e assim sucessivamente até que o poço em que caímos todos se transforme em masmorra. Claro que então será tarde demais. Shakespeare tinha toda a razão quando Edgar diz: «Não é o pior enquanto conseguirmos dizer ''Isto é o pior''.» Muitas lições retiramos com a leitura avisada deste inglês ainda assim com origem galesa. 

A questão não está tanto na multiplicação deste tipo de ''reels'' nas redes sociais que, evidentemente, têm o algoritmo completamente dominado pela agenda ideológica da extrema-direita. Sabemo-lo e calculamos que as opiniões que são publicadas defendendo posições, mesmo em bases mínimas, a solidariedade, a dignidade e a humanidade (que não o ambíguo ''humanismo'') são alvo de diminuição clara de visibilidade e mesmo de censura aberta e sem recurso a protestos, visto que as nossas opiniões estão privatizadas e reguladas em empresas multinacionais. O antifascismo já mal cabe aqui, não tem lugar e se repararem bem, como importante indicador, as páginas «antifa» já quase despareceram há muito.

O problema maior reside no jornalismo autointitulado de «referência». O fascínio mal contido ao fascista maior e ao partido que ele criou, através das páginas destes jornais e televisões, é enorme nas redes sociais. Completamente desproporcionada, chamam Ventura para os seus posts a todo o momento, mesmo quando é atacado, por vezes de uma maneira pífia, que só serve para lhe darem mais poder. É evidente que isto é feito para aumentar audiências que perdem todos os dias pelos meios tradicionais. Duvido muito que a informação, ou «debates», ainda sejam procurados como há uns anos, o que indica que as direcções e administrações estão a perder o controlo da própria informação. Os comentários das televisões privadas e jornais nas redes sociais tornaram-se um autêntico esgoto em que tudo é possível dizer e defender: a pena de morte, as prisões a esmo, o aumento das penas já de si enormes para pequenos crimes, o gozo pela miséria, a denúncia, o boato torpe, a mentira, a menorização da mulher, a boçalidade, a abertura à caça de transgéneros, o racismo, o ódio à pobreza e por aí fora. Isto é permitido por quase todos os meios de informação conhecidos e com ainda alguma expressão no país. Nada é regulado. As caixas de comentários são, neste momento, o pior de que falava no início. E em Rei Lear, o pior ainda não é o pior, porque se disse que isto era o pior!

alc

Listagem de conteúdos tóxica

Gostaria de partilhar convosco a listagem de conteúdos nos últimos 10 minutos na minha página de FB, onde a grande maioria dos amigos é antifascista. Não disse "de esquerda" propositadamente, mas também são muitos. Inegável. Tento não ter fachos por aqui por uma razão simples: não consigo argumentar com o fascismo. É como argumentar com alguém que acredita em milagres. Não dá. Quando os topo, clico numa barra preta que me pergunta se os quero bloquear. Quero.

Por esta ordem de razões, não entendo por que razão, nos últimos 10 minutos de passeio descontraído (pensava eu) por esta coisa, o que me aparece sempre destacado é André Ventura. Hambúrgueres, viagens, candidaturas, conselhos nacionais, etc. Atrás dele, o Chega e sus muchachos mais as histórias edificantes que arrastam, o tiro no Kirk e reels com toda a sua pobre ideologia, o almoço de Gouveia e Melo com Ventura, o Henrique Raposo, um Tavares, a Maria João Marques, o Nuno Rogeiro junto com um avôzinho reaça e meio estúpido, o Trump e Netanyahu. Todos eles com insultos à mistura, a outra face da propaganda negativa à propaganda positiva que eles fazem. Certo é que até há alguns insultos com piada. Mas eu pergunto: a quem isto serve? Salvaguardando o genocídio em curso na Palestina cuja luta é uma causa a que não podemos virar a face sem que perdamos a nossa, não vejo nada de razoável nesta inundação de posts. Faz-nos mal e o fascismo também se alimenta desse destempero, acreditem. Gostava muito que a esquerda discutisse a sério as múltiplas possibilidades de uma outra sociedade (não esta, evidentemente) que valesse a pena lutar e não se acantonasse somente no reel, no meme, na boca antifascista.

quinta-feira, setembro 18, 2025

"O Ruído do Tempo", Julian Barnes

 

