quinta-feira, maio 27, 2021
«Pensar a Utopia, Transformar a Realidade», de João Carlos Louçã
sexta-feira, maio 21, 2021
Apresentação de «Suspensão – Ecos de silêncio na cidade exposta», de António Alves Martins.
Eu, o António Alves Martins e Jorge Gouveia Monteiro no Liquidâmbar em 20 de Maio de 2021.
«Suspensão – Ecos de silêncio na cidade exposta» de
António Alves Martins não é só um livro de fotografias. É, antes de mais, poesia
tal como eu a vejo. O autor apresenta-nos uma série de momentos que eu
denominaria de estranhos no sentido literal de estranhamento, de estrangeiro,
de tudo o que vem de fora e que resta imóvel perante nós em simultâneo com uma
estranha viagem pelo tempo, contudo movendo-se sempre olhando e fitando-nos nos
olhos. Através da fotografia, mas igualmente pelo texto.
Neste livrinho extremamente cuidado, como aliás o autor já
nos habituou, tudo é pensado ao pormenor. A capa azul-escura (numa edição
especial de somente 25 exemplares) que o envolve, protegendo-o. Nela, um borrão
de tinta preta que adquire um sinal de aviso para o leitor de um mundo
desenhado a preto, branco e a zonas cinzentas que contrastam e jogam entre si.
O aviso da suspensão do tempo enquanto o folheamos. O negro da capa tem um
possível entendimento. Ele avisa-nos logo no início: «(…) o negro fragmentou-se
em milhares de ínfimas partículas abrindo a inconsciência da matéria em branco.»
«O negro do grito queima o branco» e todo um mundo muito particular pode surgir
daqui. Ou, como escreveu Lawrence Ferlinghetti, em «A Poesia como arte
insurgente»: «A poesia é escrita branca sobre o preto, escrita preta sobre o
branco» ou ainda «Os poemas escondem-se em céus nocturnos, em prédios
degradados, nas folhas varridas pelo vento de Outono, em caixas perdidas e
encontradas (…)» e remeto-me para a misteriosa «caixa que Ernst me confiara»
que António Alves Martins refere na página 5 com os registos fotográficos de
viagens com que procurava «calar o insuportável silêncio do mundo».
E aqui exponho o que se sente ao entrar neste livro. Falo do
tempo. O tempo em suspenso, que paira sobre nós e que nos interpela. Num
pequeno folheto que acompanha o livro onde sobressai em título uma frase de
Jorge Luis Borges, retirada das suas Ficções, afirma-se que os
metafísicos de Tlön «não procuram a verdade nem sequer a verosimilhança:
procuram o assombro». É esse assombro que tento entender neste livro. Para isso,
António Alves Martins, abandona a metafísica ele que, formado em Filosofia,
sabe como ninguém o que leva o processo dessa recusa. Inicia-se então nas memórias
e na viagem derivativa - aqui em pleonasmo, porque uma viagem verdadeira é
sempre uma deriva – buscando a ajuda de Ulisses e um retorno à Grécia e a esse sul que, desconfio, o António nunca abandonou desde que o conheço. Refugia-se
na memória branca de Lisboa, dos velhos bairros e da esquecida Baixa de Coimbra.
Invoca a liberdade frente à totalitária verdade metafísica e parte em busca do
concreto que ele encontra na oficina e no jogo efémero da amizade. Eleva o
livro à força da memória que o assalta por vezes e que regista em palavras e
imagens. Suspende o tempo, a que chama epochè.
Portanto, o tempo em suspensão. Posso encontrar sinais desse
tempo num livro de Constantin Cavafy editado pelo Tó Martins, pela Centelha em
1986, num extracto de um poema de 1918, «Ao pé da casa» cujo ambiente nos pode
levar a algumas fotografias inscritas em «Suspensão – Ecos de silêncio na
cidade exposta»:
Ontem, divagando por um bairro
Mais distante, passei pela casa
Onde eu às vezes ia, ao tempo de
ser jovem.
Do meu corpo o Amor se apoderou
ali
Com sua força incrível. Ontem,
Quando passava pela velha rua,
Lojas, calçada, pedras,
Paredes e varandas e janelas,
Tudo se transformou por magia do
amor.
Nada restou que fosse pobre e vil.
