P.O.L, 2025 (1986, com o título de «Le Détroit de Behring»)
O conceito de ucronia é relativamente recente e nem os principais dicionários, mesmo o respeitável Larousse e ainda em 1980, conheciam a palavra, embora ela tenha sido utilizada pela primeira vez em 1876 por um filósofo francês de nome Charles Renouvier. Fui rapidamente consultar o meu Houaiss e helas! lá estava ela, a ucronia, junto com o fundador do conceito com a seguinte definição: «1. História apócrifa, recriada em pensamento como poderia ter ocorrido; 2. período, época, tempo imaginário; recordação fictícia dentro de um tempo.» Quanto ao étimo o dicionário coloca-o no francês, embora seja mais óbvio o grego com a partícula de negação «u» junto com «cronos» que, como sabemos, significa «tempo» (com o respectivo deus grego a acompanhar). Portanto, o sr. Renouvier, criou a palavra no seguimento da «utopia» de More no século XVI: o termo «distopia» cujo étimo também é aposto no inglês dystopia só é reconhecido como entrada em meados do século XX com Orwell e Huxley.
Quanto a utopias e distopias qualquer um de nós já trata por tu estas definições, por via de vidas políticas miseráveis (logo derrotadas) que experimentámos logo aos vinte. Os mais novos terão outras realidades não menos exaltantes. Isto não é para todos e conhecemos bem quer o entusiasmo utópico, quer o horror distópico (o computador disse-me agora que não conhecia esta expressão, imagine-se) tenha as formas que tiver. Mas...e a ucronia? Conhecia-a pela primeira vez com a leitura de «O Homem do Castelo Alto», de Philip K. Dick e que aqui fichei num post. Emmanuel Carrère, na minha opinião um grande escritor, também o cita como livro importante para o desenvolvimento de uma narrativa ucrónica em que os americanos teriam perdido a II Guerra com os japoneses. Este imenso «SE» é a base de toda a ucronia. Mas Emmanuel Carrère avisa-nos, com toda a razão, que não basta somente um «se» para tudo ser uma ucronia. Tem ser observado um registo sério em que as causas e os efeitos históricos tenham sentido, ou seja, que a História adquira uma certa verosimilhança, que a cronologia tenha sentido e as consequências sejam consonantes às causas que as provocaram. O processo histórico nada terá então de novo, a não ser o baralhar dos dados. O que é claramente um processo ideológico, de escolha do escritor e anuência ou rejeição do leitor. Voltando à ucronia de P.K. Dick: os americanos não são completamente derrotados, virão a ganhar em 1949 através da resistência interna, pela fraqueza das potências do Eixo que dominavam a Europa e que entretanto se viram envoltas em lutas internas pelo poder e corrupção. Hitler terá morrido em 1946, doente. No final tudo fica na mesma. As potências aliadas reencontram-se numa democracia musculada e controlada no seu seio e quem provocou a guerra, como a Alemanha, o Japão, ou a Itália, vivem as suas vidas como se não fosse nada e em prosperidade. Ironia da ucronia, não é? Rima e é verdade... no fundo estaríamos como hoje e os 60 milhões de mortos seriam apenas danos colaterais.
Os grandes «ses» da História apresentam-se agora em «Uchronie». Emmanuel Carrère provoca-nos com as seguintes hipóteses, não todas originais nele, mas existentes desde, pelo menos, o século XVIII embora de escritores anónimos (um deles seria Descartes?, coloca Carrère em questão): e se fosse Barrabás a ser escolhido por Pilatos para a crucificação e não Cristo, haveria hoje cristianismo? Ou seja, morrendo de velho Jesus Cristo e pregando até provavelmente ninguém o ouvir e Judas estar quietinho no seu papel de apóstolo em luta com os demais, o cristianismo teria ultrapassado a seita? Este, aliás, é um tema querido a Emmanuel Carrère, desde a publicação de «O Reino» (Tinta-da-China) e que já escrevi aqui sobre ele. Não como ucronia, mas como a ideia inicial de Cristo se tornou igreja. Continua: e se Napoleão tivesse ganho Waterloo? A Europa hoje seria a mesma? E se a Reforma Protestante tivesse ganho à Inquisição latina? E se Gavrilo Princip tivesse matado o amante da mulher completamente transtornado e não tivesse atirado ao Arquiduque Francisco Fernando para reconhecimento posterior, teria existido a matança que foi a I Guerra? Agora nós, que não o Carrère: e se Emídio Santana e os anarquistas tivesses tido êxito no atentado a Salazar em 1937? Teria havido a mais longa ditadura da Europa? E nem num exercício de ucronia isto se deve colocar, mas se a pistola do tal coronel aliado do salazarismo não tivesse encravado e Salgueiro Maia tivesse soçobrado logo ali no Terreiro do Paço, entraríamos para o Guiness como a mais longa ditadura, agora, do mundo? E se Cavaco Silva se tivesse engasgado violentamente com a fatia de bolo-rei, engolindo o brinde, não permitindo discursar durante todo os seus dias de governo?
Deixo-vos com um trecho de «Uchronie» de Emmanuel Carrère que não resisto aqui a colocar, mesmo com tradução minha, o que desde já me leva a pedir as minhas maiores desculpas. É sobre a possibilidade de Hitler ter vingado na sua veia de pintor e existente em «Lord of the Swastika», de Norman Spinrad:
«Nascido na Áustria a 20 de Abril de 1889, Adolf Hitler emigrou jovem para a Alemanha. Serviu o exército alemão durante a Grande Guerra, depois foi integrado em movimentos de agitação política, em Munique. Este período durou até que imigrou de novo, em 1919. Fixou-se em Nova Iorque onde, aprendendo o inglês, levou uma vida precária, exercendo diversos biscates e ocupações nos meios boémios de Greenwich Village. Seguidamente, começou a trabalhar como desenhador de bandas desenhadas. Vendeu a sua primeira prancha em 1930, na revista de ficção científica ''Amazing''. A partir de 1932, colabora regularmente na maior parte das publicações de FC e, em 1935, o seu inglês pareceu-lhe suficientemente desenvolvido para se iniciar como autor de ficção científica. Romancista, ilustrador, editor de um fanzine, consagrou o resto da sua vida a este género literário. Obtém a título póstumo o Prémio Hugo na convenção mundial de 1955, para ''O Senhor da Suástica'', a sua obra-prima, que terminou em 1953, pouco antes da sua morte. Durante anos, foi uma figura familiar do meio da ficção científica, um contista volúvel e malicioso, bem conhecido pelos seus fãs. Hitler deixou-nos, mas as obras que nos deixou permanecem como um tesouro maravilhoso para todos os apaixonados de ficção científica.» (pág.177,178)
Hitler como autor galardoado de ficção científica, não é enternecedor? Mas a ideologia, embora irónica, está por detrás desta ucronia aparentemente suave e até desejável para as consciências. Mas não embandeiremos em arco: a História não é feita de «ses». Se não houvesse um Hitler, haveria outro e outro e outro, conforme os diversos interesses no jogo político, económico e social. Isso assusta-nos um pouco, mas não é determinismo histórico. Os acontecimentos surgem como um conjunto de causas que confluem num sentido comum. Os professores sabem-no bem quando descrevem, nas aulas, um acontecimento que marcam negativamente o curso da História. O sobressalto perante o horror, interiorizado pelos alunos, como imagens de guerra, invariavelmente, termina com um «...e se?» Provavelmente, seria melhor dar atenção a estas tentativas de reescrever o passado. A ucronia embora inócua liberta-nos, nem que seja por minutos. Um livro a ler se algum editor português propusesse a sua tradução.
alc