Quetzal, 2016, reimpr.2024. Tradução de Helena Cardoso
Volto a Julian Barnes e os mais atentos por aqui saberão por que razão o digo. Este livro é um tratado sobre a cobardia. Sobre as tragédias e as farsas que lhe dão origem. Julian Barnes subverte a ordem dos factores que Marx criou para explicar a causa dos fenómenos sociais (ou da sua impossível repetição) e que, na URSS estalinista, não é arbitrária - assim é, ao contrário, grafada «a farsa e a tragédia» (pág.52). A farsa como espectáculo primeiro e a tragédia como seguimento lógico do que não foi possível ser observado como sucesso do poderoso estado da burocracia estalinista. Ou ainda e mesmo pelo seu sucesso, a tragédia chega inalterável aos seus autores. Chostakovich, um compositor russo impossível de ser contornável, é a personagem deste romance de Barnes. Não é um cobarde, mas é ambíguo na sua relação com o poder. Foi chamado uma única vez para ser interrogado na Lubianka e quem desapareceu foi o seu interrogador. Teve uma sua ópera censurada por Jdanov e desistiu de voltar a compor mais óperas, foi humilhado por Stravinski e Nabokov (provou-se mais tarde que este era pago pela CIA) em Nova Iorque, aceitou críticas de Prokofiev embora se dessem bem, aplaudiu um discurso de um funcionário jdanovista que o acusava de «formalismo» porque se encontrava imune aos longos rebates ideológicos que não ouvia, aceitava os editoriais do Pravda que diziam que a sua música era uma «chinfrineira ruidosa», burguesa e muito pouco melodiosa. Aceitava tudo isto e corrigia-se. Até quase ao insuportável. 

Durante a leitura deste livro perguntei-me qual a razão que leva uma personagem brutal como Estaline (Lenine dixit) a deixar incólumes a poeta Akmathova, o escritor Pasternak, a opositora Kollontai, ou outros artistas do futurismo russo, sem ser por puro capricho. Tal como aconteceu a Chostakovitch. Tendo aceitado tudo o que o poder lhe deu, deixou-se ir aos poucos, indiferente, anestesiado e focado possivelmente na única vontade que ainda o fazia mover: a música, os dois filhos e talvez a recordação terna das suas mulheres, mas a que preço? Parece-me ser esta a questão central de «O Ruído do Tempo». Que nos faz pensar que um único acto de coragem pode ser a factura incómoda da cobardia ou indiferença presente em nós.

É evidente que Estaline é dos poucos políticos que tinha uma capacidade de previsão inolvidável. Previu que três quartos do seu comité central morreria antes dele, mesmo os velhos membros do partido bolchevique, o que é obra de um chefe visionário, um homem virado para o futuro através, igualmente, da retorcida engenharia das almas. Viu-se no que deu. O realismo nunca foi tão falho de realidade quanto o tempo que levou Estaline a ser poder e a exercê-lo com a burocracia de Jdanov. Chostakovitch faleceu em 1975 e nem assim a sua ambiguidade foi levada com a morte dele. O seu tutor político, Khrennikov, ex-secretário-geral do Sindicato dos Compositores Soviéticos, vindo de Kruchev e Brejnev, foi condecorado aos 94 anos por Putin. A farsa continuou.

«Quando olhamos para trás, as tragédias parecem farsas. Era o que sempre dissera, no que sempre acreditara. E o seu caso pessoal não era diferente. Sentira às vezes que a vida dele, como a de muitos outros como a do país, era uma tragédia; tragédia em que o protagonista só podia solucionar o seu dilema intolerável matando-se. Mas ele não o fizera. Não, não era shakespeariano. E agora que vivera demasiado, já começava a ver a sua própria vida como uma farsa.» (pág.177)

Nota última: fui ouvir Chostakovitch, evidentemente. Estando muito longe de ser um especialista em música clássica, ouvi a sua 2ª sinfonia (criticada por Jdanov), a 5ª e a 8ª. Continuarei a ouvi-lo, mas que os meus duros ouvidos deram pela diferença entre a primeira e as outras duas, foi verdade. É possível que Jdanov se tenha enganado? Que a 2ª fosse mais melódica que as últimas de Chostakovitch? Foi o que me pareceu. Os especialistas, os melómanos e os musicólogos saberão dizê-lo.

alc

domingo, setembro 14, 2025

«Uchronie», Emmanuel Carrère

 

P.O.L, 2025 (1986, com o título de «Le Détroit de Behring»)
O conceito de ucronia é relativamente recente e nem os principais dicionários, mesmo o respeitável Larousse e ainda em 1980, conheciam a palavra, embora ela tenha sido utilizada pela primeira vez em 1876 por um filósofo francês de nome Charles Renouvier. Fui rapidamente consultar o meu Houaiss e helas! lá estava ela, a ucronia, junto com o fundador do conceito com a seguinte definição: «1. História apócrifa, recriada em pensamento como poderia ter ocorrido; 2. período, época, tempo imaginário; recordação fictícia dentro de um tempo.» Quanto ao étimo o dicionário coloca-o no francês, embora seja mais óbvio o grego com a partícula de negação «u» junto com «cronos» que, como sabemos, significa «tempo» (com o respectivo deus grego a acompanhar). Portanto, o sr. Renouvier, criou a palavra no seguimento da «utopia» de More no século XVI: o termo «distopia» cujo étimo também é aposto no inglês dystopia só é reconhecido como entrada em meados do século XX com Orwell e Huxley. 