(…)
Numa análise forçosamente ligeira ou apaixonada que faça das belíssimas fotografias que compõem o livro, socorro-me (tenho sempre de socorrer-me neste campo) da pintura e do desenho. O branco, o espaço, o intervalo ou se quiserem o limiar são, segundo Byung Chul-Han, zonas de esquecimento, de perda, de medo ou de angústia, mas igualmente de anseio, de esperança, de aventura (daí o tema da viagem em «Suspensão»), de promessa, de espera. Não será necessário ir de novo a esta filósofo para entender que o intervalo também nos impele para o movimento ou para a paragem, para a adivinhação. Estas fotografias são momentos que nos remetem para um acontecimento, para um caminho constituído por uma desaceleração do tempo, mas também para a monocromia, em negro mas também em branco que pode indiciar uma representação do invisível, do que está para lá, do intangível, se quisermos (dou o exemplo da fotografia quase negra em tríptico no final do livro).
Para finalizar, e apoiando-me novamente na pintura, creio que o autor deste livro nunca poderia entrar no mundo futurista de um Giacomo Balla, de um Marinetti ou de um Almada Negreiros, mas sem grandes dúvidas da minha parte (e peço desculpa se errar) as pinturas monocromáticas de um Fernando Calhau, de um Julião Sarmento ou de um Ernesto de Sousa caberiam - quem sabe? e recusando qualquer compartimentação absurda - na «filosofia» coerente que o Tó tem apresentado nos seus livros e nas suas fotografias.
António Luís Catarino
Maio de 2021
quinta-feira, maio 20, 2021
«Mulheres da Clandestinidade», de Vanessa Almeida
Um dia, quando «Mulheres da Clandestinidade» deu à estampa, comentei-o com uma turma do 12º ano de uma Escola do Porto que por acaso era bastante interventiva e curiosa (mais elas) sobre a História contemporânea. Como estudavam para o exame e este se aproximava calculando que quase sempre sai uma questão sobre o Estado Novo o interesse era normal que acontecesse. No entanto, passados alguns dias e já com o sufoco da aproximação do exame em que a «matéria» se condensava, como sempre estupidamente, vi um grupo de alunas com este livro da Vanessa Almeida nas mãos e que me diziam que o gostariam de comentar na aula. Como tinha sido eu a emprestá-lo acedi não sem alguma preocupação ligada ao «cumprimento do currículo». Contudo, foi das aulas mais profícuas que tive e que me deu para pensar bastante sobre o papel de um professor no sistema de ensino que nos enforma e, porque não dizê-lo, nos deforma. Quantos manuais escolares que se debruçam sobre a ditadura salazarista e marcelista são insonsos, embasbacadamente neutros sem o conseguirem ser de todo e repetitivos (mesmo tendo eu participado em alguns deles e tentando sempre mudar isso, não sei se com algum sucesso).
A aula de duas horas, repetiu-se mais tarde sobre o mesmo tema. Estas alunas e alguns alunos tinham a ideia de uma ditadura morna, alguns confusos sobre os conceitos interiorizados por alguns professores entre «conservadorismo autoritário» versus «fascismo», não sabiam de todo as condições da clandestinidade e da luta das mulheres que Vanessa Almeida retratava ali. Comunistas, vindas de estatutos socioeconómicos variados, a maior parte pobres, camponesas, mas igualmente intelectuais que deram a sua vida a uma causa em torno da liberdade, de uma vida mais digna e pelo ideal comunista. O conjunto de alunas que leram os depoimentos de uma Maria Machado, de uma Margarida Tengarrinha, de uma Sofia Ferreira, de uma Teodósia Gregório ou de uma Fernanda Alves Rodrigues, entre outras, ficaram atónitas em relação a esta resistência à ditadura. O ser e estar clandestino era entrar numa outra dimensão, num outro mundo que julgavam acontecer só em filmes ou na literatura. O que me levou na ocasião a pensar, e hoje estou mais convicto disso, que o melhor manual escolar é o conjunto de livros como «Mulheres da Clandestinidade» será um exemplo em interligação com outros. Está lá tudo. Mesmo as circulares da PIDE foram escalpelizadas, o que deu pano para mangas sobre possíveis infiltrações e como seria isso possível. A tortura de Conceição Matos foi especialmente dolorosa para estas jovens alunas, assim como foi a separação dos filhos das clandestinas, muitos com destino a Ivanovo na URSS. Mas também mulheres que aprenderam a ler e a escrever através da imprensa do PCP, elas próprias clandestinas e que rodearam a impossibilidade de frequentar a escola «cá fora», ou seja, no ensino salazarista. Todo um manancial de depoimentos que ilustram bem a relação entre o amor, a luta, a firmeza no que se acredita, a utopia e a imaginação. O que os jovens de hoje dão importância, mesmo contando-lhes o passado próximo.
