Bertrand, 2014 (1ª ed.,1950). Prefácio de António Valdemar
O que aprecio mais em Aquilino, para além de uma escrita única, incomparável, rica, é a sua inteligência viva. Quando esta última qualidade se alia ao rigor e às operações que obrigam à sua existência, como a indução, a dedução e a comparação das fontes disponíveis, temos uma obra ímpar que não se esgota neste livro que ainda se enquadra nos 500 anos do nascimento de Luís de Camões, visto que Aquilino tende a aceitar a data de 1525 como a data de nascimento do poeta.
Mas existem outras razões para ler este livro: Portugal e os portugueses, o povo e a suposta elite inculta e marialva, estão ali retratados de uma forma que não deixa dúvidas sobre o que fomos, o que ainda somos e, desgraçadamente, o que viermos ainda a ser. Sendo que o futuro espera por nós, não se vê coisa melhor que uma pobreza de espírito, conquanto admirável pela dimensão, das governanças e das gentes que as compõem. Na política e na cultura. Pobreza económica que não faltou a Camões, como todos sabemos, e que foi inscrita no túmulo do poeta por um nobre ressabiado, embora dado ao mecenato, um tal Coutinho dado a versos enxabidos e dormentes, como um poeta «...que viveu pobre e miseravelmente». O termo «miserável», segundo Aquilino, nada tem a ver com as dificuldades de que padeceu Camões, mas sim com a vida que viveu na Mouraria e na noite lisboeta.
Camões com sangue na guelra na juventude, constante enamorado, versejador repentista nas tascas, castigado diversas vezes pelo município e pelas leis, desterrado em Ceuta, ferido possivelmente num raide contra os árabes, desterrado novamente para a Índia, naufragado no Mekong, funcionário em Macau, destituído sem sabermos o porquê, ou adivinhando-o somente, quase a morrer à fome em Moçambique, valeu-lhe então Diogo de Couto que o trouxe para Lisboa. Quando chega, a peste recebe-o em Lisboa o que o obriga à quarentena. A verdadeira desgraça estava a acontecer, contudo, com o «rei histérico» (Aquilino verrinoso) na preparação de Alcácer-Quibir. Dezassete anos depois, a Lisboa que deixou nada tinha a ver com esta nova realidade que encontrou: os habitantes eram outros, que vinham de um interior abandonado, a preparação da guerra exigia novas funções, os seus amigos e conhecidos cirandavam pelo Império em busca de fortunas inexistentes ou simplesmente roubadas à má-fila. Os Lusíadas estão consigo e são imprimidos já em Lisboa, a primeira edição com erros tipográficos e alguns de ortografia que Camões corrige para uma segunda reimpressão, a tal com o pelicano do frontispício para a direita. Não se podia furtar à Inquisição e foi um tal Frei Bartolomeu que impôs a censura que existiu, negociada com o poeta e completamente abstrusa, tão ridícula que se consegue ler o que foi aposto pela moralidade católica em substituição, ou menorização, do paganismo grego e romano. A bela e desgraçada Vénus tinha sempre de ser aceite pela Virgem Maria.
Aquilino defende que Camões não teria sido ignorado pelos seus. É provável, até, que nem o conhecessem pessoalmente, mas já é impossível que não tivessem lido «Os Lusíadas», pelo menos desde 1572, data da sua primeira impressão de uns 300 ou 400 exemplares (ou nem isso). Tendo-se recolhido nos dominicanos de Lisboa, Luís de Camões, sabia que daí, da venda dos livros, não ganharia nada, mesmo que a ninharia da tença anual de 15 mil réis, desse para sobreviver com dificuldade junto com a sua mãe e o ajudasse na tipografia. Mas o «desconhecimento» dos Lusíadas pelos seus pares leva a que se pergunte o tamanho enorme da inveja que recaiu sobre um desgraçado poeta, que possivelmente andava de muletas, cego de um olho, maltrapilho, ainda por cima escudeiro por sortilégio, já que não se prova nobreza. Aliás, um dos factores mais ridículos da maioria dos biógrafos de Camões e desconstruído completamente por Aquilino, é o facto de o quererem nobilitar à força, ao ponto de o colocarem como estudante em Coimbra, o que não é provado em lado algum, mesmo que o poeta tenha metaforicamente referido o Mondego. Mas, para ser poeta de conhecimento imenso, teria logicamente de ter estado na vetusta universidade e ser nobre, claro está, mesmo que o vento renascentista não tenha soprado muito para aqueles lados e rompido as teias de aranha que lhe caíam das paredes e das sebentas dos mestres, ou mesmo que a grande maioria dos nobres fosse de todo analfabeta.
Aquilino dá-nos neste livro de 1950, agora editado pela Bertrand, a distinção clara entre o que será verdadeiro e o que é verosímil na vida do poeta. É uma distinção que fará toda a diferença, passe o pleonasmo. Mas o retratado não sai beliscado, embora a sociedade portuguesa seja chamuscada pela arrogância, ignorância das chamadas elites e pelo poder absoluto de que os portugueses deram mostras ímpares de grande simpatia. Ironia da História: foi Filipe II, o primeiro de Portugal, que pagou à mãe de Camões as tenças em atraso (nem lhe pagaram o que deviam) e aumentou-a, por vergonha da quantia irrisória e que editou e divulgou «Os Lusíadas» a partir de duas velhas edições que chegaram a Castela e também foi ele que patrocinou a edição das «Rimas», a sua poesia lírica, sem o cunho censor das edições portuguesas após a sua morte e já sem a «negociação» com a Inquisição. Ficou a versão da reimpressão de 1572 ou 73. Mas por aí tudo bem, não vem mal ao mundo: as chamadas elites e poetas coevos, os tais que «desconheciam» Camões, eram fervorosos apoiantes da União Ibérica.
Última nota sobre as edições de Aquilino pela Bertrand: não creio que Aquilino Ribeiro necessite de prefácios embora alguns sejam úteis e interessantes, mas que dizer de algumas obras cujos prefaciadores são gente tão «instruída» quanto um Aníbal Cavaco Silva, um Marques Mendes, um Augusto Santos Silva ou um beato Mário Cláudio? A Bertrand entende ser este um valor acrescentado a um escritor da craveira de um Aquilino?
alc