Quanto a utopias e distopias qualquer um de nós já trata por tu estas definições, por via de vidas políticas miseráveis (logo derrotadas) que experimentámos logo aos vinte. Os mais novos terão outras realidades não menos exaltantes. Isto não é para todos e conhecemos bem quer o entusiasmo utópico, quer o horror distópico (o computador disse-me agora que não conhecia esta expressão, imagine-se) tenha as formas que tiver. Mas...e a ucronia? Conhecia-a pela primeira vez com a leitura de «O Homem do Castelo Alto», de Philip K. Dick e que aqui fichei num post. Emmanuel Carrère, na minha opinião um grande escritor, também o cita como livro importante para o desenvolvimento de uma narrativa ucrónica em que os americanos teriam perdido a II Guerra com os japoneses. Este imenso «SE» é a base de toda a ucronia. Mas Emmanuel Carrère avisa-nos, com toda a razão, que não basta somente um «se» para tudo ser uma ucronia. Tem ser observado um registo sério em que as causas e os efeitos históricos tenham sentido, ou seja, que a História adquira uma certa verosimilhança, que a cronologia tenha sentido e as consequências sejam consonantes às causas que as provocaram. O processo histórico nada terá então de novo, a não ser o baralhar dos dados. O que é claramente um processo ideológico, de escolha do escritor e anuência ou rejeição do leitor. Voltando à ucronia de P.K. Dick: os americanos não são completamente derrotados, virão a ganhar em 1949 através da resistência interna, pela fraqueza das potências do Eixo que dominavam a Europa e que entretanto se viram envoltas em lutas internas pelo poder e corrupção. Hitler terá morrido em 1946, doente. No final tudo fica na mesma. As potências aliadas reencontram-se numa democracia musculada e controlada no seu seio e quem provocou a guerra, como a Alemanha, o Japão, ou a Itália, vivem as suas vidas como se não fosse nada e em prosperidade. Ironia da ucronia, não é? Rima e é verdade... no fundo estaríamos como hoje e os 60 milhões de mortos seriam apenas danos colaterais.

Os grandes «ses» da História apresentam-se agora em «Uchronie». Emmanuel Carrère provoca-nos com as seguintes hipóteses, não todas originais nele, mas existentes desde, pelo menos, o século XVIII embora de escritores anónimos (um deles seria Descartes?, coloca Carrère em questão): e se fosse Barrabás a ser escolhido por Pilatos para a crucificação e não Cristo, haveria hoje cristianismo? Ou seja, morrendo de velho Jesus Cristo e pregando até provavelmente ninguém o ouvir e Judas estar quietinho no seu papel de apóstolo em luta com os demais, o cristianismo teria ultrapassado a seita? Este, aliás, é um tema querido a Emmanuel Carrère, desde a publicação de «O Reino» (Tinta-da-China) e que já escrevi aqui sobre ele. Não como ucronia, mas como a ideia inicial de Cristo se tornou igreja. Continua: e se Napoleão tivesse ganho Waterloo? A Europa hoje seria a mesma? E se a Reforma Protestante tivesse ganho à Inquisição latina? E se Gavrilo Princip tivesse matado o amante da mulher completamente transtornado e não tivesse atirado ao Arquiduque Francisco Fernando para reconhecimento posterior, teria existido a matança que foi a I Guerra? Agora nós, que não o Carrère: e se Emídio Santana e os anarquistas tivesses tido êxito no atentado a Salazar em 1937? Teria havido a mais longa ditadura da Europa? E nem num exercício de ucronia isto se deve colocar, mas se a pistola do tal coronel aliado do salazarismo não tivesse encravado e Salgueiro Maia tivesse soçobrado logo ali no Terreiro do Paço, entraríamos para o Guiness como a mais longa ditadura, agora, do mundo? E se Cavaco Silva se tivesse engasgado violentamente com a fatia de bolo-rei, engolindo o brinde, não permitindo discursar durante todo os seus dias de governo?