Se há alguma conclusão, ou conclusões, que se possam extrair desta descrição, e acredito que será mais comum do que se pensa, é que «Mulheres da Clandestinidade» devia fazer parte do Plano Nacional de Leitura. Não só porque se trata de um trabalho aturado, honesto, não sectário, sociologicamente sustentado com nomes e referências que reconhecemos, mas também por acreditar que o PNL deve ser multidisciplinar e não deve ficar refém da disciplina dedicada à prática de língua portuguesa. Em cada professor, deveria existir um pesquisador. Ou provavelmente adormeceremos a ler manuais escolares o que nos colocaria na prateleira dos preguiçosos.
Um livro a ler sempre. Cá ficará.
António Luís Catarino
terça-feira, maio 18, 2021
«O Reino», ou o evangelho segundo Emmanuel Carrère
sexta-feira, maio 14, 2021
Dois gigantes do Teatro: Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo
Jorge Silva Melo não é Luís Miguel Cintra, nem Luís Miguel Cintra é Jorge Silva Melo. O facto de os dois serem, a partir de 18 de Maio deste ano, doutores honoris causa pela Faculdade de Letras de Lisboa é justíssimo, embora não entenda muito bem por que razão foi este prémio atribuído em simultâneo. Na minha opinião devia ser dado separadamente, mesmo que os seus caminhos se entrelaçassem e tivessem trabalhado juntos, além de serem amigos e ao que suponho admiradores da carreira um do outro. Mas são diferentes quer no repertório, quer na personalidade, ao que julgo. Ambos escolheram o clássico e devo-lhes dos melhores momentos de teatro da minha vida. Não é de somenos, o trabalho de ambos entranhou-se na minha pele em momentos únicos. O Teatro tem esse condão em mim e em amigos meus.
Dou-vos vários exemplos: o meu contacto com o teatro militante ainda antes de 25 de Abril, em 1973 e puto do liceu, em plenas «eleições» marcelistas assistimos ao «Asno» pelo TEUC o que deu proibição pela polícia e censura e porrada de criar bicho fora do Teatro Avenida, em Coimbra. Foi o meu primeiro contacto físico (e de que maneira!) com o teatro «a sério». Nervoso, visto que eu e João Pinto Ângelo atirávamos do 1º Balcão comunicados da CDE cá para baixo, tremia como varas verdes e nem dei pelo enredo que gozava com Américo Tomás. Ah e lembro-me do literalmente grande João Vilar! Portanto coisa física e militante.
O teatro clássico e de combate veio com Jorge Silva Melo, após o 25 de Abril com Brecht e a assistir às peças que nos levava quase a sentirmo-nos no palco e a partilhar com ele a forte comunicação que sentíamos e que Jorge Silva Melo imprimia com os seus actores. Mas não me esqueço igualmente da seriedade e das entrevistas a um grande Álvaro Lapa e a Joaquim Bravo, este último meu colega em Lagos e que assistia, caladinho no seu atelier cheio de gatos, às provas em papel manteiga que depois transpunha para a pintura. Foi por ele que conheci, numa célebre tarde, Palolo e um jovem Cabrita Reis que pintava os seus quadros ao estilo de Pollock e a que Bravo afirmava ser «puro barroco». Tempos inesquecíveis em que o nome de Jorge Silva Melo vinha variadíssimas vezes à baila. Tornou-se para mim «o» teatro. E avanço a hipótese: não fossem estes documentários (onde a linguagem teatral estava sempre presente) falar-se-ia da mesma maneira destes pintores? Ou não ficaria qualquer registo que fosse? Obrigado, Jorge Silva Melo e também pela excelente colecção de livrinhos de teatro que ainda nos liga a ele pela leitura (e como faz falta essa leitura de teatro!)
Falei há pouco de um amigo que comigo partilhou a estreia do meu primeiro teatro a sério, se bem que não chegasse ao fim pelas circunstâncias que referi. Mas há um outro que testemunhou a comoção que senti ao ver duas peças de Luís Miguel Cintra encenadas pela Cornucópia e que até hoje não esqueci: foi o António Alves Martins que me acompanhou em «A Missão» de Heiner Müller e, em 1992, em «O Público» de Lorca. Neste último, o choque físico como espectador foi tão grande que só consegui falar, literalmente, umas boas horas depois e com ajuda de algumas cervejas. E que actor Luís Miguel Cintra é! Ou seja, o teatro cumpriu, tal como alguns poemas de Herberto Helder que não nos permitem continuar sequer a leitura de outros, durante largo tempo. A poesia, aqui, também cumpriu.
Aos dois, vai um abraço sentido e um muito obrigado por eu continuar a ver teatro de qualidade de gente mais nova, cuja marca da Cornucópia (entretanto desaparecida) e dos Artistas Unidos é e será sempre indelével.