Deixo-vos com um trecho de «Uchronie» de Emmanuel Carrère que não resisto aqui a colocar, mesmo com tradução minha, o que desde já me leva a pedir as minhas maiores desculpas. É sobre a possibilidade de Hitler ter vingado na sua veia de pintor e existente em «Lord of the Swastika», de Norman Spinrad:

«Nascido na Áustria a 20 de Abril de 1889, Adolf Hitler emigrou jovem para a Alemanha. Serviu o exército alemão durante a Grande Guerra, depois foi integrado em movimentos de agitação política, em Munique. Este período durou até que imigrou de novo, em 1919. Fixou-se em Nova Iorque onde, aprendendo o inglês, levou uma vida precária, exercendo diversos biscates e ocupações nos meios boémios de Greenwich Village. Seguidamente, começou a trabalhar como desenhador de bandas desenhadas. Vendeu a sua primeira prancha em 1930, na revista de ficção científica ''Amazing''. A partir de 1932, colabora regularmente na maior parte das publicações de FC e, em 1935, o seu inglês pareceu-lhe suficientemente desenvolvido para se iniciar como autor de ficção científica. Romancista, ilustrador, editor de um fanzine, consagrou o resto da sua vida a este género literário. Obtém a título póstumo o Prémio Hugo na convenção mundial de 1955, para ''O Senhor da Suástica'', a sua obra-prima, que terminou em 1953, pouco antes da sua morte. Durante anos, foi uma figura familiar do meio da ficção científica, um contista volúvel e malicioso, bem conhecido pelos seus fãs. Hitler deixou-nos, mas as obras que nos deixou permanecem como um tesouro maravilhoso para todos os apaixonados de ficção científica.» (pág.177,178) 

Hitler como autor galardoado de ficção científica, não é enternecedor? Mas a ideologia, embora irónica, está por detrás desta ucronia aparentemente suave e até desejável para as consciências. Mas não embandeiremos em arco: a História não é feita de «ses». Se não houvesse um Hitler, haveria outro e outro e outro, conforme os diversos interesses no jogo político, económico e social. Isso assusta-nos um pouco, mas não é determinismo histórico. Os acontecimentos surgem como um conjunto de causas que confluem num sentido comum. Os professores sabem-no bem quando descrevem, nas aulas, um acontecimento que marcam negativamente o curso da História. O sobressalto perante o horror, interiorizado pelos alunos, como imagens de guerra, invariavelmente, termina com um «...e se?» Provavelmente, seria melhor dar atenção a estas tentativas de reescrever o passado. A ucronia embora inócua liberta-nos, nem que seja por minutos. Um livro a ler se algum editor português propusesse a sua tradução.

alc

segunda-feira, setembro 08, 2025

"Luís de Camões", Aquilino Ribeiro

 

Bertrand, 2014 (1ª ed.,1950). Prefácio de António Valdemar
O que aprecio mais em Aquilino, para além de uma escrita única, incomparável, rica, é a sua inteligência viva. Quando esta última qualidade se alia ao rigor e às operações que obrigam à sua existência, como a indução, a dedução e a comparação das fontes disponíveis, temos uma obra ímpar que não se esgota neste livro que ainda se enquadra nos 500 anos do nascimento de Luís de Camões, visto que Aquilino tende a aceitar a data de 1525 como a data de nascimento do poeta.

Mas existem outras razões para ler este livro: Portugal e os portugueses, o povo e a suposta elite inculta e marialva, estão ali retratados de uma forma que não deixa dúvidas sobre o que fomos, o que ainda somos e, desgraçadamente, o que viermos ainda a ser. Sendo que o futuro espera por nós, não se vê coisa melhor que uma pobreza de espírito, conquanto admirável pela dimensão, das governanças e das gentes que as compõem. Na política e na cultura. Pobreza económica que não faltou a Camões, como todos sabemos, e que foi inscrita no túmulo do poeta por um nobre ressabiado, embora dado ao mecenato, um tal Coutinho dado a versos enxabidos e dormentes, como um poeta «...que viveu pobre e miseravelmente». O termo «miserável», segundo Aquilino, nada tem a ver com as dificuldades de que padeceu Camões, mas sim com a vida que viveu na Mouraria e na noite lisboeta.

Camões com sangue na guelra na juventude, constante enamorado, versejador repentista nas tascas, castigado diversas vezes pelo município e pelas leis, desterrado em Ceuta, ferido possivelmente num raide contra os árabes, desterrado novamente para a Índia, naufragado no Mekong, funcionário em Macau, destituído sem sabermos o porquê, ou adivinhando-o somente, quase a morrer à fome em Moçambique, valeu-lhe então Diogo de Couto que o trouxe para Lisboa. Quando chega, a peste recebe-o em Lisboa o que o obriga à quarentena. A verdadeira desgraça estava a acontecer, contudo, com o «rei histérico» (Aquilino verrinoso) na preparação de Alcácer-Quibir. Dezassete anos depois, a Lisboa que deixou nada tinha a ver com esta nova realidade que encontrou: os habitantes eram outros, que vinham de um interior abandonado, a preparação da guerra exigia novas funções, os seus amigos e conhecidos cirandavam pelo Império em busca de fortunas inexistentes ou simplesmente roubadas à má-fila. Os Lusíadas estão consigo e são imprimidos já em Lisboa, a primeira edição com erros tipográficos e alguns de ortografia que Camões corrige para uma segunda reimpressão, a tal com o pelicano do frontispício para a direita. Não se podia furtar à Inquisição e foi um tal Frei Bartolomeu que impôs a censura que existiu, negociada com o poeta e completamente abstrusa, tão ridícula que se consegue ler o que foi aposto pela moralidade católica em substituição, ou menorização, do paganismo grego e romano. A bela e desgraçada Vénus tinha sempre de ser aceite pela Virgem Maria.

Aquilino defende que Camões não teria sido ignorado pelos seus. É provável, até, que nem o conhecessem pessoalmente, mas já é impossível que não tivessem lido «Os Lusíadas», pelo menos desde 1572, data da sua primeira impressão de uns 300 ou 400 exemplares (ou nem isso). Tendo-se recolhido nos dominicanos de Lisboa, Luís de Camões, sabia que daí, da venda dos livros, não ganharia nada, mesmo que a ninharia da tença anual de 15 mil réis, desse para sobreviver com dificuldade junto com a sua mãe e o ajudasse na tipografia. Mas o «desconhecimento» dos Lusíadas pelos seus pares leva a que se pergunte o tamanho enorme da inveja que recaiu sobre um desgraçado poeta, que possivelmente andava de muletas, cego de um olho, maltrapilho, ainda por cima escudeiro por sortilégio, já que não se prova nobreza. Aliás, um dos factores mais ridículos da maioria dos biógrafos de Camões e desconstruído completamente por Aquilino, é o facto de o quererem nobilitar à força, ao ponto de o colocarem como estudante em Coimbra, o que não é provado em lado algum, mesmo que o poeta tenha metaforicamente referido o Mondego. Mas, para ser poeta de conhecimento imenso, teria logicamente de ter estado na vetusta universidade e ser nobre, claro está, mesmo que o vento renascentista não tenha soprado muito para aqueles lados e rompido as teias de aranha que lhe caíam das paredes e das sebentas dos mestres, ou mesmo que a grande maioria dos nobres fosse de todo analfabeta.

Aquilino dá-nos neste livro de 1950, agora editado pela Bertrand, a distinção clara entre o que será verdadeiro e o que é verosímil na vida do poeta. É uma distinção que fará toda a diferença, passe o pleonasmo. Mas o retratado não sai beliscado, embora a sociedade portuguesa seja chamuscada pela arrogância, ignorância das chamadas elites e pelo poder absoluto de que os portugueses deram mostras ímpares de grande simpatia. Ironia da História: foi Filipe II, o primeiro de Portugal, que pagou à mãe de Camões as tenças em atraso (nem lhe pagaram o que deviam) e aumentou-a, por vergonha da quantia irrisória e que editou e divulgou «Os Lusíadas» a partir de duas velhas edições que chegaram a Castela e também foi ele que patrocinou a edição das «Rimas», a sua poesia lírica, sem o cunho censor das edições portuguesas após a sua morte e já sem a «negociação» com a Inquisição. Ficou a versão da reimpressão de 1572 ou 73. Mas por aí tudo bem, não vem mal ao mundo: as chamadas elites e poetas coevos, os tais que «desconheciam» Camões, eram fervorosos apoiantes da União Ibérica. 

Última nota sobre as edições de Aquilino pela Bertrand: não creio que Aquilino Ribeiro necessite de prefácios embora alguns sejam úteis e interessantes, mas que dizer de algumas obras cujos prefaciadores são gente tão «instruída» quanto um Aníbal Cavaco Silva, um Marques Mendes, um Augusto Santos Silva ou um beato Mário Cláudio? A Bertrand entende ser este um valor acrescentado a um escritor da craveira de um Aquilino?

alc

Yukio Mishima. Estudos 2

 

Yukio Mishima. Estudos 2. Tinta-da-china.
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