António Luís Catarino
quarta-feira, maio 12, 2021
«A Gorda», de Isabela Figueiredo
Acabamos de ler «A Gorda» de Isabela Figueiredo e instala-se o incómodo que o título já sugere. Uma narrativa baseada na relação da autora com o corpo, mas não só. Igualmente com uma sexualidade vivida na orla da «normalidade» imposta por convenções quer da família, quer do meio onde cresceu. Aliás, pesquisando em entrevistas que Isabela Figueiredo deu quando da publicação da sua última obra, reconhece que se sentiu sempre «anormal, imprópria, desadequada». Essa impressão foi explanada no obra de uma maneira muito veemente, revoltada até, mas sem auto-comiseração ou sequer complacência para com a própria. Com uma vontade muito acentuada ela vai dando à sua vida uma linha coerente, violenta, quase frenética não fossem os anos decorridos, embora Maria Luísa, a personagem, procure uma paz desejada. A autora, nascida em Lourenço Marques em 1963, conhece desde pequena o colonialismo e transmite-nos o seu diferendo com o pai, ligado à máquina colonial para quem trabalhou e lhe incutiu os valores racistas e xenófobos de um império que soçobrava em guerra, que a autora mal conheceu, pois terá vindo estudar para Portugal ainda antes de 1974. E é no ambiente de um colégio interno feminino que desponta para as realidades metropolitanas de um país pobre, atrasado e ferreamente católico. Diz este que escreve, também ele conhecedor de internatos em colégios, que o feminino em internato era incomparavelmente mais infernal que os masculinos, já de si insuportáveis. A obra descreve este ambiente. Depois, a descoberta do amor e da vida nos subúrbios lisboetas da margem sul (que por acaso também conheci) como docente de Filosofia e o trabalho insano dos professores funcionalizados, quase robotizados, embora a crítica se aponte genericamente ao trabalho assalariado. A relação exposta com os pais, baseada numa admiração pela mãe e uma tensão sempre presente com o pai, para além do autêntico abanão que levamos ao ler a sua tentativa de ser mãe e engravidar com um amigo homossexual que a acompanha nesse desejo não conseguido após abortos espontâneos. Depois, a gastrectomia que lhe esvazia o corpo e que aparentemente afasta a incomodidade sentida; no entanto, a sua invisibilidade, o seu mal-estar continua, como uma tatuagem interior que não se apaga do corpo e que permanece. Maria Luísa, procura permanentemente e a ferros a felicidade. No entanto, no final, cresce a espera, a dúvida, enquanto se instala um paciente monólogo numa casa grande.
quinta-feira, maio 06, 2021
Uma história «sem álibis nem omissões», um artigo de Manuel Loff
Manuel Loff
Só agora (tarde, portanto) li este artigo de Manuel Loff. Pois é, a necessidade de quebrar consensos políticos perante a História deste país é uma obrigação bem mais honesta do que procurar a paz artificial. Todo o artigo aqui:
David Priestland: sobre o trabalho e a distribuição capitalista e socialista na «estagnação»
terça-feira, maio 04, 2021
A Escola dantes ou o inferno de antes
Um dos mais oportunos artigos de opinião de António Guerreiro. Esperei que alguém um dia trouxesse este tema para a discussão pública, embora tenha muitas dúvidas que ele passe daqui. Não interessa a ninguém, principalmente à classe extremamente heterogénea de professores, que se debata a barbaridade dos castigos perpetrados na escola de antes de 25 de Abril. Afirma a dado passo António Guerreiro: «(...) Em tempo de reparações e de assumpção de injustiças colectivas, ainda ninguém veio reivindicar que seja reparado, ou pelo menos nomeado, o crime cometido sobre as crianças e adolescentes na escola de antigamente, quando as sevícias faziam parte dos métodos pedagógicos. Quem frequentou a escola ou os liceus nesse tempo (acho que o 25 de Abril constituiu, também aqui, uma cesura, mas não sei se foi imediata e generalizada) sabe bem que muitos professores tinham métodos sádicos e comportamento de carrascos.(...)». Há professores fascistas? Claro que há. São aqueles que ainda hoje dizem na sala de professores para quem quer ouvir: «Eu levei, mas aqui estou eu e só me fez bem!», os mesmos que advogam os castigos corporais como forma de disciplinar alunos, que «não têm tempo para ler» ou que «nem tudo o que Salazar fez foi mau». Um dia a história desta escola há-de ser feita, com depoimentos de internadas e internados, de preferência. Antes que morramos todos e aqueles que se enojaram perante a violência que viram e sentiram na sua pele e na pele de outros sem poderem fazer nada, ainda tenham energia ou vontade para falar.